Autor: Osmar Ludovico da Silva
As Escrituras nos relatam que a primeira cena de violência foi o assassinato de Abel por seu irmão Caim. Ela acontece logo depois da queda de Adão e Eva, a rebelião primordial que tirou a humanidade de sua inocência e introduziu o mal neste planeta.
As causas da guerra e da violência não são só circunstancias sociais, econômicas, geopolíticas, mas decorrentes do pecado, da natureza caída do homem: “De onde procedem as guerras e as contendas que há entre vós, senão dos prazeres que militam na vossa carne” Tg 4.1. “Porque do coração do homem procedem os maus desígnios, “homicídios…”Mt 15.19.
As guerras foram freqüentes no Antigo Testamento contadas nos livros de Josué, Reis, Samuel e outros. A História é uma historia de guerras de conquista e dominação realizadas por exércitos poderosos e máquinas destrutivas. Generais desejosos de estender seu domínio surgiram através dos séculos: os persas, os gregos, os partos, os romanos, os árabes, os mongóis, os otomanos, etc.
Com a revolução industrial e o avanço tecnológico as guerras se tornaram cada vez mais devastadoras. Na Primeira Guerra Mundial (1914/18), um conflito envolvendo várias nações foram utilizados pela primeira vez trens, aviões, veículos e navios blindados, gazes venenosos, metralhadoras, telégrafos e balões de observação. Houve o genocídio dos armênios e morreram nesta guerra nove milhões de militares e 30 milhões de civis. Alguém ainda se lembra?
Na Segunda Grande Guerra (1939/45) as armas se tornaram ainda mais mortíferas. Utilizaram-se mísseis de médio alcance, bomba atômica e houve o genocídio dos judeus. Balanço desta guerra: 17 milhões de militares e 34 milhões de civis perderam suas vidas.
Desde então houve centenas de guerras civis e guerras entre nações.
A tese do pacifismo
A Igreja tem desde seus primórdios se posicionado com relação às guerras. Santo Hipólito (170/236) condenou o serviço militar, mas no ano de 300, com Constantino, o exército se tornou cristão. Desde então guerras têm surgido por questões religiosas envolvendo judeus, muçulmanos e cristãos, católicos e protestantes.
A tradição pacifista mais forte surgiu com os Valdenses que condenaram qualquer tipo de guerra. Basearam-se no Sermão do Monte que foi tido como fonte de princípios cristãos para qualquer situação. Entre eles, foi destacado o de não oferecer resistência ou revidar à agressão mesmo com risco de vida. As guerras do Antigo Testamento eram consideradas como concessões de Deus face à dureza do coração humano. As atitudes de Jesus com seus algozes, no Sinédrio, diante de Pilatos e no Calvário foram vistas como bases bíblicas para a não violência.
A linha pacifista que se recusa, por exemplo, a servir o Exército expressa um genuíno desejo de paz num mundo que procura resolver seus conflitos através da força e da violência. Quackers e alguns menonitas adotam esta linha que tem em Martin Luther King seu principal herói e Gandhi sua grande inspiração.
A tese da guerra justa
No entanto, tem predominado na História da Igreja a linha da guerra justa. Aqui se faz uma diferença entre as esferas pública e privada. Na esfera privada o risco é pessoal, então eu escolho dar a outra face. A esfera pública se caracteriza pela função de protetor: governante, magistrado, pai, mãe, irmão mais velho. Significa que posso resistir e revidar diante de uma agressão injusta que envolve um risco para outras pessoas inocentes que estão debaixo da minha proteção. Assim algumas guerras seriam justificadas.
A maioria ortodoxa, protestante e católica adota esta linha.
Foi Agostinho (354/430) quem primeiro desenvolveu uma lista de critérios para uma guerra justa. Mais tarde Thomas de Aquino em sua Suma Teológica enumerou três critérios:
1) A guerra deve ser declarada por uma autoridade legitimada.
2) Existe uma causa: algo que é considerado justo foi violado.
3) A guerra deve ser para deter o mal e fazer avançar o bem.
Lutero e Calvino endossaram a idéia de que uma guerra é justificável quando detém o mal, promove a justiça e traz a paz e o bem-estar.
Mais tarde dois outros critérios foram acrescentados:
4) A guerra deve ser declarada quando se esgotaram as tentativas diplomáticas e pacíficas para a solução.
5) O princípio da proporcionalidade deve ser respeitado: o custo da guerra é menor do que o custo de permitir que a situação injusta se perpetue e se espalhe.
Há vários argumentos no Antigo Testamento com Abraão, Josué e Davi, por exemplo, que fizeram guerras e chefiaram expedições militares e ainda assim foram aprovados por Deus.
Há outros textos como, por exemplo: Hb 11.32-34 que se refere aos êxitos militares como demonstração de fé e exemplos para os crentes do Novo Testamento. Lc 3.14 onde João Batista não diz para deixar o exército. Lc 7.9 onde Jesus diz que nem em Israel ele havia visto uma fé como a do centurião. Ou ainda Rm 13.4 quando Paulo afirma que a autoridade é ministro de Deus que traz a espada para castigar quem pratica o mal.
Parece tão paradoxal que haja tais argumentos para justificar a guerra. Paradoxal como o amor e a ira de Deus, ou como os títulos divinos de Príncipe da Paz e Senhor dos Exércitos.
A linha da guerra justa é uma forma de resistir ao mal. De fato, todos aqueles que querem impor a dominação de forma injusta e tirânica, encontrarão homens e mulheres determinados a resistir e preparados a defender com suas vidas a liberdade e justiça. A guerra dos aliados contra o nazismo foi uma guerra justa e Dietrich Bonhoeffer é o exemplo do que estamos falando.
A guerra do Iraque
Chegamos na atual guerra das forças americanas e britânicas contra o Iraque. A primeira coisa que constatamos, com espanto e tristeza, é o discurso religioso da administração George Bush II. Juntamente com seus principais assessores, professam a fé cristã, se reúnem na Casa Branca para orar e ler a Bíblia e promovem uma guerra para “vencer o eixo do mal e promover a liberdade e a justiça”. Isto com o apoio da maioria dos pastores e crentes norte-americanos.
Não, esta não é uma guerra justa, mas uma guerra de uma grande e arrogante potência que quer dominar e estender seu controle sobre a segunda maior reserva de petróleo do mundo. Crentes fundamentalistas equivocados, que representam o complexo industrial militar e a industria do petróleo, estão na Casa Branca prontos para aniquilar centenas de milhares de vidas inocentes ao custo de mais de 100 bilhões de dólares. Concordamos que Saddam Hussein seja um ditador, mas com certeza há outras prioridades no que tange ao mal que assola o planeta como, por exemplo, a fome no mundo, o problema da aids na África, a teia multinacional do narcotráfico.
O que move a administração Bush é o desejo de poder, autonomia, a matriz do pecado original. Constamos com temor e tremor que o pior mal não é o mal dos ímpios, mas o mal travestido de piedade religiosa, o mal em nome de Deus. Não podemos, no entanto incorrer no erro de condenar toda a nação americana. Há muita gente nas passeatas pela paz, alguns como o evangelista Leighton Ford e batista Jimmy Carter já condenaram a guerra. E certamente outros pastores e líderes evangélicos se deram conta do que está acontecendo e rejeitaram esta retórica bélica equivocada.
Esta é uma guerra injusta, os Estados Unidos violaram o direito internacional ao desdenharem as deliberações do Conselho de Segurança. Não conseguiram provar que o Iraque possuía armas de destruição em massa e sequer que Saddam Hussein representasse uma ameaça concreta à segurança interna dos Estados Unidos.
O que mais me preocupa é discurso o cristão da administração Bush. A revista Newsweek na sua edição de 10 de março último tem na sua capa o presidente norte-americano de cabeça baixa, orando de olhos fechados. A reportagem “Bush and God” relata o seu itinerário espiritual desde sua conversão até sua eleição para presidente. Não há porque duvidar da sinceridade de sua conversão e de sua fé. Mas, considero um delírio quando ele afirma (pg. 10 Newsweek) que “nosso país foi escolhido por Deus e comissionado pela história para ser um modelo de justiça para o mundo”.
A igreja evangélica brasileira tem relações muito próximas com o evangelicalismo norte-americano e somos gratos a Deus por isto. Muitos missionários, tanto de agencias como de denominações, estiveram envolvidos na evangelização e no ensino da Bíblia no Brasil nas últimas décadas. Muitos pastores brasileiros estudaram nos Estados Unidos e hoje vive naquele país uma numerosa comunidade evangélica tupiniquim.
Estamos diante de um quadro atemorizante que mistura na Casa Branca o fundamentalismo conservador com o complexo industrial militar e petroleiro. Mistura um discurso evangélico com o desejo de dominar o mundo pelo uso do poder econômico e também pela força das armas. Mistura o ideal cristão de justiça e liberdade com a utilização de uma tecnologia de destruir e matar sem precedentes na História.
Conclusão
Assim, para terminar quero reafirmar com toda minha convicção que esta é uma guerra injusta, não havendo qualquer fundamento bíblico ou precedente histórico para que os cristãos dêem o seu apoio. Ao contrário, devemos condená-la e chamar ao arrependimento todos os pastores e crentes que, equivocadamente, sejam favoráveis a ela.
Quanto a nós, resta-nos pedir perdão e que o Senhor tenha misericórdia de nós, nos desarmando de nossas atitudes e palavras agressivas, violentas, vingativas e preconceituosas no contexto de nossos relacionamentos pessoais, na família, na igreja e na sociedade. E viver como ministros da reconciliação, fazendo o bem e orando pela paz no mundo.
Curitiba, 22 de março de 2002.
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