Autor: Pe. Elmo Heck
Um elemento bastante presente na Bíblia é a questão ética da relação de um frente ao outro. A consideração de alguns filósofos, como Hobbes, que decreta o outro como lobo, e Sartre, que traz o inferno na terra, quando afirma que o outro é o seu inferno, demonstra o desvio da fraternidade, criada desde o princípio como a perfeita ética da relação humana sonhada e desejada pelo Criador.
No início era o Dois
A Bíblia hebraica começa com a letra beth (b, bi, bis…), que, nos pergaminhos, era escrita intencionalmente em negrito, para se destacar das outras consoantes. Esta letra, sendo a segunda do alfabeto, possui o valor numérico dois. O texto que dá início à Bíblia fala da Criação. O fato de iniciar-se pela letra beth, confere a tudo o que está relacionado ao início do mundo e à origem da existência a marca do número dois. O alef (o nosso “a”) não aparece no início da narração da Criação, porque, sendo a primeira letra, tem a simbologia do número um, ou seja, do Único, “Aquele que é”, o Criador de todas as coisas, o Absoluto. A Bíblia, quando fala do número um, refere-se a Deus, o qual se apresenta sempre como o Um para o Outro, o Único para Todos. A revelação de Deus refere-se à criação do universo, que é a manifestação do Um, isto é, o Uno do Criador, diante da dualidade da Criação. Os primeiros capítulos do livro do Gênesis não nos informam nada sobre a natureza de Deus, nem de sua essência infinita, mas sobre o dado existencial de que toda experiência da criação inanimada e vital é dual. O número dois é uma marca da Criação.
Do plural à unidade
Podemos afirmar que, do Uno, surge a pluralidade, a qual, por sua vez, harmoniza-se na unidade. Mas como realizar isto, mantendo o equilíbrio das singularidades de uns para com os outros, sem anulá-los?
Vamos tomar a palavra céus. O que são os céus? O espaço da harmonia entre o Fogo e as Águas. Os céus são, portanto, o lugar da harmonia dos contrários. Os céus remetem, nesta lógica, a um lugar ideal, onde o Um e os Outros estão reconciliados na tensão do amor. É o lugar onde são suprimidas as diferenças, não os diferentes. O projeto dos filhos de Adão é, então, a Paz, o shalom.
A relação com o outro revela-me a mim mesmo. Adão tomou consciência de si, a partir da existência de Eva. Chamando-o pelo nome, ela lhe deu a consciência de sua alteridade. Em outras palavras, alguém só existe, quando estabelece relações de alteridade.
Ter um nome
Tendo um nome, Adão recebeu a comunicação da revelação e tomou consciência de sua existência, como alteridade frente ao Criador. As coisas existem, só porque são nomeadas, dizia Edmond Jabés. Os nazistas sabiam muito bem disso, quando trocavam os nomes dos prisioneiros por números. Hoje as pessoas quase não existem mais pelo nome, em qualquer que seja a relação: econômica, educacional, empresarial, eletrônica… Só existe o número disso ou daquilo, senha pra lá e pra cá. Praticamente tudo se relaciona pelo número. As pessoas deixaram de existir, passaram a ser estatística, cifra que não cria relações e não faz parte do afetivo e efetivo, relativizando o poder ético do valor da vida humana.
A paz com os outros
Shalom é, de acordo com a tradição, o nome de Deus e o programa da vida. Quando se saúdam, os semitas não só dizem “bom dia”, mas, sobretudo, manifestam a bênção de viverem juntos. A fraternidade e a paz humana são fundadas na tomada de consciência de que Deus é o Pai da humanidade.
Irmão na linguagem semítica significa entrelaçar o outro, ou criar laços com o outro; em outras palavras, tecer, alinhavar, unir o outro. Isto explica a criação de Eva, unida a Adão pela tecedura óssea. A fraternidade está, pois, desde a origem da Criação, no coração de Deus. Qualquer outro é um irmão. Por isto a busca da comunicação é o fator essencial para tecer um laço fraternal. A fraternidade é um sentimento ético, fundamentado em uma realidade religiosa, pela qual todos os seres humanos anseiam, como fato intrinsecamente natural à comunhão com todos. Todo o desafio de viver juntos consiste em conseguir fazer do Outro um Irmão, tecendo boas relações com ele.
O Natal
O Natal é a encarnação de Deus na humanidade. O que significa para Deus fazer-se humano? Deus tem a nosso favor um Logos, uma Palavra, em favor do ser humano. O Um fez-se Outro, para acabar com as diferenças e unir o diferente, na perspectiva do Todo, encarnando-se no Todos, para que a dualidade, o erro da convivência com o diferente, se entrelace na totalidade fraterna, tornando-o Emanuel, o Outro visível, como irmão, para aprendermos que a alteridade e fraternidade começam e terminam no Outro, que revela a existência do Um, Deus.
Cristo, que assume a dualidade, mas se direciona para a unificação dos opostos, ensina-nos a necessidade de estender a relação com o outro, como condição para vivermos felizes. E o serviço ao próximo é o aluguel que pagamos para vivermos bem e realizados aqui na terra. Ensina-nos também que o que nos une na direção missionária da inculturação é o conhecimento do outro, porque ele existe, não como um número, mas chamado pelo nome, por Cristo (cf. Jo 10,3).
O amor ao próximo, vivido na encarnação do Filho, é a manifestação da misericórdia de Deus para com o ser humano. O cristianismo encontra a razão do amor ao próximo na encarnação, e aí funda o respeito pelo outro. “O mistério do homem esclarece-se verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” (GS 21). A dualidade é absorvida pelo Todo, eliminando a separação dos opostos, não no seu conteúdo ou essência, mas na sua forma, criando condições para que o shalom, a paz, possa realmente ser a bênção de viver juntos, dando glória a Deus nas alturas e paz na terra à humanidade por Ele entrelaçada e amada. O Todo torna-se Outro, para fazer todos unirem tudo. É isso: a encarnação de Jesus faz-nos compreender a necessidade de se eliminar esta dualidade.
Faça um comentário