Autor: Olivier Pigeaud
Introdução
As Igrejas ditas « protestantes » consideram-se como elementos que fazem parte, entre outros, do grande mosaico que é a Igreja Universal. Com todas as comunidades cristãs elas querem ser testemunhas de Jesus Cristo morto e ressuscitado por todos nós.
Não se julgam as únicas detentoras da verdade, mas esforçam-se apenas por lembrar sempre de novo, com insistência, alguns aspectos da mensagem cristã que consideram particularmente importantes.
Apesar da grande diversidade das Igrejas saídas da Reforma, podem pôr-se em evidência algumas constantes, sinais de preocupações comuns ou de sensibilidades semelhantes.
Esperamos que o leitor poderá perceber este «espírito protestante» nas poucas linhas que se seguem e que, muito simplesmente, lhe dirão sem dúvida o suficiente para que tenha vontade de conhecer ainda mais.
Sem relatar a história da origem das Igrejas protestantes, digamos apenas que uma grande questão foi posta pelos « reformadores » do século XVI: Qual é a fonte da autoridade?
As Igrejas protestante continuam, não sendo as únicas, a pôr-se esta questão que pode expressar-se de muitas maneiras: Quem pode falar de Deus ? Quem pode falar em seu nome ? Quem pode levar-nos a Ele ? Quem conduz a comunidade dos crentes ? Quem… ou quê ?
E claro que se pode passar em revista as características protestantes com outros pontos de vista, mas esta preocupação da relação directa com a fonte da verdade (porque é realmente da busca da verdade que se trata) é particularmente central.
É isso que vamos mostrar nos mini-capítulos consagrados à BÍBLIA, às DOUTRINAS, aos INTERMEDIÁRIOS entre Deus e nós, aos SACRAMENTOS, à AUTORIDADE na Igreja.
Bíblia
«Cada protestante com a Bíblia na mão é um papa». Esta fórmula já conhecida (de que é preciso dizer que é exageradamente individualista) indica bem o desejo permanente do Protestantismo de afirmar que a autoridade primeira está na Bíblia.
Esta autoridade exerce-se sobre cada cristão, sobre as comunidades e sobre o conjunto da Igreja, porque é apenas pela Bíblia que conhecemos Deus e Cristo.
Em frente da autoridade da Bíblia só existem autoridades de natureza secundária:
– A inteligência de indivíduos ou revelações particulares.
– Tradições ou doutrinas da Igreja ou pessoas que tenham nela um lugar de relevo.
– Leis naturais ou civis e detentores do poder político.
Não podem, ainda que sejam legítimos, fazer empalidecer a autoridade da Bíblia aos olhos do cristão.
É evidente que o texto bíblico precisa de ser compreendido, assimilado e, sobretudo, vivido; senão é apenas um documento histórico ou um conjunto de receitas mágicas. A sua autoridade não é senão o reflexo da autoridade de Deus manifestada em Jesus Cristo.
É isso que quer significar a importância dada na teologia protestante à « inspiração do Espírito Santo» na leitura da Bíblia. Sem ela o texto torna-se letra morta.
Evidentemente os protestantes não são os únicos a ler a Bíblia! É preciso mesmo reconhecer que a sua cultura bíblica já não é o que foi no passado, e que há outros cristãos com uma sede de conhecimento bíblico que por vezes lhes falta.
Não é menos verdade que o Protestantismo tem a preocupação sempre renovada de constantemente pôr em causa as suas estruturas, o seu próprio pensamento, mas também todas as coisas, o mundo e a vida humana, à luz da Bíblia.
Na busca do essencial da fé, a Bíblia não tem melhor intérprete do que ela própria, sendo cada passagem esclarecido por todas as outras.
Para tornar mais acessível a mensagem da Bíblia, livro com numerosas facetas, sempre foi preciso, para as necessidades do ensino, e por causa dos desvios ou dos detractores, dar definições simples ou confissões de fé que tenham sido aprovadas em grandes assembleias da Igreja.
Por outro lado, a fé, não suprimindo o pensamento mas, pelo contrário, obrigando o crente a pôr em acção toda a sua inteligência, fez surgir uma multidão de obras teológicas que explicam, desenvolvem e resumem a mensagem bíblica. Algumas dessas obras têm um valor que resiste à prova do tempo.
Estas confissões de fé, frequentemente de valor capital, assim como as obras teológicas de todos os tempos, constituem um corpo de DOUTRINAS.
Doutrinas
É importante saber como reage o protestante em geral diante da expressão doutrinal da fé, de que uma grande parte é bastante anterior à época da Reforma.
Para as Igrejas protestantes as formas doutrinais não Podem ser senão secundárias e parciais.
Na fidelidade ao espírito da Reforma, estas Igrejas apenas afirmam que não há:
– qualquer doutrina que não deva confrontar-se com os textos bíblicos,
– nenhuma definição que seja válida de uma vez para sempre. A Igreja não pode reivindicar nenhuma infalibilidade, nem mesmo naquilo que diz respeito a textos redigidos e admitidos desde há muito tempo.
Pode mesmo dizer-se que, por causa da multiplicidade das línguas, segundo os lugares e segundo os tempos e os meios, as Igrejas têm de ser diversas, não apenas na sua organização eclesiástica, mas também na expressão da fé. Isso não as impede de estar unidas no essencial e de procurarem o modo de melhor manifestar a Igreja Universal e de pedirem a Deus que ela seja realizada plenamente.
A preocupação de sempre fazer a distinção entre o essencial e aquilo que é apenas secundário encontra-se também quando se examina a atitude protestante em relação às pessoas ou ritos Intermediários entre os homens e Deus.
Intermediários entre os homens e Deus
Alguém pode pensar, sem dúvida, no modo como os protestantes consideram geralmente Maria, mãe de Jesus.
Sem negar, como se crê frequentemente, o lugar único de Maria na história da salvação, os protestantes recusam-se a reconhecer-lhe uma função mediadora entre os homens e Deus. Admiram a sua fé e a sua humildade, mas não lhe fazem orações; não têm formas exteriores de veneração por ela.
É o que acontece também em relação àqueles a que é dado o nome de santos, título que não se gosta muito de usar no mundo reformado. Procurando aprender com o pensamento e com a fé de um certo número de crentes do passado, esforçando-se por se inspirar no seu exemplo, os protestantes não se prendem aos seus méritos, nem à sua protecção e não lhes dirigem orações.
Isto explica por que os templos reformados são desprovidos de estátuas. A recusa protestante das imagens vai mais longe que a simples rejeição da veneração dos santos.
De um modo geral a mentalidade protestante não se harmoniza com a ideia segundo a qual o encontro de Deus teria lugares, tempos e formas privilegiadas.
Os templos não são senão lugares de reunião; as festas cristãs são exteriormente pouco marcadas; não há peregrinações, actos ou gestos que em si aproximem de Deus. Só o facto de participar da vida de uma comunidade é posto acima de tudo como um modo de alimentar e aprofundar a fé. E ainda é necessário que essa comunidade (onde a presença de um pastor não é indispensável, mesmo para a Ceia, que pode ser celebrada por qualquer oficiante que tenha recebido autorização da Igreja) esteja centrada na escuta da Palavra de Deus.
Numa comunidade que coloca no seu centro a anúncio da Palavra, qual é o lugar dos Sacramentos? Na vida do cristão que se põe à escuta, qual é o sentido da acção?
Sacramentos
As respostas, mesmos breves, a estas perguntas permitem dar-se conta das opiniões geralmente aceites nas Igrejas da Reforma.
De uma maneira geral pode observar-se o desejo constante de assinalar a ligação que existe entre a Palavra e os sacramentos (que são dois, o Baptismo e a Ceia, os únicos explicitamente instituídos por Jesus).
Estes só têm sentido como ilustração das palavras de Jesus, como representação, no sentido forte do termo, da sua Palavra.
É por isso que no Protestantismo, havendo o baptismo de crianças nas principais Igrejas, há também quem dê preferência ao baptismo de adultos, ao mesmo tempo que a tendência geral é não admitir crianças na Ceia do Senhor.
Esta recusa de dar valor em si a um certo número de gestos ou de práticas na Igreja, encontramo-lo quando examinamos a vida e os actos de cada cristão.
É bem conhecido que a Reforma convidou e continua a convidar o cristão a «viver apenas pela fé», «apenas pela graça». A Reforma acautela contra toda a tentação de se atribuir méritos àquilo que se faz.
O anúncio da salvação gratuita não é, é verdade, feito apenas pelos protestantes, mas são eles quem mantêm uma sensibilidade particularmente viva diante de todo o risco da glorificação humana.
Isso não os impede de tomar as suas responsabilidades individuais e colectivas, mas as acções que empreendem, em todos os domínios, nunca podem ser mais do que uma consequência da acção primeira de Deus, do seu amor recebido por cada um, mas destinado a todos.
Autoridade na Igreja
É na maneira como procura resolver o problema da Autoridade na Igreja que o Protestantismo manifesta de um modo mais visível o espírito que o anima.
Todos sabem que as Igrejas resultantes da Reforma não admitem a autoridade de um só homem (papa) sobre o conjunto da Igreja.
Mais abertamente, é preciso saber que nestas Igrejas a autoridade não é geralmente exercida por um só homem, mas por conselhos eleitos por assembleias locais, regionais ou nacionais, conforme o caso.
Não há responsabilidade ou acto (mesmo sacramental) que possa ser reservado a esta ou aquela categoria de cristão (sacerdote, por exemplo).
O pastor não tem um papel fundamentalmente diferente dos outros membros da Igreja.
O Protestantismo não pensa encontrar no Novo Testamento um modelo inalterável para a organização da Igreja. Insiste sobre o aspecto humano das instituições eclesiásticas e faz delas simples meios para uma melhor transmissão do Evangelho e para a manifestação de uma solidariedade entre as comunidades locais que são as células de base da Igreja.
Compreende-se por que o Protestantismo se preocupe pouco da forma jurídica da transmissão da autoridade de uma geração a outra.
E compreende-se também por que é que aos protestantes falta ardor para a unificação das instituições, o que não é contraditório, no seu espírito, com uma preocupação ecuménica que procura no respeito mútuo um aprofundamento da comunhão na fé e na acção.
Por fim, existe claramente uma tendência protestante, nem sempre posta em prática, de manter uma estrita independência recíproca entre a Igreja e a autoridade civil, salvo se a liberdade de consciência ou a dignidade humana estão em jogo.
O protestante tem uma grande desconfiança em relação a toda a tomada de posição eclesiástica que quisesse impor ao crente aquilo que ele devia crer ou como devia viver. A Igreja permanece a Igreja de todos e cada cristão deve escolher e tomar as suas responsabilidades.
Como a leitura destas páginas ou a experiência pessoal lhes podem fazer sentir, o «espírito protestante» conduz a um caminho difícil que exige :
– uma busca pessoal;
– um tomada de responsabilidade individual;
– um permanente pôr em questão, por vezes desagradável, dos hábitos e instituições.
«A Igreja Reformada tem de estar sempre a reformar-se». Este caminho não está isento de perigos:
– individualismo e complexo de superioridade dos crentes;
– espírito de casta ou de elite nas comunidades.
Para lutar contra estes perigos, é preciso afirmar, ao terminarmos este opúsculo, que os protestantes e as suas igrejas não se julgam os únicos que seguem por este caminho difícil, e muitas vezes afastam-se dele! De qualquer maneira, eles não têm nenhuma superioridade de que se vangloriarem se tão-somente se mantiverem fiéis a esta divisa da Reforma:
SOLI DEO GLORIA
Toda a glória seja dada só a Deus
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