Autor: Meir Bair-Ilan
Bar-Ilan University, Ramat Gan 52900 Israel
INTRODUÇÃO:
Apesar do conceito de crianças maltratadas ser relativamente novo, há suficiente evidência de que o fenômeno está profundamente enraizado na história da humanidade. No mundo moderno, a família judaica é apresentada, algumas vezes, como uma maravilhosa família. Embora a violência familiar pareça não existir na História do judaísmo, em termos de pesquisa é realmente uma incógnita.
O presente estudo explora esta área esquecida da história social do Judaísmo, pesquisando na Bíblia e na literatura talmúdica (leis do Judaísmo). Estas fontes de pesquisa nos mostram vários exemplos de crianças sujeitas a duras medidas disciplinares, resultando em castigos físicos e até mesmo na morte.
Essas fontes mostram a natureza violenta do universo infantil na Antigüidade. Entre o povo judaico, assim como entre outros povos, as crianças eram espancadas e até mesmo mortas – uma prática que era aprovada e até encorajada pelas autoridades sociais da época. De fato, as crianças eram maltratadas em todas as classes sociais, da criança mais pobre até a criança mais rica.
Hoje em dia nós ouvimos falar bastante sobre abusos contra crianças e os jornais diariamente noticiam tais tragédias. Embora este fenômeno existisse no mundo pré-moderno, ele raramente recebia alguma atenção naquela época e certamente não era objeto de preocupação. Quando bater em crianças era a norma, o abuso infantil não era considerado um mal social. Evidentemente, a consideração do fenômeno da criança espancada como problema é um corolário do tipo e do status da infância na sociedade [1].
Enquanto uma questão histórica, sua validade depende da própria orientação historiográfica de cada um: se o escritor/leitor de história estiver mais interessado no mundo político ou no reino social. Pode-se argüir que as questões políticas são mais atraentes e “quem lutou com quem?” pode ser uma pergunta mais interessante que “qual criança apanhou ou por quê?”. De fato, a preferência de cada um na leitura de jornais – começando com a primeira página ou com as páginas de dentro-poderia ser considerada como uma analogia à questão em estudo.
(*) Tradução: Anna Maria Takahashi, psicóloga . Revisão: Dra. Maria Amélia Azevedo/LACRI-IPUSP. Consultoria: Abrão Bernardo Zweiman – Diretor das Faculdades Renascença. Especialista na área da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pelo TELELACRI/IPUSP.
A problemática da criança espancada na Antigüidade – que evidentemente é parte da história social – não passa de um reflexo da atitude dos adultos para com as crianças e de seu conceito de infância em geral.
Embora o propósito deste estudo seja analisar a violência contra a criança judia, ele deve ser colocado dentro de um contexto mais amplo de abuso contra crianças em geral. Primeiramente deve ser observado que o estudo da infância – para não falar da violência em família – é muito recente. Qualquer estudo da infância tem suas raízes em Ariès [2], embora a compreensão de que as crianças foram exploradas ou maltratadas de alguma forma pelos adultos durante várias gerações também tenha sido abordada explicitamente por outros autores [3].
Que a violência contra criança difere de outras formas de violência, fica claro quando se consideram suas raízes.
Enquanto o domínio de uma sociedade sobre outra é usualmente uma questão cultural, o domínio de adultos sobre crianças é uma questão biológica: a fragilidade da criança e sua dependência dos adultos. Além disso, sempre foi reconhecido o fato de que as crianças precisam ser educadas e, até recentemente, isto significava o exercício de qualquer atitude disciplinar que se julgasse ser necessária, incluindo o uso de chicotes, varas ou qualquer coisa parecida . A violência contra crianças não é somente um capítulo da história da Humanidade, mas também um segmento do estudo do comportamento humano, um capítulo da história da violência em geral.
O que se tem dito sobre as crianças em geral também se aplica às crianças judias [4]. O mito da família judaica ideal, no qual todo judeu busca ser o modelo perfeito de vida familiar, é somente um mito; as atitudes dos adultos em relação às crianças não são de acordo com que é desejado. Felizmente, acadêmicos judeus não esperaram por Ariès e nem mesmo por Radbill para investigar este assunto. Já no início deste século estavam conscientes de que judeus adultos tratavam violentamente as crianças [5].
Por razões históricas, as discussões a seguir serão apresentadas em ordem cronológica, começando com os textos bíblicos e prosseguindo com a literatura pós-bíblica.
A – Na Bíblia
A “lei do filho rebelde” (Deut. 21-18-21)(*) mostra o primeiro exemplo de pais batendo em seus filhos:
“Se um homem tiver um filho indócil e contumaz, que não atende à voz de seu pai ou de sua mãe, e mesmo que o castiguem não lhe dá ouvidos, ele será levado aos anciãos da cidade… Então, todos os homens da cidade irão apedrejá-lo até levá-lo à morte”.
Infere-se que quando um caso é levado à Corte, o filho desobediente já foi admoestado e batido pelos pais. A surra ocorre somente após os meios de persuasão verbais terem falhado. Se os pais constatassem que a criança continuava fazendo coisas erradas, apesar dos conselhos, eles poderiam apelar para a surra. Eles bateriam no filho para ensiná-lo e, talvez, até salvá-lo da morte mais tarde, quando os envolvimentos em crimes sérios seriam punidos com a morte. Assim, os pais apelariam para os juízes (os mais velhos) somente em último caso. Estava implícita nesta lei bíblica a noção de que bater numa criança era uma atitude natural e até mesmo uma necessidade, já que essa punição seria para o próprio bem da criança (mesmo que a própria criança não concordasse com isso) [6].
Esta noção, expressa na “lei do filho rebelde”, encontra sua aprovação no Livro da Sabedoria, através de várias citações. Por exemplo, nós lemos nos Provérbios: “Corrige teu filho enquanto ainda há esperança, mas não te enfureças até fazê-lo perecer”. (19:18); “Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na hora precisa”(13:24); “Não afaste a disciplina de uma criança. Se você bate-lhe com uma vara, ela não morrerá. Se você bate-lhe com uma vara, salvará sua vida do Inferno”(23:13-14). Estes exemplos servem para mostrar que a premissa básica dos pais e educadores citados na Bíblia é a de que é melhor bater numa criança do que tratá-la brandamente; uma educação severa nos estágios iniciais de sua vida irá beneficiá-la no futuro.
Em verdade, este conselho é confirmado também pelas palavras de Ben Sira (30:1-2): “Aquele que ama seu filho castiga-lo-á freqüentemente a fim de que ele possa vir a ser uma alegria para ele quando crescer. Quem desaponta seu filho estará beneficiando-o e orgulhar-se-á dele entre os íntimos”. Obviamente, nada de novo aqui, mas tão somente uma continuação da filosofia educacional da Bíblia..
O fato é que a noção de disciplina é um dos objetivos da educação, que é partilhada por várias escolas educacionais desde os tempos antigos até os dias de hoje [7]. Obviamente, aqueles que batem em seus filhos foram convencidos de que é melhor bater na criança enquanto ela é ainda pequena; de outra forma a criança continuará com o seu mau comportamento até o ponto em que será temida e odiada pela sua família. Resumindo, a “lei do filho rebelde” expressa esse princípio que se encontra no Livro dos Provérbios e Ben Sira, que fazem parte da Literatura da Sabedoria, e [cujo objetivo] é salvar os filhos de punições mais severas da sociedade (e até mesmo da morte), melhorando as relações familiares futuras.
B – No Talmud(*) Não há registro de que tenha sido aplicada (No
ta da revisora).
Obviamente, os testemunhos bíblicos servem como um apoio para entender o mundo violento em que vivia a criança na era pós-bíblica. Entretanto, o Talmud apresenta muito mais detalhes do que a Bíblia. Isto porque comparado à Bíblia (parcialmente elitista, pelo menos no Livro dos Provérbios), o Talmud é muito mais popular e reflete a vida diária das pessoas.
A literatura talmúdica dá vários exemplos de pais que batem em seus filhos com propósitos educacionais. Às vezes, essas surras são tão severas que a criança sofre lesões sérias, chegando até mesmo à morte.
1 – O pai que bate e o professor que disciplina
Em t. B. Qam 9:11 (ed. Lieberman p.44) está escrito:
“O pai que bate no seu filho ou o professor que disciplina o seu aluno: qualquer um que tenha batido e machucado – será absolvido. Entretanto, se a criança for machucada sem razão – eles serão considerados culpados”.
Em outras palavras, a Corte deve decidir o que é considerado como uma punição razoável. Dentro desses parâmetros, bater nas crianças não é só permitido como também é uma ocorrência muito provável para elas. Já os pais ou o professor que exercem a tarefa de disciplinar não sofrem conseqüências legais. Além disso, a ligação entre pais e professor, conforme manifestado na regra acima, sugere que o direito do professor de bater na criança deriva da autoridade do pai. Quando um pai entrega seu filho para o professor, ele espera que este exerça sua autoridade exatamente como ele o faria. Isto dá ao professor o direito de usar atitudes severas de punição.
(*) O Talmud é uma coletânea de leis e interpretações da Torá
2 – O professor-escriba que bate
Em t. B. Qam. 9:31 (ed. Lieberman p.49) está escrito:
“Se ele bate com as costas de sua mão, com papel, com uma pinax, com couro não tratado, com um tommus(*) em seu poder – ele pagará 400 zuzei(**), não pela dor causada mas pela humilhação infligida, etc”.
Os vários itens mencionados neste texto sugerem que esta regra era parte da vida diária. O indivíduo mencionado é o escriba, que na Antigüidade funcionava como professor, não apenas ensinando, mas também disciplinando. Neste caso, ele ensina em casa, não na escola, e exibe sua raiva atingindo a criança com o que tiver em mãos: papel(***), pinax, pele(****), tommus [8] ou com qualquer outro equipamento de escrita. Os sábios condenam o uso desses objetos, em vez da correia ou algo semelhante, com base na argumentação de que tais medidas disciplinares não convencionais humilham a criança em vez de ensinar-lhe uma lição. Isto se coaduna com as modernas teorias que consideram a humilhação uma forma de violar a boa educação, já que é psicologicamente danosa e contraproducente.
3 – O professor-escriba: quem bate
Em t. Sukk, 2:6 (ed. Lieberman p. 263) está escrito:
“Um exemplo de um escriba que entra na escola e diz: tragam-me uma correia! Quem fica preocupado? É aquele que sempre apanha”.
Isto é, antes que o professor-escriba entre na sala de aula mune-se de uma correia para bater nas crianças por seu mau comportamento, presente ou passado [9].
4 – O professor-escriba que mata
Em Sifre-Zuta, em Num 35:21 (ed. Horovitz p. 333) está escrito:
Considerando estar escrito “o atacante será levado à morte” – é (verdade) que todos os que batem são levados à morte? Que dizer do jovem que ataca alguém, ou de um idiota que golpeia outrem, ou do professor-escriba, ou de quem ensina menininhos ou de quem bate segundo as normas da Corte, ou de quem bate por estar “fora de si”: deveriam eles ser punidos? Está escrito (Exod 21:14) “Quando um homem trama contra um outro”, (o que significa): exceto quando não é intencional, exceto quando é jovem, etc.
(*) colar de contas
(**) moeda da época
(***) papiro
(****) pele de carneiro seca e tratada
Os termos deste halakhah(*) sugerem que os sábios conheciam casos verídicos de professores de criancinhas ou de professores de escribas aprendizes (meninos adolescentes) que bateram tão cruelmente em seus discípulos que estes morreram. Deve ter havido casos similares quando um pai batera em seu filho fora de si (presumivelmente para educá-lo) acabando por levá-lo à morte. Todos esses assassinos não são puníveis pela morte, em conseqüência de sua conduta abusiva. Deve-se observar que um famoso rabino (Rav, R. Radda, que viveu na Babilônia, no 3o século) ensinou que quando um professor desejar bater em uma criança deverá fazê-lo com a correia de seu sapato para suavizar a surra [10].
5 – Um pai que mata, não intencionalmente
Em m. Mak. (**) 2:3 os sábios ensinaram: “um pai pode ir para o exílio por causa de seu filho e um filho pode ir para o exílio por causa de seu pai”.
Por outras palavras: com base na lei bíblica (Num 35:9-34; Deut 19:1-13) a Mishná (***) estatui, que se um pai matou seu filho não intencionalmente, ele deveria ir para o exílio (****). Presumivelmente, esta Mishná objetiva rejeitar a idéia de que o pai não deveria ser punido, seja porque não haveria ninguém para vingar o sangue da criança ou porque o bater teria sido motivado por amor e interesse pela prole.
6 – O pai assassino – uma tragédia familiar
Em b. Hul, 94 aparece esta história: “Certa vez, em tempos de escassez, um homem convidou três pessoas a visitá-lo em casa. Ele só tinha três ovos a oferecer-lhes. Quando o filho do anfitrião entrou, um dos convidados tomou sua porção e deu-lha; o segundo convidado fez o mesmo, assim como o terceiro. Quando o pai da criança chegou e viu-a com um ovo na boca e os outros dois nas mãos, [tomado de raiva] ele atirou-a ao chão, provocando-lhe a morte. A mãe da criança vendo isto, subiu ao telhado e atirou-se ao solo, morrendo também. O pai então subiu também ao telhado e jogou-se de lá, vindo a falecer” [11].
(*) legislação religiosa judaica
(**) Volume do Talmud
(***) Comentarios sobre o Pentateuco
(****) O exílio significa em realidade asilo em um de seis lugares (3 em Canãa e 3 do outro lado do Rio Jordão) a fim de escapar ao vingador de sangue: parente ou preposto que deveria vingar o morto.
Neste caso, as duras condições de vida levaram à tragédia… O pai queria ensinar boas maneiras a seu filho (ele não deveria subtrair a comida dos hóspedes!) mas, ao discipliná-lo, este morre. A história continua com o suicídio da mãe, seguido do do pai, de modo que a família inteira se acaba em pouco tempo: traumatizado pela dor (e talvez por sentimentos de culpa) o pai considerou impossível sobreviver à morte do filho e da esposa pondo, então, fim à própria vida [12].
7 – Um pai que é patologicamente violento
No contexto da discussão do censo do Rei Davi de Israel e suas dolorosas conseqüências, o Midrash põe em questão porque todo o povo de Israel deveria sofrer pelos pecados de um único indivíduo. Explicando o verso que comunica a intenção do anjo de destruir Jerusalém (Samuel II 24:16), o sábio traça a seguinte analogia: “Com quem se parece Davi naquela hora? Com alguém que bate em seu filho sem que este saiba as razões da punição” [13].
Presumivelmente, o sábio conhecia tal caso na vida real e inferiu que sua audiência estava também familiarizada com esses casos de pais batendo nos filhos “sem qualquer motivo justo”. A respeito desse “bater patológico” pode-se argumentar, segundo um (provérbio árabe), que o pai podia bater no filho porque mesmo que ele não tivesse uma boa razão para isso, certamente a criança saberia o porquê. É evidente que a sociedade que trata os problemas educacionais com violência promove a idéia de que violência é um modo educacional legítimo. É preciso banir esses impulsos obscuros (dark impulses) no sistema educacional contemporâneo.
8 – O rei que bate em seus filhos
O Tratado Semahot 8:11 oferece o seguinte exemplo: “Rabino Akiba conta que um rei tinha quatro filhos. Um deles apanha e fica quieto; o outro apanha e desafia; o terceiro apanha e suplica enquanto o último diz a seu pai: “castiga-me”!” [14].
Evidentemente, o sábio e sua audiência sabiam bem que não apenas o povo mas também a família real batia em seus filhos. Por outras palavras, o exemplo revela uma verdade oculta: o próprio rei bate em seus filhos (logo esta prática não era privilégio dos pobres).
9 – O rei que mata seu filho
Em Gen Rabbá 28:6 (ed Theodore-Albeck, p 265) aparece este caso:
[Do homem que age
como animal (Gen 6:7)]; Rabino Yudah afirma: [é como] um rei que entregou seu filho a um pedagogo e este levou-o ao mau caminho. O rei ficou zangado com seu filho e matou-o . Disse o rei: “quem levou meu filho pro mau caminho foi esta pessoa e agora meu filho morreu, enquanto ele vive”. Este é um “homem que age como um animal”.
Em resumo, as ações de Deus, tal como narradas no Gênesis, são explicadas através de um exemplo extraído da vida diária: o rei cujo ódio levou-o a matar seu filho (ou por suas próprias mãos ou através de uma ordem da Corte Judicial). Como este exemplo é uma espécie de analogia, parece certo que a audiência estava familiarizada com tais situações.
10 – Uma rainha que bate em seu filho
Explicando o verso “Palavras de Lemuel, rei de Massá, que tinha sido castigado por sua mãe” (Prov 31:1), Midrash Tanhumá (Exodus 1) diz o seguinte:
“Esta é a virtuosa Bat-Shevá que castigou Salomão, seu filho como está escrito em “As palavras de Lemuel, rei de Massá, que foi ensinado (literalmente castigado) por sua mãe” (Provérbios 31:1). Rabino Yossi ben Hananyá disse: quem é Massá, castigado por sua mãe? Ele ensina que Bat-Sheva encostou (Salomão) em seu pilar e bateu nele com uma vara, castigando-o . O que ela estava dizendo a ele?” [15].
Evidentemente, na família real não apenas o rei bate em seus filhos, mas também a rainha, como é vividamente descrito pelo sábio. Assim, as crianças da família real estavam sujeitas às mesmas punições que aquelas do povo, podendo pois, como estas, vir a falecer em conseqüência.
C – ANÁLISE SOCIAL:
No conceito antigo de punição, a punição física significava a chicotada, amputação física de algum membro e até mesmo a morte. Para o próprio pecador, assim como para outros pecadores potenciais, a dor física envolvida nestas punições demonstrava de modo inequívoco as conseqüências de má conduta. Como numa sociedade patriarcal, o “pai de família” era também o “senhor da família” (pátria potestas), a percepção da punição como uma ferramenta educacional deu licença para todo homem bater em seu próprio filho, supostamente para o bem dele. Assim, a estrutura social, junto com a percepção do crime e da punição, estabeleceram o bater em crianças como norma social.
As pesquisas mostram que o bater em crianças (por parte de seus responsáveis) estava presente em todas as camadas sociais. Toda criança, desde o filho de uma família real, até a criança mais pobre, estava sujeita a esse tratamento cruel. Quando a criança ia para a escola, ela também podia apanhar lá, pois o professor recebia dos pais a autorização para tal punição.
Este fenômeno psico-social pode ser melhor entendido quando comparado com o comportamento aceito no moderno mundo ocidental. Na sociedade moderna, a punição física é proibida por lei, eliminando assim uma das principais “razões” para disciplinar as crianças em casa, batendo nelas. Além disso, os professores são proibidos de bater em seus alunos indisciplinados. Assim, o conceito moderno de educação de crianças proíbe qualquer forma de punição física, seja qual for o pretexto, mesmo que a lei compreenda tais casos como sendo uma “prática pedagógica”.
No Talmud está escrito: “se eles machucarem injustamente, eles serão considerados culpados”. Isto sugere que nem todos os casos de surra em crianças são justificáveis, razoáveis e até mesmo desejáveis. Assim, a autoridade dos pais de baterem em seus filhos estava dentro de certos limites.
Estudos modernos normalmente separam o bater nas crianças de outras formas de abuso contra crianças, tais como: abuso sexual, exploração do trabalho infantil, prostituição infantil, etc. [16]. De fato, apesar da necessidade de considerar o fenômeno – crianças espancadas – dentro de um conceito mais amplo, esta distinção parece ser válida também na sociedade judaica da Antigüidade. Significativamente, as fontes judaicas antigas não trazem registros de violência [não disciplinar] contra crianças [17], em contraposição a relatos europeus populares, correspondentes a tempos posteriores [18]. Talvez esta ausência possa ser considerada um indício da freqüência relativamente baixa da violência “não disciplinar” dirigida a crianças no mundo judeu.
CONCLUSÃO:
Na Antiguidade, bater em crianças fazia parte da vida diária, sendo esse comportamento aceito em toda parte, tanto entre judeus quanto entre não-judeus. Crianças pequenas era objeto de violentos tratamentos por parte de seus pais, supostamente com fins educacionais. Esta violência estava intrinsecamente relacionada às condições sociais do povo judeu para o qual a violência estava presente em todos os setores da vida, sem contudo haver meios de atenuar esse sofrimento.
As fontes antigas que apontam para a prevalência desse fenômeno são fundamentadas por fontes judaicas medievais [19]. Todas as fontes evidenciam que nos tempos antigos a criança judia, como qualquer outra, apanhava de seus pais e mestres. Esse fato não deverá ser ignorado quando se avaliar a questão da infância judaica na Antiguidade.
NOTAS:
[1] Karras M. and J. Wiesehvfer, Kindheit und Jugend in der Antike, Eine Bibliographie, Bonn: Habelt, 1981; Valerie French, “Children in Antiquity”, Haws, Joseph M. and N. Ray Hiner (eds.), Children in Historical and Comparative Perspective: An International Handbook and Research Guide, New York: Greenwood, 1991, pp. 13-29.
[2] P. Ariès, Centuries of Childhood: A Social History of Family Life (translated by R. Baldick), New-York: Alfred A. Knopf, 1962.
[3] L. deMause, “The Evolution of Childhood”, Lloyd deMause (ed), The History of Childhood, New York: The Psychohistory Press, 1974, pp. 1-73; Samuel X. Radbill, “Children in a World of Violence: A History of Child Abuse”, Ray E. Helfer and Ruth S. Kempe (eds.), The Battered Child, Chicago and London: The University of Chicago Press, 1987, pp. 3-22.
[4] M. Bar-Ilan, “Childhood and its status in Biblical and Talmudic Societies”, Bet-Mikra, 40/140 (1995), pp. 19-32 (Hebrew).
[5] Elizabeth Bellefontaine, “Deuteronomy 21:18-21: Reviewing the Case of the Rebellious Son”, Journal for the Study of the Old Testament, 13 (1979), pp. 13-31; Don C. Benjamin, Deuteronomy and City Life, Lanham – New York – London: University Press of America, 1983, pp. 211-221.
[6] Patrick W. Skehan and Alexander A. Di Leilla, The Wisdom of ben Sira, A New Translation with Notes (The Anchor Bible), New York: Doubleday, 1987, p. 373.
[7] John J. Pilch, “Beat His Ribs While He is Young” (Sir 30:12): A Window on the Mediterranean World, Biblical Theology Bulletin, 23 (1993), pp. 101-113; A . Lemaire, “The Sage in School and Temple”, John G. Gammie and Leo G. Perdue (eds.), The Sage in Israel and The Ancient Near East, Winona Lake: Eisenbrauns 1990, pp. 165-181 (esp. 175).
[8] S. Lieberman, Hellenism in Jewish Palestine, New York: The Jewish Theological Seminary of America, 1962, p. 206 n. 30.
[9] M. Aberbach, Jewish Education in the days of the Mishná and Talmud, Jerusalem: Mass, 1983, pp. 236 ff. (Hebrew), for more cases like the one mentioned.
[10] b. B. Bat. 21a.
[11] I. Epstein (ed.), The Babylonian Talmud – Seder Kodashim, Hullin, London: The Soncino Press, 1948, II, pp. 528-529.
[12] E. Durkheim, Suicide: A Study in Sociology, trans. J. A. Spaulding & G. Simpson, London: Routledge & Paul, 1952.
[13] Midrash Samuel (ed. S. Buber), Krakow 1893, p. 138 (Hebrew); Yalqut Shimoni on 2 Samuel, remez 165, p. 744 (Hebrew).
[14] D. Zlotnick, The Tractate “Mourning” (Semahot), New Haven and London: Yale University Press, 1966, p. 61.
[15] b. Sanh. 70b; Num Rabba 10; Midrash on Proverbs (ed. Buber), ch. 31.
[16] Keith R. Bradley, Discovering the Roman Family: Studies in Roman Social History, New York – Oxford: Oxford University Press, 1991.
[17] A única história excepcional aparece
em 2 Kgs 2:23-25, onde crianças que fizeram escárnio de um velho profeta foram castigadas, sendo condenadas a serem comidas por ursos. Alguns estudiosos modernos consideram esta história como um “conto de fadas da vovó”.
[18] Dina Stern, Violence in a Charming World – a study in the violent character of the feminine legend for children, Ramat-Gan: Bar-Ilan University Press, 1986 (Hebrew). O subtítulo sugere que estas lendas foram contadas por mulheres para crianças. Ainda, lendas sobre violência (inclusive violência contra crianças) poderiam ter sido dirigidas aos homens, ou como contadores de estórias ou como ouvintes. Veja exemplos: N. Postman, The Disappearance of Childhood, New York: Dell, 1982; Z. Shavit, “The Concept of Childhood and Children`s Tales”, Jerusalem Studies in Jewish Folklore, (1983), pp. 93-124 (Hebrew).
[19] I. Oron, “Corporal Punishment in Children`s Education”, Or HaMizrah, 24 (1975), pp. 116-123 (Hebrew)
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