Notas para uma antropologia da família

Autor: João Carlos Petrini

Este foi o tema desenvolvido no II Simpósio FASM, apresentado pelo conferencista Prof. Dr. João Carlos Petrini. Bacharel em Ciências Políticas pela Universidade de Perúgia (Itália), doutor em Ciências Sociais pela PUC – São Paulo, onde lecionou vários anos. Desde 1989 é Diretor do Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e coordenador do Mestrado em Ciências da Família na Universidade Católica da Salvador (BA). Tem inúmeros artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras e, nos últimos anos, pesquisa “Família e Pobreza na Região Suburbana de Salvador: entre estratégias de sobrevivência e projetos de vida”.

A FAMÍLIA FORA DE FOCO
No decurso do último século poderosas forças sociais e ideológicas incidiram sobre a instituição familiar que a relegaram a um espaço marginal, ao eleger o indivíduo como portador de direitos e centro das políticas sociais, segundo uma mentalidade individualista.
Desde então a família, principalmente das classes populares, passou a ser vista como obstáculo ao progresso ou o lugar da reprodução de mentalidade conservadora, cuja função seria meramente reguladora, disciplinadora ou até mesmo repressora, cujo papel, quando muito, estaria diluído nos movimentos sociais. Muito embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU tenha proclamado a importância da família, os programas de ação propostos em diversas Conferências Internacionais não mencionam o amor, o matrimônio, a maternidade ou a vida em família e, quando o fazem, são invariavelmente enfocados negativamente, como fontes de opressão à mulher.

FAMÍLIA E MUDANÇA: ENTRE DESAPARECIMENTO E REORGANIZAÇÃO
As mudanças no modo de entender e de viver o amor, a sexualidade, paternidade e maternidade e o vínculo familiar evidenciam o enfraquecimento das relações familiares, mas indicam também e surpreendentemente sua vitalidade, reagindo ou adaptando-se, mediante novas formas de estruturação na sociedade pós-moderna, na qual “sobrevive” é reconhecida como estrutura básica permanente de experiência humana e social.
A “família tradicional arcaica” de Gilberto Freyre há tempo entrou em colapso, mas também a “família nuclear urbana” de T. Parsons também não parece um modelo adequado. Porém ainda não emergiram novas formas de agregação familiar capazes de atender positivamente às exigências da vida afetiva, sexual, da experiência da gratuidade, geração e transmissão de valores, tão necessários à estabilidade psicológica da sociedade, no exercício de papéis, de construção da identidade e a socialização em relações mais democráticas, de modo a garantir referenciais menos frágeis e vulneráveis ou excludentes para ambos os sexos e para as diversas faixas etárias, visto que as relações entre os sexos e as gerações constituem o fulcro da realidade familiar, ao redor do qual devem prevalecer a cooperação, a reciprocidade, a solidariedade, a negociação, de modo a oferecer alternativa à disputa, à competição, ou à indiferença, estranheza e o conflito.

A RENOVAÇÃO DO INTERESSE PELA FAMÍLIA
O nexo que existe entre problemas de crianças e adolescentes e as questões familiares, como evasão escolar, repetência, drogas, gravidez, prostituição, trabalho infantil e comportamentos agressivos e anti-sociais, sem subestimar outros fatores, converge para a renovação do interesse pela família.
Se a família contemporânea passa por uma transição, na qual são abandonados os modelos tradicionais do primado do marido e o papel da mulher nas tarefas domésticas, da relação entre pais e filhos baseada na autoridade e na disciplina, para darem lugar a novos padrões de comportamento, não se trata de olhar o passado numa postura saudosista, mas de consolidar passos que possibilitem um crescimento humanizador para todos os membros e para o grupo familiar em seu conjunto, de maneira a passar da lógica individualista para uma lógica comunitária. Várias iniciativas o demonstram: iniciativas da União Européia (1989), o Ano da Família pela ONU (1994) e o Sínodo Mundial dos Bispos sobre a Família no mundo Contemporâneo, promovido pelo Papa João Paulo II (1980), que teve como fruto a criação do Pontifício Instituto para Estudos sobre Matrimônio e Família, dentre outros.

FAMÍLIA, MATRIZ DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO
Apesar das variadas formas que assume e das transformações que passa ao longo da história, a família permanece como condição para a humanização e socialização das pessoas e fundamento da sociedade, constante e universal em todas as culturas, como forma de relação social constitutiva da espécie humana, não só como estratégia de sobrevivência dos grupos, mas como condição para o desenvolvimento e realização da pessoa. O insuspeito antropólogo Lévi-Strauss a define como “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos; ela é um fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade”. É o locus privilegiado e adequado ao desenvolvimento humano e social, para o qual convergem as mais diferentes linhas de análise porque envolve diversos aspectos. Numa perspectiva multidisciplinar, ela pode ser vista sob os aspectos econômico, jurídico, político, sociológico, psicológico, pedagógico, filosófico, teológico e social, sem excluir a arquitetura, a urbanística, a medicina, a antropologia cultural, a psiquiatria, a sexologia, a ética e a bioética, dada a sua ampla abrangência.

RELAÇÕES FAMILIARES: IDENTIDADE E DIFERENÇA
A família caracteriza-se por um modo específico de viver a diferença de gênero e de relações entre as gerações. É expressão de uma originária unidade dual, homem e mulher, constitutiva do ser humano e essencial à sobrevivência da espécie, ainda que suas diferenças sejam elaboradas culturalmente, mediante papéis e relações historicamente determinadas, num interessante entrelaçamento entre natureza e cultura. Entre dados permanentes e dados que se refletem valores, crenças e modelos de comportamento segundo o contexto socioeconômico, cultural e histórico, sua configuração sempre se situa na bipolaridade dum contínuo movimento pendular entre identidade e diferença. Nenhum homem ou mulher, isoladamente, pode esgotar todas as possibilidades humanas e a multiplicidade de experiências é reveladora de uma inquietação própria da cultura pós-moderna, que encontra na sociedade pluralista o espaço para ensaiar novos modelos de convivência, exatamente porque a unidade dual é dinâmica, dotada de plasticidade, que deve ser aceita e ao mesmo tempo construída. Assim a família, fundada no matrimônio, permanece como o espaço onde todas as demandas autenticamente humanas podem ser atendidas.

GÊNEROS E GERAÇÕES
As relações entre pessoas de ambos os sexos podem se ocasionais, livres de qualquer compromisso, ou estáveis, que nascem de um projeto partilhado de vida, mediante a doação recíproca de modo a constituir uma aliança, legitimada com uma celebração civil e/ou religiosa, com vistas à formação de uma família, aberta à geração e educação de filhos, de modo a estabelecer uma rede de relações de parentesco de caráter permanente, ainda quando eventualmente interrompida.
As relações entre as gerações, marcadas pela cooperação, acolhimento e responsabilidade, oferecem uma alternativa à mentalidade do mercado ao transcender o cálculo das conveniências, do “investimento” e do esperado retorno capazes de conviver e superar os inevitáveis conflitos, que poderão ser motivos de ruptura, mas também de crescimento, conforme os valores orientadores da conduta, da importância atribuída ao vínculo e do significado da família.

FAMÍLIA: UM RECÍPROCO PERTENCER
Essa rede de relacionamento familiar é um espaço de convivência no qual cada membro faz a experiência de pertencer em diversos modos dentro do arco da existência: na qualidade de recém-nascido, irmão, pai, mãe ou avô, nem sempre isento de desvios, autoritarismo e opressões de uns sobre outros, que podem ir desde a legítima autonomia à auto-suficiência.
Mas, enquanto noutros ambientes dão-se relações parciais, os vínculos familiares envolvem a pessoa na totalidade de suas existências num recíproco pertencer, de tal modo que algum membro passe a viver num ambiente distante a família continua a estar presente como realidade simbólica que determina o vivido psíquico e o sentido existencial das pessoas.

ENTRELAÇAMENTO DE AMOR, SEXUALIDADE E FECUNDIDADE
O fato de a família estar mais na esfera do lazer do que na produtividade, a dimensão lúdica parece, muitas vezes, esgotar o significado da sexualidade humana, com a tendência de eliminar outras dimensões, responsabilidades ou vínculos, até mesmo no que diz respeito à geração da prole.
A cultura hodierna parece privilegiar mais a realização pessoal, a carreira profissional, a inserção no mercado de trabalho e o acesso ao consumo, onde prevalecem as relações funcionais, que se caracterizam pela competição individualista e tendem a favorecer a fragmentação da pessoa. E até mesmo difunde-se o ponto de vista que considera qualquer vínculo como pernicioso, motivo por que seria mais desejável ficar livres de qualquer relacionamento mais profundo.
O entrelaçamento entre amor, sexualidade e fecundidade que, tradicionalmente, constituiu o núcleo do matrimônio e da família, passou a desvincular-se, de tal modo que cada elemento passa a percorrer um itinerário próprio, e a sexualidade afasta-se cada vez mais da esfera da cultura, isto é, da vivência de valores, de maneira a aproxima-se cada vez mais da esfera da natureza, isto é, da instintividade. A fecundidade, segundo a lógica do mercado e da produtividade, passa a obedecer aos padrões de avaliação, segundo os critérios do custo e benefício, e o amor facilmente fica reduzido a mero sentimento efêmero de paixão.

FAMÍLIA, RECURSO PARA A PESSOA E PARA A SOCIEDADE
A família permanece, sob as mais diversas formas de culturas, no tempo e no espaço, uma forma de relação social constitutiva da espécie humana, visto que responde às necessidades humanas e sociais relevantes, nos mais diversos aspectos, quer para a identidade simbólica do indivíduo, que lhe proporciona experiências no nível psicológico e o diferencia do animal, quer ao oferecer experiências humanas básicas que perduram no tempo: paternidade, maternidade, filiação, fraternidade, relacionamento entre as gerações e a realidade da morte. Em suma, a família é um requisito e fator de humanização e oferece à pessoa possibilidades de reflexão e significado dos processos que a envolvem: gestação, nascimento, amor, trabalho, doença, envelhecimento, festa; um sentido mais profundo para além das circunstâncias dadas. A família também favorece o desenvolvimento da sociedade, uma vez que responde a demandas cotidianas de seus membros, sem o que a sociedade provavelmente entraria em colapso: acolhimento, experiência de gratuidade, proteção, integração, transmissão da cultura e valores.

FAMÍLIA; LUGAR DE SOCIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO
É lugar privilegiado de socialização e educação das novas gerações, pois além da transmissão da vida, possibilita a emergência de significado, de valores e critérios de conduta, sentimento de pertença, respeito e diálogo em contexto afetivo. A experiência de conviver com a diferença de sexo, idade, temperamento, em relações interpessoais, marcadas pela colaboração, tolerância, serviço, aceitação, solidariedade, limites e potencialidades. Oferece oportunidades para o enfrentamento, encaminhamento e superação de conflitos, disputas, ausências, escassez, agressividade, desvios comportamentais e eventuais desajustes, incapacidade temporária ou permanente, deficiências, particularmente quando as instituições públicas e privadas são parcial ou totalmente inacessíveis. Pelo fato de ser sujeito social, a família deverá ser alvo de políticas que a possam promover e fortalecer, enquanto rede eficaz para o desenvolvimento de toda a sociedade.

VÍNCULOS FAMILIARES DÉBEIS DESAFIAM A SOCIEDADE
É cada vez mais preocupante a situação de crianças carentes, menores abandonados, em verdadeiros depósitos de menores infratores e de afundamento na marginalidade – ou mesmo dos chamados “órfãos de pais vivos”, pois é expressivo o número de jovens e adolescentes “que não se integram um ambiente social capaz de orientá-los e encaminhá-los para um projeto de vida que inclua crescimento humano, capacitação profissional, trabalho, em vista de uma autonomia da existência, socialmente integrada”.
Tais sintomas denunciam as dificuldades da família “para cumprir suas tarefas básicas de socialização primária e de amparo/serviço aos seus membros”, daí se criarem “situações de vulnerabilidade que, dependendo da convergência de outros fatores de risco, poderão desembocar” em situações de marginalização social. Cabe ao poder público e a outras instâncias contribuir e proporcionar instrumentos para que as famílias possam “desempenhar as funções básicas de socialização e de acompanhamento” de seus membros com vistas à cidadania a fim de serem “integrados na sociedade moderna de maneira positiva e construtiva”.

FAMÍLIA E SOCIEDADE: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
O intenso processo de desinstitucionalização da família, cuja tendência é considerá-la como “realidade privada”, da qual “atribui-se maior importância aos aspectos subjetivos da afetividade” em detrimento dos “aspectos objetivos do amor conjugal” e o seu reconhecimento jurídico. Importa, no entanto, ter presente que “a família não é apenas um bem particular, mas configura um espaço público, no qual são vividos valores e práticas comuns de inegável significado social”. Não é por acaso que a administração pública e as leis de mercado “influenciam cada vez mais decisivamente o ambiente familiar, não somente com normas que protegem a criança e a mulher, mas com uma presença que determina” o cotidiano e suas concretas configurações. Percebe-se “como o mercado coloniza o mundo da vida, estendendo progressivamente sua lógica, seus critérios e valores a todos os aspectos da existência, inclusive os mais íntimos. Trata-se de um fenômeno cultural, que vai substituindo valores tradicionais por outros mais afinados com a mentalidade do individualismo e funcionais ao consumo. O mercado globalizado tende a homologar valores e comportamentos, segundo os próprios interesses. Nesse horizonte compreende-se como separações e divórcios mantêm elevada demanda por bens duráveis de consumo”. Nesse caso, a solidariedade entre as pessoas, o cuidado com as crianças e idosos, acaba comprometida por “comportamentos egoístas e individualistas apresentados como sendo mais modernos e convenientes”.
Será do interesse de todos preservar a identidade da família mediante políticas familiares que fortaleçam suas relações entre os sexos e entre as gerações, oferecendo-lhe devida autonomia e os meios que a tornem capaz de resolver os problemas de seus membros e gerir suas necessidades. Cabe, sobretudo, ao Estado regulamentar, estimular e sustentar intervenções em favor da família, de modo a fortalecer-lhe a subsidiariedade. Embora sendo laico e por isso não use critérios religiosos para avaliá-la em uma sociedade pluralista, deverá privilegiar as formas de convivência familiar que resultam mais úteis à sociedade, nas quais a estabilidade, a coesão e a duração do vínculo, possam favorecer a integração afetiva e emocional dos cônjuges e da prole, possibilitando-lhe assistir os seus membros mais fracos, mormente idosos e deficientes.

CIDADANIA E CULTURA DA FAMÍLIA
Por ser sujeito social e preceder ao Estado, a família medeia as relações entre os indivíduos e a coletividade, é promotora de solidariedade e de formas comunitárias de vida. A despeito de concepções ideológicas e preconceituosas, indubitavelmente “a família constitui o maior recurso social e humano disponível”. É fator de formação para a cidadania, solidariedade, democracia, autonomia e reciprocidade, na qual seus membros serão vistos como pessoas, membros de uma comunidade familiar, na qual criança, idoso, adolescente, homem, mulher, deixam de ser meras categorias sociais abstratas ou indivíduos isolados, mas seres-em-relação-com-os-outros.
Urge incentivar uma “cultura da família”, ou mentalidade que favoreça e “promova os valores da família como sendo positivos e desejáveis para o bem-estar das pessoas e da sociedade”, verdadeiro potencial de realização e de felicidade, “fonte de humanização, socialização, educação, espaço de comunhão e participação e como lugar de resistência à lógica do mercado, de modo a proporcionar experiências de gratuidade e de solidariedade, de cooperação entre os sexos e entre as gerações”, alternativa ao “niilismo dominante” no empenho de criar uma “cultura da paz” fundada na certeza “do significado e do valor” da vida.

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