Autor: Amparo Caridade
Houve um tempo em que os homens construíram seus deuses. As primeiras divindades eram femininas, mas foram sendo substituídas por deuses masculinos. Depois, os homens destruíram os deuses e hoje destroem a si próprios, no afã de serem indivíduos de ações poderosamente visíveis. Dessa exterioridade surgiram os sentimentos predatórios e sua pretensa legitimidade. Mulher foi sendo percebida no oposto, como natureza, como permanência, imutabilidade, regularidade, mas as transformações do mundo e da Ciência profanaram essa suposta imutabilidade do feminino. Um dia as mulheres declararam: "Nosso corpo nos pertence" – foi o começo do fim (na cabeça dos homens) e o começo do começo para as mulheres: fizeram-se donas de si, de seu prazer, de sua capacidade de produção. Deram saltos seculares. Encheram as Universidades, invadiram o mercado de trabalho e já são 50% da mão de obra atual.
Nada acontece sem conflitos. Hoje, com os homens e as mulheres trabalhando em tempo integral, revelou-se o impensado. O afã do trabalho deu visibilidade à importância do privado e ao tempo que ele exige. Temos agora um contingente de mulheres sentindo-se culpadas, crianças desassistidas, idosos solitários em casa, casais que não se encontram. Haverá culpados, ou todos são vítimas? E vítimas de quem? Da mudança da mulher? Claro que não. "De um grande mal-entendido social", é o que diz Rosiska Darcy de Oliveira em seu livro: "Reengenharia do Tempo". As mulheres quiseram fazer suas provas no mundo masculino, tomado como padrão do melhor do humano, sem pedir a devida reciprocidade. Sua presença no mercado de trabalho foi uma transgressão (mas foi também a miséria que as empurrou para as fábricas). Para os homens, foi uma concessão. Diante disso elas não souberam, não ousaram negociar o tempo que dedicam à vida privada. No entanto, esse tempo que ninguém computa, garante a preservação da vida, sobretudo a vida dos mais frágeis: de crianças e idosos.
Ficou no ar uma questão: Se a vida dos homens não mudou e a vida das mulheres mudou muito, quem está fazendo o que elas faziam antes? É uma questão que vai além dos interesses das mulheres, vai aos limites mesmo do sentido da própria vida. O mundo do trabalho e a vida privada são dependentes um do outro e ambos são consumidores de tempo, lembra Rosiska. O tempo torna-se hoje a matéria prima da vida, a moeda por excelência, esgotável e por demais preciosa, que é preciso repartir. Por isso ela propõe uma reengenharia do tempo, como forma de se repensar o cotidiano de homens e mulheres, com vistas a aumentar a qualidade de vida e seu produto de felicidade bruto. Isso supõe medidas práticas como: modificação em horários da administração pública, horários flexibilizados nas empresas, fato que já vem ocorrendo em países mais desenvolvidos. Tais medidas possibilitam reabrir a discussão sobre o sentido da vida, dos laços de afeto e de solidariedade. "A vida afetiva e familiar não pode ser mercantilizada" defende Rosska. Por mais que tenhamos "funcionários" em casa, faz-se o sacrifício do afeto. Uma reengenharia do tempo supõe ela, preservaria espaço para o afeto, mas supõe escolhas significativas do casal, da empresa e da sociedade. Ela é condição de eficiência na produção de si e de uma sociedade revitalizada. "É uma nova arte de viver".
Essa reengenharia do tempo vai-se impondo como condição necessária à sobrevivência social e psíquica das mulheres, ao equilíbrio das famílias, à equidade nas relações de gênero e à melhor qualidade de vida da sociedade. As empresas levarão tempo, mas deverão compreender que a formação do capital humano nos contextos familiares lhes concerne diretamente. Em contrapartida, isso produzirá também empregados mais produtivos, motivados e responsáveis, apresentando menor índice de absenteísmo e maior inventividade. Fora disso, o mal-estar de homens e mulheres é imenso, ante um cotidiano que vai se tornando ingerenciável. Reengenharia do Tempo é um desafio não em defesa dos lucros do capital, mas visando lucros existenciais e uma relação saudável entre indivíduos, empresas e administração pública. "Não se nasce mulher, torna-se mulher" dizia S. de Beauvoir. É nessas reinvenções, nessas reengenharias, que ela vem se tornando cada vez mais mulher. Wilma Lessa foi uma guerreira dessas reinvenções, a quem reverencio por sua luta pela causa da mulher.
* Amparo Caridade é professora da Universidade Católica de Pernambuco
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