Deus e o Diabo na Terra do frevo – o maniqueísmo retórico de Dom Robinson Cavalcanti

Autor: Carlos Eduardo B. Calvani
Nos últimos meses temos recebido por email diversos textos de Dom Robinson Cavalcanti analisando o atual momento de debates na Comunhão Anglicana em torno da eleição do Rev. Gene Robinson para bispo da Diocese de New Hampshire (EUA) e a confirmação da mesma pela Assembléia Geral da ECUSA.

Não pretendo entrar no debate em torno da possibilidade do ministério de homossexuais. Preocupa-me muito mais, o modo como Dom Robinson Cavalcanti tem alimentado a polêmica em seus textos e, particularmente pela linguagem que utiliza, recheada de polarizações, chavões, lugares-comum, maniqueísmo e um explícito belicismo.

Tenho procurado acompanhar quieto a divulgação desses textos sem lhes dar muita importância. O problema é que ultimamente, o bispo Robinson tem extrapolado em sua retórica e partindo para ataques gratuitos. Some-se a isso o fato de que as “Cartas Pastorais” seriam, em princípio, a palavra de orientação do bispo diocesano para o clero e laicato de sua diocese. Porém, essas cartas são enviadas para todo o clero da IEAB e sabe-se lá a quem mais, e isso às vezes me soa ou como propaganda ou como provocação e poucos têm a coragem de se pronunciar publicamente, às vezes por temer o poder episcopal. Em seu último texto (“Os dois cristianismos”) ele diz estar situado num “forte apache” que é sua Diocese, cercado por “índios” fundamentalistas e liberais, e acusando “a tribo dos liberais da nossa Província” (sic) de estar tocando os tambores da dança da guerra”. Aos poucos, vai se tornando difícil ler e ouvir passivamente essas acusações. Se é certo que devamos ter respeito aos bispos, estes também precisam aprender a respeitar tanto seus colegas de ministério, como os/as presbíteros/as, diáconos/as e leigos/as da Igreja que têm o direito de não concordar com algumas idéias. O bispo Robinson Cavalcanti agora está assumindo a posição de John Wayne do Nordeste, uma espécie de cowboy tupininquim cercado por “índios” (sic). O que a história nos conta é que os “desbravadores” do oeste americano que edificavam “fortes apaches” para se defender dos índios o faziam porque invadiam as terras indígenas em busca de poder. Apoiados por uma indústria bélica mais desenvolvida, tomavam posse das terras indígenas à força e covardemente se refugiavam em seus “fortes” esperando contra-ataques. O resultado da triste história dos indígenas norte-americanos nós conhecemos e certamente o bispo Robinson também conhece. É isso que me surpreende: ele agora se identifica, por incrível que pareça, com George Bush e os texanos, numa cruzada pelo poder na Comunhão Anglicana.

Resolvi sair do meu silêncio e escrever este artigo porque entendo que todos na Igreja (mesmo os que pensam diferentes de nós) merecem respeito. Dom Robinson Cavalcanti está acostumado a defender suas idéias sem ser contestado, ao menos em sua região. Porém, ele agora começa a disparar sua metralhadora retórica contra outros/as clérigos/as da IEAB. E um exame de balística nos tiros dessa metralhadora revela terem sido fabricados nos arsenais fundamentalistas. Este texto, portanto, pretende ser uma resposta à série de argumentos falaciosos defendidos pelo bispo e à sua estratégia de estigmatizar irmãos (bispos, clérigos/as e leigos/as) que com ele não concordam. Ele bem sabe que faço parte do grupo que não concorda com suas posições, pois sempre que conversamos pessoalmente, nossas diferenças se tornam claras. Porém, ao menos comigo, Dom Robinson sempre se mostrou pronto ao estabelecimento de um diálogo saudável. Mas agora ele anda utilizando-se de uma linguagem extremamente sarcástica, contraditória e agressiva, que muito nos incomoda.

De fato, ninguém pode negar que Dom Robinson Cavalcanti escreve muito bem. Seu estilo literário é ágil, dinâmico e parece demonstrar bastante coerência. Além disso, ele utiliza a estratégia comum no boxe de atacar sempre, sem dar tempo para que o “adversário” organize suas defesas. Tal estratégia se caracteriza também por alguns golpes baixos, tais como os de lançar dúvidas sobre a fé, a ortodoxia e o caráter moral daqueles que não concordam com suas idéias, servindo-se covardemente de chavões, termos pejorativos e acusações infundadas de complôs e conspirações.

Pretendo demonstrar neste texto, que muitos artigos, pronunciamentos e cartas pastorais de Dom Robinson Cavalcanti revelam:

a) uma argumentação contraditória e incoerente em relação a algumas de suas afirmações em outros textos, sobretudo em artigos e livros sobre sexualidade. O que chamo de incoerência estampa-se na utilização de pesos e medidas diferentes na utilização de argumentos extraídos da Bíblia, antropologia e psicologia. Algumas afirmações bíblicas são totalmente desconsideradas ou reinterpretadas situacionalmente, de acordo com seus interesses, enquanto que em outros casos (sobretudo no que se refere à homossexualidade), segue-se uma leitura literal dos textos.

b) A utilização de uma estratégia retórica própria dos polemistas, qual seja a polarização de posições, sempre atribuindo valor positivo a um lado e valor negativo a outro e qualificando o polo “positivo” com Deus, a Verdade, o Bem, o Dogma, A Honestidade, a Vida etc, e o polo “negativo” com o “Mal”, “Satanás”, “hipocrisia”, “Engano”, Mentira”, “Falácia”, a “Morte” etc. Essa argumentação, além de maniqueísta, indica uma reconciliação de Dom Robinson Cavalcanti com atitudes fundamentalistas (que diferem do fundamentalismo teológico apenas naquilo que for conveniente) preservadas desde os tempos da ABU e Fraternidade Teológica, agora na forma de um “neo-fundamentalismo”;

c) um conflito pelo poder nas instâncias da Comunhão Anglicana, com sutis ameaças de cisma por parte da Diocese Anglicana do Recife em relação à IEAB.

Finalmente, devo dizer que não estou escrevendo em nome de qualquer instância ou instituição da IEAB. Escrevo em meu próprio nome, por minha própria iniciativa e responsabilidade, na condição de presbítero em plena atividade na IEAB e de teólogo que tem procurado utilizar seus dons a serviço da Igreja e do Reino. Qualquer tentativa de interpretar este artigo como uma espécie de pronunciamento oficial de instituições da IEAB onde estou trabalhando no momento (CEA, JUNET, Comissão de Publicações) é tendenciosa e mal-intencionada.

I – “ESQUEÇAM O QUE ESCREVI” – DOM ROBINSON ADERE AO TUCANISMO

Artigos anteriormente escritos por Dom Robinson Cavalcanti enunciam posicionamentos que despertaram várias críticas por parte de evangélicos conservadores. Diante do moralismo imperante nos círculos evangélicos brasileiros, certas posições defendidas por Dom Robinson Cavalcanti no passado mostraram-se muito ousadas. Por exemplo, no artigo “Enfrentando os desafios” (Jornal Contexto Pastoral n. 19 (março/abril de 1984), Suplemento Debate, pg. 17-23), ele afirma: “A ética deve ser refletida, e não um conjunto de dogmas autoritariamente impostos”(p. 18). Nesse mesmo texto, defende que a Tradição, além de subordinada às Escrituras, não tem instituição autoritativa que a interprete, mas deve ser entendida como a vivência, a experiência dos fiéis, histórica e universal. Por ter sido de tal ou qual forma no passado, não tem que ser assim hoje. A vivência é contextual, evitando-se, também, o privilegiar a experiência de uma época ou cultura, em detrimento de outras”(p. 19).

Nesse caso, o conceito de Tradição é apresentado de modo dinâmico mas não normativo. Atualmente, porém, o autor parece ter mudado de opinião, pois são freqüentes seus apelos à normatividade da “Tradição” no que se refere à homossexualidade.

No mesmo artigo, o autor desafia os leitores à construção de uma Teologia da Sexualidade que nos leve “a enfatizar a riqueza e a amplitude do tema e a necessidade do uso dessas ferramentas auxiliares, que concorram para uma diversificada criatividade, quebrando a rigidez da tradição estática, generalizante e normativista ”(p. 19). Ou seja, abre-se um diálogo para a utilização da antropologia, da história, da psicologia, da sociologia e outras ciências como auxiliares na interpretação dos condicionamentos da Tradição.

Ainda no artigo supracitado, a respeito da interpretação dos textos bíblicos, o autor afirma: “O literalismo em relação à Bíblia empobrece o seu ensino. A inerência do texto perde a sua relevância diante da errância das leituras e dos leitores. Daí a necessidade da máxima humildade e consciência da limitação e da provisoriedade de nossos posicionamentos”(p. 19). Esse é um bom princípio hermenêutico. Porém, nos artigos mais atuais impera uma hermenêutica rígida em relação a (alguns ) textos bíblicos, notadamente os que fazem referência à experiência homossexual. A “humildade e consciência da limitação e da provisoriedade de nossos posicionamentos” parece ter sido esquecida, ou talvez o autor tenha aderido à revisão tucana de FHC: “esqueçam o que escrevi”.

Especificamente a respeito de princípios éticos, Dom Robinson afirmava: “Há princípios permanentes, revelados e de validade universal” (p.19). Chamo aqui a atenção para o uso da palavra “princípios”. Trata-se do termo realmente mais apropriado. No vocabulário da ética, a palavra “princípios” não tem o mesmo peso de “normas”, “leis” ou “absolutos”. É exatamente com esse conceito de “princípios” que a Câmara dos Bispos da IEAB na sua Carta Pastoral sobre Sexualidade Humana (1997) trabalha ao condenar “a promiscuidade sexual entre pessoas do mesmo gênero ou gêneros diferentes” e “os atos de violência sexual”

A respeito do homoerotismo, Dom Robinson admitia ainda que “as possibilidades de reversão de opção são ainda controvertidas, entre cientistas e teólogos” e defende o que chama de “relações pré-matrimoniais” (relações sexuais pré-conjugais) como uma opção válida na vida cristã, posicionamento que lhe custou o afastamento de certos círculos evangélicos moralistas. Essas mesmas idéias ele reafirma no artigo “Sexualidade, o prazer que liberta” (Inclusividade 2, CEA, 2002). Mas curiosamente, na carta “Entender e Decidir”, propõe, entre as opções para as pessoas homoeróticas, “a experiência de reversão de tendência (para a opção heteroerótica), atestada pelo testemunho de milhares de pessoas, pelo poder do mesmo Espírito”. “Esqueçam o que escrevi”?

No seu livro Libertação e Sexualidade (São Paulo, Temática Publicações, 1990), Dom Robinson atacava o fundamentalismo por pretender “tomar os textos ao pé da letra, negar os condicionamentos culturais e achar que a sua leitura revela o óbvio… as outras leituras seriam interpretações, “teologias”(pejorativamente), a deles não” (p.17). Observo aqui novamente a contradição em relação ao que o autor tem escrito recentemente, quando acusa todos os teólogos que propõem diferentes interpretações para os textos bíblicos que tratam do homossexualismo de “relativistas” ou “revisionistas” Quais seriam, afinal, os critérios hermenêuticos de Robinson para qualificar textos que devem ser interpretados literalmente, de outros que merecem interpretação não-literal? Isso em nenhum momento fica claro em seus textos.

Outro texto de Libertação e Sexualidade afirma que “Uma ética cristã tem que levar em conta a natureza e a situação das pessoas, não pode ser algo legalista, rígido, frio, atemporal, acultural, enfiando os seres humanos, até à força, na letra da lei” (p. 18). Sábias palavras. Pena que tal recomendação ainda não tenha sido adotada pela Diocese Anglicana do Recife, onde o cânon defendido pelo bispo diocesano é exatamente aquilo que Robinson condenava: “legalista, rígido, frio, atemporal, acultural, enfiando os seres humanos, até à força, na letra da lei”.

Outro trecho interessante de Libertação e Sexualidade, é quando o autor defende as relações sexuais pré-cerimoniais, citando “um pesquisador” (sem identificá-lo nas notas ou referências). No contexto da argumentação, a citação indica que o autor concorda com o que está sendo citado: “Há indivíduos conformados ao matrimônio não por satisfação sexual, mas por inibição moralista… querem enfiar toda a humanidade na sua própria camisa-de-força por serem incapazes de tolerar nos outros a sexualidade natural. Isso os aborrece e os enche de inveja porque eles próprios gostariam de viver assim e não conseguem”. (p. 70).

No mesmo livro, Dom Robinson dedica dois capítulos (4 e 5) a defender a poligamia como alternativa histórica, citando o bispo anglicano Senyonjo (“a poligamia é uma forma válida no contexto africano”) e afirmando que a poligamia pode ser mais cristã que o divórcio (p. 92). No capítulo V apela para a Bíblia (citando Abraão, Davi e Salomão), para justificar que a poligamia simultânea não é adultério e termina o capítulo citando, (surpreendentemente!), em apoio a sua tese, o bispo John Spong. Ora, para ser coerente com as posturas defendidas, deveria se perguntar por quê a poligamia deve ser compreendida e aceita no contexto da cultura africana (algo bastante questionado por feministas africanas) mas o homossexualismo não pode ser aceito no contexto de sociedades não-africanas? Em nenhum momento o autor elucida tais critérios de aceitação de um item e rejeição de outro.

Em um pequeno artigo mais recente, intitulado “Sexualidade – o prazer que liberta”, publicado na Revista Inclusividade n.2 (Porto Alegre, CEA, junho/2002), o autor afirma que “a defesa dos direitos humanos inclui, necessariamente, o direito natural à realização sexual. Existindo a Lei e os costumes em razão da pessoa humana e não das instituições, devem estas – sociais, estatais ou eclesiais – concorrer para a realização e não para a sua privação, no contexto de cada conjuntura” (p.7). Devemos reconhecer que, nesse último texto, o autor já se posiciona claramente em relação ao homossexualismo, defendendo a exclusividade das uniões heteroeróticas a partir de “amplo consenso histórico da Igreja”. Ao mesmo tempo reconhece que “as possibilidades de reversão às orientações heteroeróticas, por terapia ou milagre, são ainda alvo de controvérsias”. Volta a diferenciar adultério de poligamia, afirmando que “a poligamia entre os da família da fé seria dentre essas imperfeições (padrões possíveis aquém do ideal) a alternativa menos danosa, e que merece despreconceituosa reelaboração nos planos teológico e pastoral” (9). E já que perguntar não ofende, seria interessante se o autor esclarecesse o motivo de tanta preocupação em defender a poligamia e, em condenar ao mesmo tempo o homossexualismo?

É interessante observar que, no livro Libertação e Sexualidade, Dom Robinson condena o que chama “doutrina do esfriamento erótico”. Porém, ultimamente passou a defendê-la, em sua carta “Entender e Decidir”, quando se refere às opções da “ética cristã” para as pessoas homoeróticas: “a) o celibato casto, abstinente e sublimado, operado pela assistência do Consolador”. “Esqueçam o que escrevi”?

Finalmente, no artigo publicado em Inclusividade, Dom Robinson termina com uma afirmação dúbia, que pode ser utilizada para as pessoas homoeróticas, bem como para polígamos: “A clandestinidade, contudo, pode se constituir, muitas vezes, no único caminho possível para os pioneiros, os inovadores e os dissidentes, diante da rigidez da repressão e do desrespeito à privacidade de parte dos sistemas, inclusive os religiosos. O preço da busca da felicidade e da sanidade e da democratização da libido que transforma a História podem requerer, em nossos dias, a silenciosa via das catacumbas” (p.9).

No último mês de agosto, quando da realização do Seminário de Estudo sobre o Relatório de Virgínia, em Curitiba, tive a oportunidade de sentar-me com o bispo Robinson e conversar rapidamente sobre esse assunto. Disse-lhe que aprecio muito o livro Libertação e Sexualidade e que, no futuro, quando os historiadores fizerem menção à evolução dos debates éticos no protestantismo brasileiro, certamente farão referência a esse por sua coragem e ousadia em desafiar o moralismo evangélico. E disse ainda ao bispo que, exatamente por isso não me parece coerente seu atual posicionamento em relação ao homossexualismo. Devo dizer que Dom Robinson mostrou-se extremamente aberto ao diálogo e mesmo ao confronto, mas infelizmente, quando começávamos a conversar mais especificamente sobre o assunto, fomos interrompidos e não tivemos tempo de retomar a discussão.

Por isso volto a afirmar que alguma coisa está “fora da ordem” nessa enxurrada de textos que o bispo vem despejando mensalmente a respeito do tema do homossexualismo. Ou ele mudou muito (e nesse caso, o tucanismo “esqueçam o que escrevi” é apropriado) ou ele trabalha com pesos e medidas diferentes, de acordo com conveniências não de ordem intelectual, mas de ordem política.

II – A RETÓRICA FUNDAMENTALISTA

2.1. Polarizações semânticas – o maniqueísmo de Dom Robinson

A Carta Pastoral “Amor e Verdade”, divulgada alguns meses atrás, baseia-se na polarização entre Vida e Morte. A “morte” é identificada com a Igreja Luterana da Dinamarca, a Igreja Presbiteriana dos EUA e a Diocese Anglicana de New Westminster, (Canadá), enquanto a “Vida” se manifesta em agências missionárias evangélicas, na Menkele Yesu (uma Igreja Evangélica da Etiópia), na Igreja Presbiteriana Coréia e na Igreja Anglicana da Nigéria. Tal polarização prepara os leitores para o alvo final – a polarização geopolítica entre ECUSA e Canadá (chamadas pelo bispo de “minorias”) versus as Igrejas da África e Ásia, identificadas por ele como a “maioria” na Comunhão Anglicana. Toda argumentação é conduzida para a afirmação de que a ECUSA “rompeu com a maioria” e está em “estado cismático”.

Em resposta à carta Pastoral de Dom Robinson, o Rev. Mário Ribas se posicionou perguntado “É possível responsabilizar os gays e lésbicas pelos conflitos de poder na Comunhão Anglicana?” (carta distribuída na internet), onde questiona a validade desse apelo ao crescimento das igrejas protestantes na Etiópia, Coréia, ou a Anglicana na Nigéria, perguntando sobre a qualidade do testemunho dessas igrejas. A argumentação de Dom Robinson é claramente maniqueísta, desconsiderando o fato de que a Igreja de Cristo espalhada em diversos ramos é sempre ambígua – santa e pecadora. Trata-se aqui de um grave defeito eclesiológico que conduz a uma atitude extremamente arrogante manifestada na pretensão de julgar o testemunho de algumas igrejas, ao mesmo tempo em que faz vistas grossas aos defeitos de outras. Em suma, a argumentação não é teologicamente válida. Todos sabemos que a Igreja Presbiteriana na Coréia cresceu graças à teologia da prosperidade (combatida por Dom Robinson Cavalcanti e por muitos de seus pares evangelicais) e que essa mesma Igreja tem vivido incontáveis divisões e cismas decorrentes de suas lideranças carismáticas. Na Etiópia, o crescimento numérico da Igreja é significativo, mas de pouquíssima relevância social na nação que continua mergulhada na fome e miséria.

O Rev. Mário Ribas lembra em seu texto que a Igreja da Anglicana na Nigéria é um grande problema na Comunhão Anglicana, a ponto de muita gente perguntar se aquela Igreja é Episcopal ou “tribalista”, devido aos inúmeros conflitos de poder entre tribos rivais que recusam bispos de outras etnias. De fato, há muitas dioceses na Igreja Anglicana da Nigéria, mas muitas delas foram criadas apenas para acomodar conflitos étnicos, e são, em muitos casos, menores que os arcediagados dos tempos coloniais. O Rev. Mário Ribas lembra que “a maioria dessas dioceses foi criada para satisfazer os anseios tribais sob a desculpa de que era necessário para que os bispos estivessem mais próximos do povo, no entanto os palácios episcopais são maiores do que as casas dos bispos coloniais, sendo deste modo necessário passar por dois altos muros, e portões guardados por policias armados para se ter acesso a qualquer bispo”.

A meu ver, o caso da Igreja Anglicana na Nigéria é muito mais escandaloso e distante do Evangelho de Cristo do que as alegas “anomalias” e “heresias” da ECUSA. Afinal de contas, do ponto de vista bíblico, a morte de Cristo derrubou os muros de separação, de modo que “já não existem mais judeus nem gentios”. Imaginem os leitores, se isso acontecesse na região geográfica da Diocese Anglicana de São Paulo, aqui no Brasil. Deveríamos ter três bispos (um brasileiro, um inglês e um japonês) para acomodar as etnias? Para a comunhão cristã não pode haver preconceitos étnicos que justifiquem arranjos políticos na criação de dioceses apenas para contentar tribos africanas. Nesse caso, os princípios do Evangelho devem julgar as deficiências da cultura. Porém, em nenhum momento de seus textos, o bispo Robinson faz referência a essa situação, embora a conheça muito bem.

Em Uganda houve conflitos escandalosos por ocasião da sagração de um bispo imposto pela Câmara dos Bispos daquele país mesmo sendo ele rejeitado pela maior parte do clero. A situação chegou a um ponto tão escandaloso, de repercussão nacional, que até mesmo um parlamentar pediu ao governo que instaurasse um inquérito na diocese de Muhabura para averiguar falcatruas ou quebra das leis canônicas. Ainda em Uganda, um bispo que atendia pastoralmente a homossexuais manifestando-lhes compaixão e compreensão, foi hostilizado por parte de muitos colegas e, após sua aposentadoria foi deixado sem pensão e sem casa. Lembrando desse episódio, o Rev. Mário Ribas pergunta: “Será que alguém merece esse tipo de tratamento por parte da igreja?”. Dom Robinson Cavalcanti parece não se importar com essa situação e talvez a considere uma disciplina natural e aceitável. Há ainda o caso da Igreja em Ruanda, que tem apoiado paróquias cismáticas dos Estados Unidos. Um dos maiores escândalos para o cristianismo naquele país manifestou-se quando muitos líderes cristãos deram apoio ao massacre da etnia Tutsi ou se calaram, pecando por omissão. Sabe-se também que Dom Robinson Cavalcanti partilha de muitos contatos com os anglicanos evangélicos da Austrália, particularmente da diocese de Sidney, onde o bispo é freqüentemente acusado de nepotismo.

Naturalmente que Dom Robinson Cavalcanti está muito bem informado de todos esses fatos e, devido aos seus muitos contatos, certamente poderia falar de muitos outros problemas nas Igrejas da África, Ásia e Austrália que desconheço (e que até prefiro não ficar sabendo). Não seria necessário que o lembrássemos disso. Volto à eclesiologia: certamente, na medida em que são parte do Corpo de Cristo, aquelas Igrejas estão sob a promessa da santificação do Espírito, apesar de seus problemas que, esperamos, sejam sanados com o tempo. Porém, uma pergunta deve ser feita: diante de tais fatos alguém pode aceitar essa argumentação simplista de que ali impera a “Vida” e em outras igrejas a “morte”?

2.2. Acusações morais:

Em certos trechos da Carta Pastoral “Amor e Verdade”, Dom Robinson Cavalcanti utiliza-se de uma linguagem extremamente deseducada e imprópria para um líder religioso, ao acusar todos aqueles que dele discordam de “hipócritas”. Num trecho ele fala da necessidade de “Repudiar a manipulação dos hipócritas” e ainda “… Trago a cada irmão e irmã, nesse momento de preocupação legítima (e quando sofremos críticas descaridosas de grupos religiosos extremistas e hipócritas)…”. Linguagem dessa natureza eu só me lembro de ter lido em textos medievais e nos períodos mais retrógrados do Catolicismo pós-tridentino.

Ele protesta ainda contra “minorias agressivas e arrogantes, desobedientes e infratoras, que ameaçam a unidade da Comunhão Anglicana, promovem o escândalo e obstaculam (sic) as relações ecumênicas”. Alguns elementos dessa frase merecem ser dissecados:

– …“obstaculam (sic) as relações ecumênicas”. As relações ecumênicas da Comunhão Anglicana com a Igreja Católica Romana e as Igrejas Ortodoxas, de fato, estão abaladas, mas isso não é de hoje e sim desde o início das ordenações femininas. Além disso, Roma também toma decisões unilaterais gravíssimas para o ecumenismo (os dogmas marianos e as recomendações papais quanto ao controle de natalidade, proibição da comunhão eucarística para divorciados, etc). Grupos pentecostais e evangélicos continuam criativos em suas esquisitices teológicas e litúrgicas, dificultando também nosso bom relacionamento com os mesmos. Acusar, nesse momento, a ECUSA ou os grupos que defendem os direitos homossexuais de “obstaculizar” as relações ecumênicas é buscar bodes expiatórios para problemas muito maiores e incorrer na falácia da “falsa causa”.

– …“minorias agressivas e arrogantes, desobedientes e infratoras..” Essa frase é surpreendente, principalmente, por ter sido escrita por um dos fundadores do MEP (Movimento Evangélico Progressista), identificado politicamente como alguém “de esquerda”, ex-membro do Partido dos Trabalhadores e conhecido pela sua defesa da democracia. O que a frase revela, no fundo é que as “minorias” devem ser combatidas porque deveriam ser dóceis e submissas e agora se recusam a aceitar certas opiniões da “maioria”. É o mesmo discurso utilizado pela linha dura do PT ao punir parlamentares que ousaram criticar o governo Lula, ameaçando expulsar-lhes do partido. Nesse ponto, valeria a pena aos leitores, rebuscarem suas antigas bibliotecas e relerem a manipulação do discurso político pelos porcos que fazem a revolução na fazenda de Orwell (A Revolução dos bichos).

2.3. Do maniqueísmo ao belicismo – A luta contra “Satanás e suas hostes”

Na carta pastoral “Amor e Verdade”, o bispo revela ainda um maniqueísmo explícito gravíssimo, que muito me assustou. Ele chega a comparar a polarização de idéias como uma luta entre Deus e o Diabo, ao falar em “Resistir a Satanás e às suas hostes”. No conjunto da argumentação, é uma referência clara à ECUSA. Sim, a mesma ECUSA da qual fazem parte dioceses-companheiras da DAR.

Em termos práticos, o bispo anuncia na carta a “suspensão por tempo indeterminado… de qualquer relacionamento institucional” com as Dioceses de New Hampshire (EUA) e New Westminster (Canadá). Achei muito curioso o anúncio dessa suspensão, pois ao que me consta, a Diocese Anglicana do Recife nunca teve qualquer relacionamento formal e contínuo com essas dioceses. Como é possível romper um relacionamento institucional que nunca existiu? Trata-se de uma estratégia política de demonstração de poder para angariar mais respeito por parte de algumas pessoas. Na palestra “Os dois Cristianismos”, o bispo volta a afirmar que “a ECUSA é uma Província em estado de cisma”, assim como, internamente, muitas de suas Dioceses devido as suas “resoluções heréticas”. Seria de se esperar que o bispo anunciasse também, após a Convenção da ECUSA, o rompimento oficial da Diocese Anglicana do Recife com a ECUSA em bloco (e, consequentemente, com a Diocese Companheira da DAR). Por que faltou-lhe essa coragem?

Após identificar seus “inimigos” (Satanás e suas hostes), o bispo rende-se à linguagem bélica da “batalha espiritual”, na carta “Fidelidade, Unidade, Esperança”, acusando todos os que dele discordam de fazerem parte de um “cristianismo revisionista que procura não deixar pedra sobre pedra da fé histórica”. E, em estilo marcial, anuncia a “ordem do dia: “Devemos estar preparados para uma longa batalha pela frente”, citando o apóstolo Paulo (“em nada estais atemorizados pelos adversários”) e instigando os ânimos belicosos ao recomendar “cabeça fria e espírito quente”. Caberia muito bem, nesse momento, cantar a antiga letra do hino da batalha: “inimigos aleivosos ou rebeldes ou ateus, muitas vezes nos assaltam para nos tornarem seus…”. Na palestra “Os dois cristianismo” (ao clero da DAR e distribuída por email ao clero da IEAB), o bispo volta a servir-se de linguagem belicista, identificando a Igreja com um “exército de Deus”, quando conclama: “É necessário elevar o moral da tropa”.

Na mesma palestra “Os dois cristianismos”, o maniqueísmo se explicita ainda mais na polarização “Deus, Verdade, evangelicais, Diocese do Recife” versus “Satanás, heresia, inferno, ECUSA, liberais”: “A esse princípio sejamos fiéis, mantendo a unidade em amor no vínculo da paz, certos da promessa de que “as portas do inferno não prevalecerão”. Trata-se de uma estigmatizado tão radical quanto os antigos pronunciamentos papais contra o mundo moderno. Talvez a próxima encíclica de Dom Robinson deva chamar-se “Syllabus”.

Na carta “Valores Eternos, Formas Temporais”, o maniqueísmo reaparece na acusação de blasfêmia para com o bispo eleito Gene Robinson: “Quando o bispo-eleito Gene Robinson afirma que sentia que Deus queria que ele reconhecesse sua sexualidade (homossexual), e que ele o fez em nome de sua integridade e de Deus, creio que não estamos nos referindo ao mesmo Deus; o nome de Deus está sendo tomado em vão, ou se está cometendo uma blasfêmia”. Em nenhum momento considerou-se o trabalho pastoral do Rev. Gene Robinson, nem o fato de ter sido ele eleito pela maioria do clero e povo de sua diocese, não por ser homossexual, mas por ser o clérigo mais bem preparado teológica e pastoralmente para o ministério episcopal. Na carta sobram farpas ainda para o Arcebispo de Toronto.

O maniqueísmo reaparece nessa mesma carta pastoral, quando o bispo convoca a “maioria ortodoxa não só do anglicanismo, mas em toda a cristandade” a resistir “às armadilhas sentimentalistas, ao palavreado pseudopiedoso, intencionalmente emotivo, ao mesmo tempo em que desprovido de conteúdo”. Agora o apelo aparece num tom desesperado, dirigido para além das fronteiras do anglicanismo, a “toda cristandade”.

O bispo Robinson que me desculpe, mas ao identificar o grupo ao qual pertence com Deus e o grupo contra o qual discorda com “Satanás e suas hostes”, incorreu numa estratégia covarde de demonização de outros cristãos/ãs. Essa atitude é tipicamente fundamentalista. Ivo Pedro Oro já observou que “os fundamentalistas colocam-se em oposição aos outros, mesmo cristãos, por não viverem radicalmente, ou melhor, literalmente, os axiomas da fé, e em oposição às maiorias sociais… “Sentem-se tocados por Deus, portadores de uma verdade absoluta, virtuosos e perfeitos. Têm bem nítidos os limites que os dividem dos outros. Os outros, a grande maioria, são apóstatas, moralmente pervertidos, arrastados pelo mundo. Enquanto o ‘nós’ (fundamentalistas) constitui o resto fiel aos princípios fundamentais e imutáveis” .

2.4. Contradições a serem explicadas

Na carta “Entender e Decidir”, o bispo reconhece que estamos envolvidos numa luta de poder e acusa alguns grupos de manipularem politicamente a Comunhão Anglicana. Um trecho particularmente chamou-me a atenção: “Os grupos de pressão de pessoas de orientação homoerótica ocupam amplos espaços nas cúpulas decisórias de Dioceses e Províncias. Há casos que os que se opõem a essas teses são vedados à eleição e à ordenação”. E ainda… “A tática dos revisionistas, atualmente, é evitar votações e normatizações e ir, ‘na marra’, criando fatos consumados, ‘forçando a barra’, em forma de confronto”.

Quando estivemos juntos estudando o Relatório de Virgínia em Curitiba, Dom Robinson em sua palestra acusou a ECUSA de agir arbitrariamente em seus cânones ao aprovar a ordenação feminina (!) provocando o afastamento de alguns grupos anglo-católicos e evangelicais, e chegou a dizer que o modelo britânico de “bispos voadores” (visitadores) seria mais apropriado pastoralmente que a normatização canônica. Ou seja, para o bispo Robinson, há casos em que se deve normatizar e há outros casos em que não se deve normatizar. Tudo depende da conveniência? E o que dizer em relação à normatização canônica da Diocese Anglicana do Recife que impede a ordenação ou a aceitação por transferência, de clérigos/as que não se alinhem com a Resolução de Lambeth (nem precisa ser homossexual, basta discordar da Resolução de Lambeth!). Será que a intenção desse cânon específico é que o clero da Diocese Anglicana do Recife seja “dócil e obediente”, como deseja o bispo?

Certamente, Dom Robinson conseguiu com suas Cartas Pastorais recuperar o apoio de alguns clérigos que, por ocasião do cisma da Diocese de Recife em 2002, quase deixaram a Igreja, acompanhando o líder cismático, Rev. Paulo Garcia. Na ocasião (2002), esse era o grupo que fazia mais oposição ao bispo Robinson. Na minha interpretação, a Carta Pastoral do bispo Robinson foi uma típica jogada de estratégia política. O bispo é cientista político e conhece muito bem o momento de se manifestar para conseguir apoio. E o fez no momento certo. Vendo sua autoridade questionada por grupos mais conservadores que ele, lançou a Carta Pastoral e, desse modo, conseguiu atrair novamente o apoio de conservadores e fundamentalistas de sua diocese que até então o reprovavam. A estratégia adotada pelo bispo Robinson ao condenar o homossexualismo, diminuiu a oposição interna em sua diocese, da parte dos conservadores. Ao mesmo tempo, reforçou algo muito importante para ele – a posição de liderança que exerce junto à EFAC (Aliança Evangélica da Comunhão Anglicana).

2.5. Reconciliação com o fundamentalismo original

A linguagem maniqueísta continua forte na Carta “Verdades eternas, formas temporais”: “De um lado há o extremismo da minoria liberal revisionista, e do outro lado, toda a cristandade histórica, em suas diversas ramificações”… ”Desaparecem os dogmas, as doutrinas, as verdades, as certezas…”. Curiosa essa afirmação de que há um grupo “extremista”. Sempre que se acusa alguém de extremista, quem o faz também se acusa, pois está no extremo-oposto.

Ele diz ainda: “Nada mais seria objetivo, não haveria mais crenças ou valores universais”… “Não há unidade fora da Verdade. Não há comunhão sem que algo se tenha em comum.”

Analisemos essas expressões. De um lado, há os dogmas, as doutrinas, as verdades, as certezas, crenças e valores universais “objetivos”. Sobram ao lado oposto exatamente o contrário: heresias, mentiras, relativismo, etc. Essa preocupação com os “dogmas”, as “verdades”, as “certezas” revela o que chamo “reconciliação com o fundamentalismo original”.

Dez anos atrás, defendi uma dissertação de mestrado intitulada “O movimento evangelical: considerações históricas e teológicas” (São Bernardo do Campo, UMESP, 1993, 230p). Nela, acompanho o surgimento do evangelicalismo contemporâneo, identificando-o como um filho rebelde do fundamentalismo norte-americano (e não como costumam fazer alguns evangelicais quando colocam o fundamentalismo como um evangelicaismo radical). Ao meu ver, o que hoje chamamos “evangelicalismo” (posição com a qual se alinha o bispo Robinson), embora preserve alguma linha de continuidade com o movimento evangelical do século XIX, é muito mais herdeiro do fundamentalismo do século XX. Não há espaço aqui para apresentar todos os argumentos históricos listados na dissertação dissertação. Porém, em linhas gerais, observo que o fundamentalismo das primeiras décadas do século XX sempre foi um movimento de reação mais do que de construção. Reagiu ao liberalismo teológico, à teoria da evolução, ao método histórico-crítico e seus derivados, ao movimento ecumênico, e pleiteava para si a condição de “cristianismo verdadeiro”. E como não existe teologia sem bases filosóficas, os fundamentalistas serviram-se da Filosofia do Senso Comum, formulada por Thomas Reid (1710-1796).

Contrapondo-se ao ceticismo de Hume e à crescente influência do perspectivalismo de Kant, Reid defendia que o conhecimento objetivo é acessível a qualquer pessoa. Desse modo, afirmava que os seres humanos são capazes de obter conhecimento real e objetivo, uma vez que a verdade é imutável, a linguagem humana é plenamente capaz de expressá-la integralmente e a memória de reconhecer objetivamente o passado e retransmiti-lo fielmente às gerações futuras. Aplicada à Bíblia, a filosofia do senso comum caía como uma luva – os escritores bíblicos foram infalíveis em tudo o que afirmavam, sua memória era plenamente fiel ao que relatavam e sua linguagem isenta de erros no que afirmava. A partir daí, os fundamentalistas criaram seu dogma mais inviolável: a infalibilidade e inerrância da Bíblia em tudo o que ela afirma. Porém, os fundamentalistas não eram tão ingênuos a ponto de interpretarem literalmente todas as passagens bíblicas. Sabiam que o texto sagrado precisava ser interpretado e passaram a investir numa hermenêutica fechada (“A Bíblia interpreta-se a si mesma”), que ignora instrumentais auxiliares extra-bíblicos (história, antropologia, lingüística, sociologia) ou só os utiliza quando forem convenientes.

Os líderes iniciais do fundamentalismo agrupavam-se principalmente no Seminário de Princeton, ligado à Igreja Presbiteriana dos EUA. O crescente radicalismo desse grupo causou problemas graves na PCUSA quando em 1924, mais de 1.200 pastores dessa denominação reagiram contra a intolerância fundamentalista. Em 1929, boa parte dos principais líderes fundamentalistas se desligou do Seminário de Princeton e fundaram o Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, sob a liderança de Gresham Machen e Carl McIntire. Nos anos 40, conflitos de poder afastaram McIntire de seu colaborar Harold Ockenga. Ockenga aceitava integralmente a teologia fundamentalista, mas questionava a agressividade de McIntire. Ockenga colaborou com E.J.Carnell na fundação do Seminário Teológico Fuller (um dos maiores centros divulgadores do fundamentalismo norte –americano na atualidade, e celeiro de muitas esquisitices ensinadas por Peter Wagner, como a “batalha espiritual” e a confissão positiva). O mesmo Ockenga liderou, em 1942, a criação da Nacional Association of Evangelicals, formada por líderes evangélicos teologicamente fundamentalistas, mas abertos ao diálogo com grupos pentecostais, o que lhes caracterizava como um grupo mais tolerante que o de McIntire. Ockenga referia-se a esse movimento como “neo-evangelical”: doutrinariamente fundamentalista, porém com maiores preocupações sociais e mais tolerância em relação aos que não fizessem parte do seu grupo. É a pedra fundamental do evangelicalismo contemporâneo.

O evangelical australiano Rowland Croucher atribui a Ockenga a expressão “neo-evangelicalismo”, e cita um trecho do sermão proferido por Ockenga quando foi instalado reitor do Seminário Teológico Fuller:

O neo-evangelicalismo abarca toda a ortodoxia do fundamentalismo quanto à doutrina, mas manifesta uma consciência e responsabilidade social que, estranhamente, estava ausente do fundamentalismo. O neo-evangelicalismo preocupa-se não apenas com a salvação pessoal, a verdade doutrinária e um ponto externo de referencia mas também (…) crê que os ortodoxos cristãos não podem abdicar de sua responsabilidade no cenário social .

Da Associação Nacional dos Evangélicos (grupo “fundamentalista tolerante”) criado por Ockenga vieram os principais líderes “evangelicais” contemporâneos, tais como Billy Graham, o maior líder da primeira fase do evangelicalismo contemporâneo. Graham foi um dos convocadores do Congresso Internacional de Evangelização Mundial (Lausanne I – 1974). Alguns palestrantes e oradores do Congresso de Lausanne não pouparam críticas ao CMI, e a igrejas e seminários não alinhados com o tipo de cristianismo por eles proposto. Além de Graham, destacaram-se em Lausanne dois nomes de peso entre os evangelicais: Francis Schaeffer (conhecido apologista do fundamentalismo e colaborador europeu de McIntire) e John Stott. Dentre os latino-americanos presentes, destacaram-se Samuel Escobar. Esse último, ao mesmo tempo em que criticou o fundamentalismo por ser uma “perversão do espírito bíblico”, elogia um trecho de The Fundamentals, escrito por C.R. Erdman, considerando-o um “paladino da fé” na preocupação pela defesa da integridade do Evangelho contra o liberalismo que, segundo ele, apresenta “o evangelho social de um Deus sem ira, disposto a salvar um homem sem pecados através de um Cristo sem cruz” .

Percebe-se no texto acima, de onde Dom Robinson Cavalcanti busca inspiração para compor sua palestra sobre “Os dois cristianismos” – na generalização apressada, condenatória e irresponsável de movimentos cristãos que, recusando-se a serem “dóceis e obedientes”, questionam o fundamentalismo.

Observemos no texto “Os dois cristianismos”, o esquema maniqueísta no quadro por ele pintado. De um lado está o que ele chama “liberalismo clássico, marcado por uma leitura racionalista (demitologizante) das Escrituras, pelo universalismo salvífico e pelo relativismo ético” (observo novamente que muitas posicionamentos éticos de Dom Robinson quanto à poligamia, divórcio ou relações sexuais pré-cerimoniais também são classificas de “relativistas” por alguns de seus críticos). A partir desse quadro, ele estigmatiza todos os que dele discordam, acusando-os de afirmar que “a Bíblia não é a Palavra de Deus, não é inspirada, não é fonte de revelação, nem é normativa”…”para essa leitura racional não existe satanás, nem inferno, nem perdição”. Toda essa argumentação é tributária de sua herança recebida nos quadros da Fraternidade Teológica Latino-Americana.

A FTL foi criada em 1970, após o CLADE I (Congresso Latino-Americano de Evangelização, 1969). A reunião se deu em Cochabamba (Bolívia) e nela estava presente Robinson Cavalcanti, que na época cooperava com a ABU. Nessa primeira consulta discutiu-se uma proposta hermenêutica capaz de fazer frente ao projeto hermenêutico-teológico do ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina). Um de seus líderes iniciais, Orlando Costas, afirmava que a FLT pretendia ser “uma alternativa evangélica às correntes representadas pelo movimento Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL)” . As palestras básicas da consulta de Cochabamba tocam por diversas vezes na crítica ao ISAL e ao seu então presidente, Julio de Santa Ana. Pedro Arana, por exemplo, terminou seu discurso, trinta e três anos atrás, com a mesma lógica maniqueísta sustentada atualmente por Cavalcanti: “Na ideologia do ISAL, Deus é traduzido como revolução; o povo de Deus como hostes revolucionárias; o propósito de Deus como humanização e a Palavra como escritos revolucionários. Ninguém pode deixar de ver que isto é humanismo marxista” . René Padilla, qualificou na época a teologia de Richard Shaull como “outro evangelho” .

Em suma, a FTL (grupo teológico no qual Dom Robinson Cavalcanti se formou), pelo menos em seu momento inicial, por mais que tentasse se desvencilhar de seu fundamentalismo de origem, sempre se caracterizou por um movimento muito mais reativo que construtivo, alimentando-se da crítica e desenvolvendo pouquíssima criatividade teológica relevante para a América Latina. O sucesso da FTL sobre o evangelicalismo latino-americano deve-se ao fato de passar uma imagem de “vanguarda evangélica”, avançando alguns passos à frente da mediocridade geral que dominava o pensamento teológico evangélico latino-americano na década de 70.

Dom Robinson Cavalcanti esteve presente ainda em outro momento significativo da história do evangelicalismo latino-americano: a organização da CONELA (Confraternidad Evangelica Latino-Americana) em 1982. A origem desse grupo foi, mais uma vez, reativa. Porém, dessa vez, curiosamente, a reação foi contra o próprio Comitê de Evangelização de Lausanne que organizara um Congresso de Evangelização em Pattaya (Tailândia), em 1980. Em Pattaya, durante o evento, cerca de 30 evangelistas latino-americanos reuniram-se secretamente, liderados por dois executivos da equipe de Luis Palau. Mostravam-se inconformados com a presença de Emílio Castro no encontro (na época, secretário-geral do CMI) e também preocupados com o processo de organização do CLAI e planejaram realizar também na América Latina, um encontro de evangélicos que pudesse dar origem a um organismo semelhante ao CLAI, porém de orientação conservadora, e não alinhado com o CMI. O resultado dessa reunião foi um encontro acontecido na Cidade do Panamá em abril de 1982, para organizar o CONELA. O presidente do Comitê Organizador era Asdrubal Rios, e o vice-presidente, era Robinson Cavalcanti, que mais tarde afastou-se do grupo devido à sua aproximação com o movimento Moral Majority liderado por Jerry Falwell e o predomínio de fundamentalistas extremos.

Na base de todos esses movimentos encontra-se o dogma mais caro ao fundamentalismo: a inerrância das Escrituras, sustentada pela Filosofia do Senso Comum de Reid. É impressionante como os fundamentalistas recusam-se a admitir que seu discurso é também uma teologia construída em bases extra-bíblicas (no caso, a filosofia de Reid). A partir desse discurso, fundamentalistas e evangelicais (muito difícil distingui-los teologicamente) afirmam conhecer objetivamente o plano e a vontade de Deus para todas as coisas, através das escrituras e dão pouca atenção para os estudos históricos tanto dos textos bíblicos quanto da própria seleção do material que mais tarde veio a tornar-se canônico. Para eles, toda a fé cristã desmoranaria, caso não se afirme até às últimas conseqüências a inerrância dos escritos bíblicos. Na lógica fundamentalista e evangelical, a fé depende do livro e não de Deus mesmo; portanto, se a Bíblia não for inerrante, ninguém poderá certeza da própria salvação, do que proclama ou crê, nem poderá distinguir o certo do errado.

Naturalmente que no decorrer da história, surgiram controvérsias no próprio meio evangelical em relação ao grau em que é possível afirmar a autoridade das Escrituras. Hoje em dia é muito difícil classificar quantos são os grupos evangelicais. A forma como interpretam a autoridade das Escrituras varia bastante desde Harold Lindsell até Jack Rogers, passando por John Stott. O próprio Dom Robinson Cavalcanti, afirmou aos participantes do Seminário de estudo sobre o Relatório de Virgínia em Curitiba, que hoje há mais de trinta grupos evangelicais diferentes. Não há tempo aqui de desenvolver uma avaliação mais precisa da hermenêutica evangelical, mas remeto os interessados ao meu texto “O movimento evangelical: considerações históricas e teológicas” que, pode ser encontrado na biblioteca da Universidade Metodista de São Paulo.

Em linhas gerais, o que estou afirmando aqui é que as argumentações atualmente defendidas por Dom Robinson Cavalcanti, vêm apenas explicitar sua vinculação histórica com o fundamentalismo. Certamente, ele negará isso com todas as forças e com toda sua capacidade retórica. Resta saber se sua negação será consistente. Por enquanto, até onde vejo, seus últimos textos retratam muito bem a lógica do “filho pródigo” que retorna ao seu lar e reconcilia-se com seu fundamentalismo original.

2.6. A retórica fundamentalista

Seria necessário desenvolver uma extensa argumentação explicativa a respeito da retórica fundamentalista a partir da ótica da sociologia da religião e da psicologia da religião. Como o espaço não nos permite fazer isso, pretendo apenas sugerir algumas idéias:

Uma das características do fundamentalismo é a legitimação do líder pelas verdades do passado. Nesse caso, o líder impõe sua autoridade sobre os fiéis de modo inquestionável, lançando mãos de idéias ou conceitos tidos como “verdades” no passado e estabelecendo-as como imutáveis. Abre-se aqui uma outra discussão: o próprio conceito de verdade, como algo absoluto que existe em alguma esfera transcendente e à qual temos acesso (trata-se da antiga discussão entre realismo e nominalismo). Os textos de Dom Robinson pressupõem que um conceito idealista, essencialista e abstrato de “verdade” como algo que se possui e que está definido em uma idéia. Vale lembrar que até alguns anos, boa parte dos teólogos cristãos acreditava piamente na “verdade” de que os negros são seres inferiores, destinados “naturalmente” a serem dominados, subjugados e escravizados pelos brancos. Alguns homens ainda pensam assim em relação às mulheres. Esse apelo a uma “verdade” encontrada no passado é típico dos movimentos fundamentalistas.

Outra característica do fundamentalismo diz respeito à busca de certezas e segurança num mundo que passa por mudanças aceleradas e incontroláveis. A reação mais própria aos que preferem a manutenção do mundo antigo está na afirmação de que os costumes antigos são “eternos” e “absolutos”. A partir daí, os fundamentalistas sempre procuram apresentar elos de continuidade entre seu movimento e a tradição de fé ou os costumes que desejam recuperar. Dessa maneira, o comportamento fundamentalista “sacraliza o que é originário, fazendo da letra do Livro, a grade inviolável da Palavra de Deus”, identificando o Espírito de Deus com a objetividade de sua linha escritural .

Conforme Moingt, o fundamentalismo (a) origina-se da vontade de defender a Bíblia contra os ataques do mundo moderno, como a descrença, a irreligião, imoralidade, secularização, e sobretudo contra os inimigos de dentro, que diminuem o caráter divino da Bíblia; (b) distingue-se por uma estrita identificação da palavra de Deus à letra mesma da Escritura e (c) singulariza-se por uma hostilidade em relação às concepções que enfatizam os autores e meios humanos da produção dos textos sagrados

A transmissão de verdades absolutizadas leva a tornar inquestionável a autoridade de quem as transmite e irrestrita a submissão dos que acatam sem discussão o caráter intocável daqueles conhecimentos. Em última análise, conduz à veneração da autoridade inquestionável do líder fundamentalista que as defende porque este, ao defendê-las, está defendendo também os estereótipos do agrado do grupo social que o segue. Conforme Alves, “o autoritarismo é resultado de uma obsessão emocional que exige que os riscos sejam transformados em conhecimento absoluto. No risco, a realidade permanece além do nosso controle. No conhecimento absoluto, afirmamos que conseguimos dominar intelectualmente o real . Nesse sentido, Lustosa refere-se ao fundamentalismo usando a expressão “gestão autoritária do sagrado”.

Essa “gestão autoritária do sagrado” aparece claramente na carta “Valores eternos, formas temporais”, onde ele defende “ações emergenciais de cuidado e supervisão que transcendam os limites geográficos”. Tal proposta deve ser vista com muita cautela. O que pretende ele? Buscar apoio para que outros setores da Comunhão Anglicana declarem a ECUSA “apóstata” e “herética”? Blank adverte que, no zelo santo de eliminar os opositores demonizados, “o passo para a intolerância, o fanatismo e a atitude inquisitorial não está longe , pois a ordem “imutável e eterna” tem de ser estabelecida a qualquer preço. Quem não aceita deve ser expulso, afrontado ou recuperado, mesmo contra a sua vontade. Neste fervor religioso, o fundamentalismo mostra sua face presunçosa, intolerante e arbitrária, apoiando novas inquisições sem fogueiras, e novas cruzadas contra infiéis (mesmo dentro do cristianismo – lembremo-nos que uma cruzada foi organizada especialmente contra os cátaros e bogomilos). Estamos aqui no perigoso terreno do fanatismo religioso, de um evangelicalismo xiita, caracterizado por Turcke como “o grito lancinante de uma fé medularmente ferida” .

3. A ameaça velada de cisma

Finalmente, chamo a atenção dos leitores para algo bastante preocupante nos últimos discursos e declarações de Dom Robinson Cavalcanti. Nas entrelinhas de alguns de seus textos anuncia-se uma firme disposição de romper os laços institucionais entre a Diocese Anglicana do Recife e a IEAB. Reconheço que eu mesmo me assusto quando leio alguns trechos. Minha reação inicial é afastar esse mal pensamento da cabeça. Porém, a cada novo texto distribuído, aumenta minha preocupação. Jacques Derrida tem ensinado a darmos atenção às “margens da filosofia”, ou seja, à mensagem que não aparece claramente nos textos, mas que estruturam os mesmos. Por isso devemos prestar atenção não apenas no que é dito e escrito, mas sobretudo naquilo que não é dito nem escrito explicitamente, mas que está nas entrelinhas ou nas margens dos textos. O que passo a expor abaixo pode ser apenas fruto das tensões do momento que nos predispõem emocionalmente a desconfianças que, espero, venham a ser infundadas. Ainda assim quero compartilhar com os leitores algumas impressões:

Falando em nome da Diocese Anglicana do Recife, Dom Robinson Cavalcanti afirma serem eles os guardiães de uma verdade revelada: “Continuamos a crer na doutrina dos apóstolos e a ensinar a ética bíblica e histórica em nossos documentos oficiais”. Tal frase diz muito, na medida em que lança sobre todos aqueles que ousam discordar do posicionamento oficial da DAR, de que não crêem na doutrina dos apóstolos nem ensinam “a ética bíblica e histórica”

Na carta “Fidelidade, Unidade, Esperança”, ele diz:

Sabemos que uma dificuldade adicional para a Diocese Anglicana do Recife reside no fato de que a nossa Província (IEAB), em grande parte, abandonou a posição dos nossos fundadores e hoje se alinha com o revisionismo norte-americano. Devemos afirmar a nossa autonomia diocesana (grifos meus), fortalecer os nossos Cânones e Resoluções Diocesanas com instrumentos legais de fidelidade à Palavra de Deus e à herança Católica e Reformada, e mantermo-nos informados, unidos e em comunhão com a maioria que comunga dos mesmos princípios no anglicanismo mundial.

Em outro trecho da carta, afirma” “Nossa prioridade é com a Missão Integral da Igreja em nosso país, com um cristianismo inculturado, relevante, terapêutico e profético, com um anglicanismo inclusivo no secundário e fiel no sagrado depósito, como alternativa para que a nossa Província (IEAB) reencontre a vocação legada por Kingsolving (sic) e o nosso protestantismo volte à Graça, às Escrituras e à Fé da Reforma do século XVI, criteriosos na importação de novidades e “ventos de doutrina”. Até Kinsolving (grafado erroneamente – “Kingsolving”, pelo menos no texto que recebi por email), foi invocado, o que não é comum nos textos de Dom Robinson.

Na carta “Valores eternos, formas temporais”, também lemos: “A Diocese Anglicana do Recife é uma Igreja local, jurisdição autônoma dentro de uma Província interdependente da Comunhão Anglicana (IEAB), parcela reformada da Igreja de Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica. Estamos, pois, por nossos Cânones e Resoluções conciliares, expressando a nossa comunhão com a Sé de Cantuária, afirmando e propagando a Fé e a Ordem histórica, estabelecidas no Livro de Oração Comum (LOC), e de boa fé dispostos a acatar as Resoluções dos órgãos colegiados e sinodais da Comunhão e da Província, sempre que não sejam contrários às Sagradas Escrituras e ao Ensino Apostólico da Igreja”… Essa grave situação, sem precedentes, requer ações emergenciais de cuidado e supervisão que transcendam os limites geográficos, levando-nos a um reestudo da nossa eclesiologia, com fronteiras de outras naturezas”. Entre outras coisas, a carta pastoral propõe à Diocese do Recife: “Aperfeiçoarmos os novos mecanismos de afirmação da autonomia diocesana”.

Essa insistência em reafirmar a autonomia diocesana da DAR (o que ninguém questiona), alegando ser uma “Igreja local, de jurisdição autônoma” é bastante preocupante. Espero sinceramente que eu não esteja lendo nada além do que está escrito.

Conclusão

Os textos distribuídos por Dom Robinson Cavalcanti são contraditórios em relação a muito do que ele mesmo já escreveu e defendeu no passado. Neles transparece uma argumentação tendenciosa e falaciosa. Até certo ponto isso é natural, pois quando uma pessoa tem fortes convicções de que uma idéia é correta, sua tendência será sempre a de proteger suas opiniões prediletas, mesmo não atentando a casos ou observações que não correspondam às suas opiniões. Geralmente fazemos isso inconscientemente, o que pode ser desculpável. Mas outras vezes fazemos conscientemente. Na carta pastoral “Amor e Verdade”, quando estabelece a polarização “Vida x Morte” e identifica os sinais de “vida” nas igrejas da África, o bispo tendenciosamente omite diversos problemas das igrejas africanas. Essa desatenção ou deliberada omissão caracteriza a tendenciosidade.

As argumentações do bispo Robinson são também recheadas de falácias bastante estudadas na lógica. Por exemplo, a falácia do “apelo popular” é por ele muito utilizada ao referir-se ao crescimento das igrejas africanas e insistir no “consenso da maioria”. Quando discutíamos algumas dessas questões em Curitiba, o bispo voltou a basear-se nessa argumentação, dizendo haver praticamente uma “unanimidade” nos principais setores da Comunhão Anglicana quanto ao problema homossexual. Todos sabem que essa própria afirmação é questionável. Ainda assim, lembrei-lhe de uma conhecida frase de Nelson Rodrigues sobre a qual valeria a pena meditarmos: “toda unanimidade é burra”.

Essa retórica falaciosa aparece também na utilização do argumento da “falsa causa”, ou seja, atribuir a causa de um problema a algo que, não constitui, na realidade, sua causa. Dom Robinson costuma fazer muito isso. Utilizou-se desse artifício na carta pastoral “Amor e Verdade” ao acusar as decisões da ECUSA de inviabilizar as relações ecumênicas e ao dizer que a “crise” na Comunhão Anglicana existe porque os “liberais” dominam as instâncias de poder e são manipulados pelos dólares da ECUSA e Canadá e libras de certos grupos britânicos. Não nego que isso eventualmente possa acontecer, mas ele omite também o fato de que muitos grupos africanos e latino-americanos são também pressionados a se posicionar de acordo com os interesses de grupos evangelicais e conservadores do anglicanismo, sob o risco de inviabilização financeira de certos projetos. Se isso acontece em ambos os lados, cabe perguntar: a que grupos internacionais o bispo Robinson pretende agradar e com quais interesses ?

Outra falácia por ele utilizada é o “apelo à autoridade”, que consiste em aceitar como verdadeira uma idéia porque uma autoridade do passado (seja um autor, teólogo, grupo, movimento ou igreja) a defende. Nasce daí um conceito estático de “Tradição”, bem mais católico-romano do que anglicano. No catolicismo há uma conhecida expressão que exemplifica esse conceito estático de Tradição preservada no Magistério: “Roma locuta, causa finita”. Talvez o que o bispo defenda, seja uma assimilação desse conceito ao anglicanismo, numa espécie de “Lambeth falou, tá falado!”. Não há mais espaço para discussão ou criatividade.

Valeria a pena também adentrarmos num tópico lembrado pelo Rev. Jerson Palhano, na manifestação pública que divulgou pela internet logo após a distribuição da Carta Pastoral “Amor e Verdade”. Ali o Rev. Palhano chama-nos a atenção para alguns pressupostos semânticos a partir dos quais se constrói a argumentação do bispo. Pressupostos semânticos são idéias não expressas explicitamente mas, de alguma forma contidas no próprio significado das palavras. Algumas são subentendidas pelo contexto ou pelo significado social. O bispo utiliza-se desse artifício não apenas na Carta “Amor e Verdade”, mas também no título de outro texto por ele distribuído: “Zé Carioca não é Pato Donald…nem Bambi” (distribuído em 06/08/2003). Nesse texto ele mais uma vez polariza um anglicanismo americanizado (“Pato Donald”) com um anglicanismo abrasileirado, identificado no personagem “Zé Carioca” (desconhecendo – ou omitindo, o fato de que esse personagem não é nada brasileiro, pois foi criado pela equipe de Walt Disney na política de aproximação EUA-Brasil no pós-guerra). Ao citar o personagem “Bambi”, um simpático veado criado pela equipe de Disney, está claramente associando o comportamento homossexual ao preconceito homofóbico na cultura brasileira.

Espero que esta minha análise seja recebida como uma contribuição a mais para desenvolvermos nosso senso crítico. Dom Robinson Cavalcanti precisa saber que há clérigos no Brasil que não estão dispostos a fazer parte de um grupo dócil e obediente, que ouve e lê, calado e atemorizado, a destilação de seus venenosos argumentos. Ao mesmo tempo em que reafirmo meu compromisso cristão de ser fiel “ao ensino, à disciplina e ao culto desta Igreja” (LOC, p.178), também reafirmo meu compromisso em defender “a dignidade de todo ser humano” (Aliança Batismal – LOC, p. 166 e 179). Finalmente, meu mais sincero desejo é que os futuros textos de Dom Robinson Cavalcanti se apresentem de forma mais dialogal e respeitosa, própria de um “Pai em Deus” que acolhe e abriga seus/suas filhos/as (mesmo rebeldes e desobedientes) e proporciona-lhes oportunidades para crescer e amadurecer, e não a atitude de um senhor feudal enclausurado em seu “castelo forte” (ou “forte apache”) delirando com índios imaginários.

Rev. Carlos Eduardo Brandao Calvani
Presbítero da Igreja de Deus
Diocese Anglicana de Curitiba – IEAB
Londrina, 21 de setembro de 2003
Dia de São Mateus, Apóstolo e Evangelista

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*