Exegese do prólogo do Evagelho de João

Autor: Michael Knoch




A exegese (interpretação de textos) segue duas orientações básicas: A exegese de textos do Novo Testamento segue de um padrão científico explicando-o através do seu contexto e da sua situação social, cultural e religiosa da época, da qual o texto será resposta. É importante ouvir o que texto quer dizer aos seus primeiros leitores falando na linguagem e cosmovisão do tempo antigo, diferentes das hodiernas. A interpretação do texto para os leitores de hoje consiste num processo hermenêutico que tem que dar conta da cosmovisão e do contexto sócio-cultural actual: Ou seja, não pode simplesmente partir de um pressuposto religioso da existência de Deus e de uma imagem metafísica do mundo, mas tem de ter em consideração o processo da secularização (desencantamento) e do iluminismo que até tem raízes na teologia Cristã protestante.

O chamado prólogo do Evangelho de João é um dos textos mais belos da literatura mundial. Ele debruça-se sobre questões últimas como vida e morte, conhecimento e ignorância, Ser e Nada . Não se pode sobrestimar o significado do Prólogo, já que o texto inicia com as palavras No princípio (V.1) que se reforçam por repetição em V.2, respondendo à eterna pergunta da filosofia: “Porque é Ser e não é Nada?” (B.18,4). Como o texto é um hino confessante, podíamos declará-lo como uma antípoda a um livro do heterónimo de Fernando Pessoa: Bernardo Soares, O livro de desassossego que podíamos titular como uma confissão do Nada dessignificante e inexistente.

1. Análise literária.
A estrutura do texto, além de questões do conteúdo, é reconhecível pelo ritmo, que consiste num hino a quem o evangelista junta uma série de anotações/inclusões. A distribuição entre hino e anotações é a seguinte:
V.1 – Hino;
V.2 – Inclusão do Evgl;
V.3 – Hino, o texto grego deve-se ler assim: Tudo se gerou por ele, e sem ele gerou- se Nada.
V.4 – Deve se ler: No que se gerou, – nele (no Verbo) era (para isto) a vida ; ou
No que se gerou, nele foi ele (o Verbo) a vida. (Hino);
V.5 – Hino.
V6-8 – Inclusão do Evangelista;
V.9 – 12 Hino (com pequenos aumentos do Evgl);
V.13 – Anotação do Evgl;
V. 14 – Hino;
V. 15 – Anotação do Evgl ;
V.16 – Hino;
V.17-18 – Anotação do Evgl.

O hino que devemos imaginar como cantado na comunidade Joanina, tem um ritmo 1 +2 (compare VV. 1,3,4,9-12,16), enquanto p. ex. V. 2 (anotação) evidencia um ritmo 1+2+3, saindo da estrutura musical. O grande debate dos historiadores da religião é, se se trata de um hino pré-cristão, e se for assim, qual é a origem.

2. O problema.
Os quatro Evangelhos do Novo Testamento surgem como um género literário novo que Schniewind (1924) descreveu como “história da paixão com uma introdução prolongada”. Este autor refere-se ao Evangelho mais velho de Marco, escrito após da guerra judáica de 70-71 que respondeu à necessidade de fixar a transmissão oral da mensagem de Jesus após da catástrofe final do povo judeu da época. O Evangelho de João, porém, distinge-se profundamente de Mateus, Marcos e Lucas, seja pela linguagem ou seja pela teologia. O seu objectivo é muito menos histórico, concentrando-se num único ponto: evidenciando através de sinais e discursos que Jesus e o filho de Deus, e que a fé Nele significa a vida. O que quer dizer “filho de Deus” e “vida” não é explicado, porque pela cosmovisão vigente estas palavras chaves foram mais do que comuns.
Pertence claramente ao mundo grego, apesar de conter alguns poucos vestígios do mundo judáico. Entre os Evangelhos sinópticos (Mt, Mc, Luc) e João surgiu uma mudança hermenêutico profunda, porque a transição entre o mundo judáico-aramáico e o grego-helenístico não foi uma simples passagem linguistica, foi uma ruptura de cosmovisão e visão do Homem. Enquanto a cultura grega era impregnada pela imagem e pela estética da visão, pela harmonia do cosmos e por um mundo ideal, espiritual e superior, – compare a figura do Eros como a expressão do desejo inatingível do divino -, entre os Judeus as imagens de Deus eram proibidas, e substituídas pela função salvífica (?) da escuta e da palavra (humana tal como divina); o cosmos tornou-se criação (“céu e terra”), aberta pelo cultivo e pela investigação. Em vez da suposta harmonia divina dos gregos vive-se e questionava-se a história do povo como uma série de crises de justiça/injustiça.
Neste mundo tardo-romano, imerso na cultura helenística, o hino do Prólogo fala do Logos (LogoV) como uma palavra-chave que está na boca de toda a gente. Quer explicar a sua origem (VV.1-3), a sua função (V.4), a sua entrada na história, onde é recusado (VV.9-11), a sua aceitação pela comunidade (V.12), culminando com a sua encarnação (V.14) e da glória e plenitude para os que O aceitaram (V.14+16). Visto pelo contexto dos outros evangelhos, fala do significado do Homem histórico Jesus de Nazaré que, sendo o Cristo e o Filho, é o único acesso a Deus (compare as palavra que iniciam com “Eu sou…”: 6,35; 8,12; 10,12; 11,25; 14,6; 15,1). Fala nisto de Deus explícito desde logo pela revelação no Logos. A sua linguagem é fascinante, imagética e tem palavras centrais da espiritualidade humana, como pão, vida, graça, verdade, caminho, liberdade, amor.

3. A figura soteriológica do “LOGOS” na gnose.

A nossa tese é que o prólogo explica Deus, falando e cantando o LOGOS. A figura do Logos é conhecidíssimo, a sua história passa despercebida. Conhecidíssimo como figura de um mito que fala da salvação das almas humanas num mundo de perdição – aqui pensamos à perdição real na condição social da grande maioria dos habitantes do Império Romano que foram pessoas deslocadas, escravizadas, empobrecidas, sem direitos nos países ocupados e sempre em perigo da sua sobrevivência. Fellini colocou um monumento a estas multidões no seu filme “Satyricon”. A religião da gnose, dominante nas camadas desfavorecidas do Império procurava salvação no “conhecimento” que era conhecimento espiritual e secreto-misterioso à volta de um mito da salvação:
O salvador que podia ser chamado “sabedoria”, “filho de Deus”, “HOMEM”, “Imagem de Deus”, “Entendimento”, mas quase sempre tem o epíteto “LOGOS”. Deus, depois da queda do mundo, para salvar as almas, que mantiveram uma centelha de luz, verdade e gnose, enviou um salvador, que teve clandestinamente que passar pelas esferas hostis dos demónios que pairaram sobre a terra (facilmente se reconhece a situação política real dos reprimidos!). O Salvador toma uma aparência humana para chegar a terra onde recolhe as centelhas de luz das almas dos homens que procuraram um outro cosmos.
Entrar nesta cosmovisão gnóstica deu ao Cristianismo o seu cunho durante séculos, mas para nós hoje implica alguns riscos:
– a recusa gnóstica do mundo como um cosmo perdido opõe-se a uma visão mais optimista do mundo pela ciência moderna;
– uma dualidade entre estes que “sabem” pela fé e não sabem, transforma a fé de uma relação pessoal de confiança (como no mundo hebraico) a uma forma de saber superior (achado inferior no iluminismo). Este dualismo gnóstico pode ser falseada como dualidade entre religião e razão e abre possibilidades de sectarismo.
Por isso, o hino, utilizando a linguagem do mito, vê-se obrigado de divergir do mito próprio em pontos essenciais.

4. Algumas notas exegéticas concretas.

4.1 O hino tem que ser ouvido a partir do seu fim e alvo, ou seja a partir do anúncio da encarnação em V.14. Esta palavra encarnação, tão carregada pela prática religiosa durante séculos, envolve um escândalo no contexto antigo: Nesta cosmovisão, carne significa a região da mortalidade, da dor e da submissão aos instintos sexuais. É uma esfera para ser evitada e até desprezada. Em vez disso, o hino declama a encarnação do LOGOS como ponto central da presença de Deus na terra (“habitou entre nos”). Notamos o modo de falar em expressões paradoxais, ligando o Espirito ao corpo . O preço do uso desta linguagem é alto: Por exemplo. o evangelista vê-se numa dificuldade de distinguir “carne” de “sexo” em V. 13. Na dogmática evangélica preferimos o termo “hominização” em vez de “encarnação”.

4.2 Lido a partir da encarnação, os VV. 1-4 aparecem numa outra luz: Não se trata de especulações sobre relações divinas antes da criação – este aspecto desejado pela gnose o hino corta -, mas da origem e legitimação do LOGOS: Para ser o Salvador, Ele é antes o criador (V.3)! A salvação não acaba com o cosmos, mas o restitui. Ainda mais atrás, Ele era “no princípio”. Estas palavras são uma referência ao início do Antigo Testamento, ao relato da criação e confessam a prevalência do LOGOS sobre o Nada que confessaria: “No início era o caos.”

4.3 Qual é a tradução do termo LOGOS? Apesar de que aqui as opiniões divergem, deve-se manter claro o que na cosmovisão é evidente: LOGOS tem 2 raízes
– A) a palavra hebraica dabar do Antigo Testamento: palavra viva que cria o acontecimento pronunciado. Compare os profetas e Génesis, cap. 1: Deus cria pela sua palavra, a palavra é oral, é voz pronunciada e acto criativo no tempo concreto.
– B) Em grego LOGOS significa: 1. o acto de falar, especialmente palavra e discurso; 2. o cálculo; 3. a relação racional; 4. a razão e entendimento.
– C) No Evangelho de João a palavra não precisa de mais explicação, porque refere –se ao mistério que une o mundo, o alvo do desejo humano infinito de conhecimento e salvação, a figura humano-divina de mediação. O termo LOGOS é assim a confluência entre pensamento hebraico e grego – reunindo palavra/acção com a razão como princípio unificador e compreensivo da filosofia clássica desde Heráclito e Sócrates. A mensagem do Evangelho será que toda a sabedoria e todo o pensamento se reencontram em Jesus Cristo.
A tradução “Verbo” ou “Palavra” (para sublinhar o aspecto oral) são as únicas possíveis.

4.4 Por falta de espaço queria me cingir só ao final do hino (V.14 e V.16). Depois de o hino ter celebrado “luz e “vida” (V.4 e V.9), e depois de ter anunciado a tragédia da não-compreensão e recusa do VERBO, – a profunda irracionalidade humana -, termina com uma forte vertente antropológica anunciando a existência humana plena: “…vimos a Sua gloria, …cheia de graça e verdade” (V. 14) “…da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça.” (V.16). Parece impossível que numa situação sócio-cultural e religiosa de repressão, crise e miséria ouvimos estas palavras tão belas sobre destino e possibilidade do Homem. Na fé, esta realização espiritual humana é desejo, ilusão, ideal ou utopia? O hino não aponta para uma resposta individual, mas para um Todo, seja na comunidade, seja na humanidade. É evidente, que, ao falar de Deus pelo LOGOS/VERBO/PALAVRA, a humanidade fica não expropriada, mas apropriada do seu Ser mais nobre e verdadeiro.

Michael Knoch, mk@ip.pt, 4 de Junho de 2001

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