O incômodo escondido

Autor: Jung Mo Sung




A primeira vez que eu me senti seriamente incomodado com uma apresentação de Natal foi anos atrás na "formatura" de pré-escola da minha filha. Foi uma experiência estranha, pois a alegria da cerimônia se misturava com o meu mal estar. Não que a apresentação estivesse com algum problema, muito pelo contrário. A encenação da história do nascimento do menino Jesus estava muito bonita, com crianças vestidas em belas roupas da época e um belo cenário; enquanto uma voz ia narrando as peripécias de José e Maria até a chegada dos pastores e reis magos. O meu incômodo ou um sentimento estranho difícil de definir vinha exatamente do fato de que a encenação estava bela demais, com roupas e manjedoura bonitas demais para combinar com a história que estava sendo narrada.Eu sei que muitos teólogos e outros estudiosos da cultura humana têm a mania de ficar analisando as festas e cerimônias, ao invés de "curti-las", mas naquele dia eu não pude evitar fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Por isso, eu vivia o paradoxo da alegria pela minha filha e o incômodo com a apresentação.

Pensando bem, não tinha muito sentido apresentar cenários e roupas pobres em uma festa de "formatura" de crianças. Por isso, todos aprovavam a beleza e a riqueza das roupas e do cenário. Mas, pensando um pouco mais, também não tem muito sentido as pessoas irem a uma Igreja ou buscarem uma religião sem o desejo de encontrar um Deus que seja "bom, belo e poderoso". É por isso que as igrejas e templos de religiões já estabelecidas, com grande público, tendem a ser grandes, belos, ricos, imponentes, e todas outras coisas que mostram o poder e a beleza do Deus que representa.

Não desejamos somente templos grandiosos, mas também as teologias precisam mostrar esta imponência e poder divinos. E quando as teologias não são mais capazes de por si só mostrar esta grandiosidade de Deus, nós também apelamos para as grandes teorias científicas – seja da biologia ou da astrofísica – ou grandes obras literárias para mostrar que nós pertencemos a algo muito maior que nós, algo tão grandioso que nos faz esquecer a nossa humanidade, com todas as limitações e paixões, com tudo de bom e mal que temos em nós.

O meu mal estar consistia exatamente nisso. Quem quer ouvir a história de um menino Deus que nasce em uma manjedoura? Aliás, em uma cultura urbana, falar em manjedoura só nos lembra o presépio, e não o tabuleiro em que se deposita comida para vacas, cavalos etc. em estábulos. Coisa estranha e difícil de "engolir" é um Deus que nasceu em lugar tão pobre e que morreu pendurado em uma cruz, um suplício insuportável para quem sofre e também muito doloroso para quem vê. O problema para os que vivem na cultura cristã e se consideram cristãos é que há textos escritos sobre isso que não podem ser alterados ou apagados. Por isso, as nossas encenações, igrejas e teologias misturam a riqueza, a grandiosidade e poder junto com a pequenez e o vergonhoso da história de Jesus. Não são poucas igrejas onde em torno da cruz há ostentação do poder e riqueza; como se quisessem esconder a vergonha da cruz. Como também há muitos livros de teologia que falam da cruz como se esta fosse uma expressão do poder divino.

Manjedoura e cruz são símbolos de um Deus estranho, não "palatável" para a maioria dos gostos, religiosos ou não. Mas, como dizia Paulo, o que muitos consideram vergonha ou escândalo são os símbolos da nossa salvação.

A confissão de que Deus se fez carne – esvaziando-se da sua divindade, assumindo a forma de um servo e nascendo em uma família pobre – e que ele amou os pobres, lutou até o fim e morreu numa cruz, em um suplício horrendo, é uma das especificidades do cristianismo. Algo difícil de "engolir". Por isso, é mais do que compreensível de que na festa da formatura da minha filha a encenação tivesse sido bela e rica. O problema se torna grave quando as nossas liturgias, templos e teologias também procuram, mesmo que inconscientemente, esconder o paradoxo cristão que tanto nos incomoda.

* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise


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