Autor: C. Caliman, SDB
A V Assembléia do Episcopado Latino-americano e caribenho, marcada para Aparecida do Norte, Brasil, maio de 2007,nos oferece uma excelente oportunidade de reflexão sobre Vida Religiosa e Igreja na América Latina. Poderemos, desta forma, prepararmo-nos melhor para essa Assembléia.
Em nossa abordagem fazemos uma opção de não trabalhar a relação entre Vida Religiosa e Igreja em termos abstratos. Preferimos percorrer o itinerário das Assembléias Gerais, buscando o seu contexto amplo, a orientação mais ampla de seus documentos e, por fim, o que elas dizem da Vida Religiosa no continente.
Será uma boa ocasião para colocar em questão o sentimento de resignação que perpassa a Igreja e a Vida Religiosa nesse início de século. Esse sentimento parece se infiltrar na nossa visão da realidade do nosso mundo globalizado e de suas consequências para a sociedade na AL. Estamos divididos entre a sociedade de “satisfação imediata”, desenfreadamente consumista e individualista, e a cultura da sobrevivência dos pobres e excluídos. Esse sentimento nos leva ao fatalismo. O mundo é assim mesmo. Tornou-se pluralista e complexo de tal modo que parece sequer possível imaginá-lo diferente.
Mas também na Igreja e na Vida Religiosa esse sentimento de resignação se espalha. As expectativas de mundança que o Concílio Vaticano II despertou parecem frustradas para muitos. Os caminhos de renovação se estreitaram na rotina de um recentramento eclesial, na busca de posições mais seguras. As Igrejas locais ou particulares perderam iniciativa e dinamismo frente às iniciativas que vêm do centro da Igreja, das congregações e ordens religiosas. Também aqui corremos o risco do fatalismo, da platitude da rotina diária ao redor de pequenas coisas que ocupam o nosso tempo. Corremos o risco de perder a ousadia missionária, o entusiasmo pela causa do Evangelho.
É tempo de aprendermos da nossa história eclesial e de Vida Religiosa latino-americana, para enfrentar os desafios de hoje e sermos, assim, capazes de preparar o futuro. É de todos sabido que a Vida Religiosa pertence à santidade da Igreja peregrina (Lumen Gentium, cap. V), à sua vida carismática. Aprendemos no itinerário da Igreja latino-americana desde Medellín que a Vida Religiosa deve ser vivida na Igreja particular ou local. Fiéis a essa orientação, Religiosos e Religiosas dedicaram sua vida no desenvolvimento de uma nova consciência eclesial na AL. É um tempo propício de a Vida Religiosa aprofundar sua missão profética, redescobrindo sempre de novo seu lugar na Igreja e na sociedade, e a responsabilidade que lhe compete a partir do carisma que lhe é próprio.
Para aprofundar essa relação enriquecedora, pretendemos percorrer os documentos das várias Conferências Gerais: 1) desde a do Rio de Janeiro, 1955, num contexto de fermentos de mudança em tempos de Nova Cristandade; 2) de Medellín, 1968, com uma nova visão da realidade em vista de uma evangelização libertadora; 3) de Puebla, 1979, com sua proposta de uma nova estratégia pastoral para a comunhão e participação; 4) de Santo Domingo, 1992, com o tema da inculturação, postulando uma nova pedagogia pastoral para uma nova evangelização; 5) por fim, de Aparecida, 2007: o que nos é possível esperar dessa Assembléia?
1. Fermentos de mudança em tempos de nova cristandade (Rio/1955)
Por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, 1955, realizou-se a I Assembléia Geral do Episcopado latino-americano, de 25 de julho a 4 de agosto do mesmo ano1 com a participação de cerca de uma centena de prelados entre cardeais, arcebispos e bispos.
Para nos situarmos, anotamos alguns aspectos do contexto sócio-histórico e eclesial dos anos 50 do século XX. Estamos em tempos de guerra fria entre o bloco socialista, encabeçado pela antiga União Soviética, e o bloco ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos. Na América Latina assistimos ascensão do movimento social latino-americano. Muitos cristãos começam a participar de movimentos sociais de esquerda, que exigiam mudanças radicais2. Também na Igreja já se ouvia o mumurio crescente dos movimentos de renovação bíblica, litúrgica, comunitária, que iria explodir nos anos 60 com o Concílio Vaticano II. Entre esses movimentos vale destacar a Ação Católica. Ela se destaca, entre outras coisas, pelo método “ver, julgar e agir” e pela redescoberta da dimensão social da fé.
O Documento da Assembléia Geral do Rio de Janeiro no seu todo é marcado, primeiro, por temas pós-tridentinos que, naquela década, ainda chegavam do centro da Igreja, de cima, desde Roma. Nele não se manifesta ainda um olhar a partir da sociedade latino-americana e dos seus desafios. Suas preocupações “ad extra” eram a “situação religiosa” do povo, a expansão do protestantismo (as “seitas”) e a modernidade secularizada e hostil à Igreja. Movimenta-se ainda ao redor do projeto da nova cristandade3. Era preciso uma ação de “reconquista” do espaço perdido. Facilmente se detecta no documento do Rio de Janeiro o espírito apologético antiprotestante e antimoderno da época.
Do ponto de vista interno, pode-se perceber a resposta da Igreja a essas preocupações. O Documento aponta para a formação do clero para superar a crônica escassês de padres e, assim, contrapor-se à “invasão das seitas”. Comclama os leigos, chamados de “auxiliares do clero”, para a grande tarefa de “reconquista” da sociedade pela construção de um regime cristão para uma sociedade secular, como pedia o projeto da nova cristandade.
O Documento do Rio, afora o pedido ao Papa para a criação do CELAM4, não teve praticamente repercussão. Veio no despedir de uma época, fala a partir do centro, quando já se ouviam prenúncios de mudança na Igreja. A redescoberta da dimensão social da fé já aponta para a superação da pastoral tridentina da “cura de almas” e para um outro tipo de participação dos cristãos na sociedade, visando a superação da nova cristandade. O Documento nada diz sobre o surto renovador que perpassa a sociedade e a Igreja na AL.
O que o Documento do Rio fala sobre a VidaReligiosa? Explicitamente nada. Apenas uma carta aos Superiores Maiores das comunidades religiosas, expressando as preocupações da Conferência Geral, e pedindo mais religiosos padres para responder à escassês de clero5. Diz muito mais pelo que não diz! Implicitamente aponta para a continuidade da nova cristandade para a qual a Vida Religiosa já vinha dando a sua parte, sobretudo com as suas obras de assistência, escolas, hospitais, universidades.
Mas o crescente espírito de mudança já bate às portas da Vida Religiosa. Nessa década se multiplicam as Conferências de Religiosos e Religiosas pelo continente. Cria-se a Confederação Latino-americana de Religiosos – CLAR, abrindo a Vida Religiosa para uma visão latino-americana. Com a redescoberta da dimensão social da fé, o debate social ccomeça a influir nas decisões da Vida Religiosa.
Resumindo: o Documento do Rio é de outro sinal: está marcado pelo confronto e não pelo diálogo que João XXIII logo a seguir vai propôr como grande orientação do Concílio Vaticano II. O caminho para a II Conferência Geral de Medellín passa pela eleição de João XXIII (1958), pelo “vendaval” do Espírito Santo, no Concílio, e pelo encontro do CELAM de Mar del Plata (1966), O tema fala por si: A Igreja na América Latina: Desenvolvimento e Integração. Aponta para a realidade do continente.
2. Nova visão da realidade (Medellín/1968)
O ano de 1968 ficou marcado como o ano da “revolução dos jovens”, para muitos um marco em direção à pós-modernidade. Para nós na AL, já num contexto diferente da Assembléia do Rio, 1968 assiste à gestação de uma nova tradição de Igreja no continente. Nasce uma nova consciência eclesial no contexto atribulado do continente no final dos “anos dourados” da década de 60.
Observa-se nesse momento, por um lado, que o otimismo suscitado pelo Concílio alimenta expectativas de mudanças dentro da Igreja e na sua relação com a sociedade na AL. Por outro, nosso continente se encontra dividido entre os impulsos revolucionários dos movimentos de esquerda e a proliferação de regimes conservadores de “segurança nacional”, alinhados com o império americano, para conter os movimentos revolucionários. Assim terminam os “anos dourados” para a AL: a esperança pelas transformações que a realidade exige foi abafada, em bom número de países, pelo tacão militar.
Nesse contexto de otimismo gerado pelo Concílio e de incertezas na sociedade latino-americana, nasce o grito profético da Conferência Geral de Medellín. O tema A Igreja na atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio articula, especialmente, dois grandes documentos conciliares. Por um lado, a Lumen Gentium, com a nova compreensão da Igreja. Por outro, a Gaudium et Spes, que situa a Igreja dentro do mundo de hoje. A novidade de Medellín está justamente na apropriação criativa do Concílio a partir não de uma visão ideal da sociedade, tal como vinha da cristandade e da nova cristandade, nem mesmo a partir da modernidade vitoriosa e rica do centro do sistema capitalista. Seu olhar pastoral partia da periferia do sistema, da sociedade real da AL em processo de transformação. Assumindo instrumentos de análise das ciências sociais, a Assembléia de Medellín põe em evidência a contradição entre a miséria, como fato coletivo que atinge a maioria, e a riqueza nas mãos de uma minoria. Essa situação é caracterizada como de “injustiça institucionalizada”. Clama aos céus e exige uma resposta: assumir a luta dos pobres pela transformação social6. Valoriza, desta forma, a ação política pelo bem comum a partir dos pobres. A resposta da Igreja na AL ao fato brutal da pobreza é uma “evangelização libertadora”.
O que o Documento de Medellín diz sobre a Vida Religiosa? A Conferência geral dedicou o Doc. 12 para os religiosos. Mas antes vejamos o que significa para a Vida Religiosa o Documento de Medellín em seu conjunto. A sua chave de leitura: nova visão da realidade estruturalmente injusta e desigual impulsiona a Vida Religiosa para um novo “lugar social”. No imediato pós-concilio, empolgada pelas expectativas de renovação por ele suscitadas, a Vida Religiosa iniciou um processo de mudança que poderíamos chamar de “modernização”. Trata-se de uma renovação de “fundo falso”. Sob a guia da teologia da secularização, filha da ilustração, a Vida Religiosa, se atualiza olhando para a classe média. Busca pequenas comunidades que valorizam a pessoa, a profissionalização seletiva, própria dessa classe.
A apropriação da grande mensagem de Medellín impulsiona a Vida Religiosa na direção da superação de uma mera “modernização”, na busca de um novo “lugar social” no meio do povo, junto aos pobres. Deve “encarnar-se no mundo real”7. A descoberta da sociedade real, injusta e desigual, provoca uma real conversão: o seguimento de Cristo passa pelos pobres.
Mais ainda, a Vida Religiosa encontra um novo “lugar eclesial”, dentro da Igreja povo de Deus. No meio do povo de Deus é convocada a viver a sua missão profética, como testemunha do Reino, no compromisso por uma “evangelização libertadora”.
Olhando para frente, entre Medellín e Puebla há uma passagem necessária, o Sínodo sobre a Evangelização no Mundo de hoje (1974) e a subsequente Exortação pós-sinodal Evangelii Nuntiandi de Paulo VI (1975). Certamente a Evangelii Nuntiandi contribuiu enormemente para que a chave de leitura de Medellin – nova visão da realidade – se traduzisse também numa nova compreensão da missão evangelizadora8.
3. Nova estratégia pastoral (Puebla/1979)
Do dia 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979 realizou-se em Puebla de los Angeles, México, a III Conferência Geral do Episcopado latino-americano. O tema: Evangelização no Presente e no Futuro da América Latina. Convocada ainda pelo papa Paulo VI, sofreu atraso por seu falecimento e de seu sucessor, o papa João Paulo I, o breve. A tarefa de abrir a Assembléia ficou para João Paulo II.
O contexto sócio-político latino-americano continua sombrio. Regimes autoritários ainda marcam o continente. Aqui e ali pela AL afora brilham algumas luzes, ainda medrosas e tímidas, na direção da superação dos regimes de força para o Estado de direito. Mas a utopia da democracia social, participativa e solidária ainda está distante. Cresce a distância entre ricos e pobres. Já no plano mundial começa a montagem do neoliberalismo em confronto com o decadente império soviético. Todos nós conhecemos o desfecho dessa história, no final da década de 80 e inícios dos anos 90.
O que mais interessa aqui é o novo contexto eclesial que se inaugurou ainda no Concílio Vaticano II, passa por Medellín e chega a Puebla. A Igreja na AL se encontra dividida na interpretação do Concílio e de Medellín. O conflito de interpretações chega às portas de Puebla. O Vaticano II foi interpretado por alguns como limite imposto para o “aggiornamento” proposto por João XXIII. Para estes Medellín é um desvio da letra e do espírito do Concílio. O outro lado parte do pressuposto que Medellín foi uma recepção criativa e legítima do Concílio, interpretado como luz para o futuro. Ou seja: é o conflito entre uma interpretação mais doutrinal, que impõe limites à renovação pós-conciliar, e uma interpretação mais pastoral, que toma o Concílio em seu dinamismo iluminador do futuro da Igreja e, no caso, da Igreja na AL.
Esse conflito de interpretações perpassa a década entre Medellín e Puebla. Ele se desdobra, primeiro, na visão da realidade do continente. Qual é o fato maior que deve determinar as opções pastorais? Se esse fato maior for o mundo moderno e a secularização, a resposta pastoral corre mais para o nível religioso do resgate do “substrato católico” e do reavivamento espiritual. Se o fato maior for a pobreza, a resposta pastoral toma a direção da sociedade real com suas contradições, e se chama libertação. Segundo, no nível teológico, o avanço de uma visão teológica neoconservadora, que propõe uma interpretação mais estreita do Concílio, e se contrapõe quer às teologias ditas “progressitas” quer à teologia da libertação, que havia se tornado hegemônica no continente na década de 70. E, terceiro, esse conflito se desdobra ainda no campo da eclesiologia. Afinal, qual é a chave de leitura da eclesiologia conciliar: “povo de Deus” ou “comunhão”? Alguns acusam o uso da categoria povo de Deus na direção de uma “Igreja ppular” em contraposição com a “Igreja oficial”, que Puebla reprova9. Outros acusam o uso da categoria “comunhão” como reforço ao “recentramento” da Igreja em direção a um novo processo de centralização em curso10.
Essas duas tendências conflitantes revelam o clima da Assembléia de Puebla. Mas o resultado foi um documento que, apesar de longo, nos oferece a confirmação do caminho iniciado em Medellín. Destacamos o ponto forte, que justifica o título dessa parte: Puebla explicita com vigor a opção pelos pobres já presente em Medellín. Queremos sublinhar o significado transcendente dessa opção evangélica e, ao mesmo tempo, estratégica para a vida e a pastoral da Igreja. Já nos tempos do Concílio se falou do fim da era constantiniana11. A pastoral “constantiniana” supõe um pacto entre política e religião, entre o poder político e o poder religioso. A Igreja, digamos assim, entra para o tudo social pela porta do poder do Estado ou do poder hegemônico de uma classe na sociedade. A opção pelos pobres, enquanto opção de estratégia pastoral, aponta para a superação dessa pastoral constantiniana. Levando a sério a opção de Puebla, o agir da Igreja não mais deve articular-se a partir do poder, mas a partir do pobre, na ótica do pobre. A Igreja entra no todo social pela porta da sociedade civil e, nela, pelo caminho dos pobres12. Além disso, Puebla nos oferece uma “consigna”. O agir da Igreja visa construir uma Igreja de “comunhão e participação”. De “comunhão” enquanto cria as condições de unidade do corpo eclesial em vista da sua missão evangelizadora. De “participação”, enquanto cria as condições para um compromisso efetivo na transformação da realidade injusta e desigual.
O que o Documento de Puebla diz sobre a Vida Religiosa? Estende-se por bem 55 números sobre a “Vida Consagrada” (721-776). Em termos gerais, provoca a Vida Religiosa a se inserir na caminhada do povo de Deus na AL como resposta cristã e eclesial às exigências da realidade. Na verdade, a Vida religiosa, desde os primeiros monges do deserto, se insere crítica e profeticamente na Igreja, povo de Deus, e na sociedade em cada tempo histórico. Por situar-se na história, ela sofre a influência das mudanças na Igreja e na sociedade. Pode situar-se quer como força o conservadora dos valores transcendentes e permanentes da fé, quer como força de transformação.
Puebla articula sua visão da Vida Consagrada no contexto social e eclesial do continente ao redor dos seguintes pontos:
Primeiro, apresenta as principais tendências da Vida Religiosa no continente. Depois de afirmar que “a Vida Religiosa, em seu conjunto, constitui a maneira específica de evangelizar própria do religioso” (DP 725), o documento enumera 4 tendências que se manifestam na Vida Religiosa na AL: a) a busca da experiência de Deus como dimensão essencial da evangelização; b) a busca de relações fraternas em diferentes estilos de vida comunitária; c) “A abertura pastoral das obras e a opção preferencial pelos pobres” como “a tendência mais notável da vida religiosa latino-americana” (Puebla, 733); d) inserção na Igreja particular como “lugar” da vivência da vida religiosa e do “compromisso eclesial evangelizador”.
Segundo, os bispos enumeram uma série do dificuldades ligadas às novas tendências: a) O novo horizonte e os novos empenhos têm levado muitos religiosos a um ativismo que sufoca a dimensão contemplativa (ascese e espiritualidade). Esse é um campo onde temos hoje muito a reaprender. Como sermos hoje contemplativos na ação? Como construir uma espiritualidade para uma situação de conflito? (cf. Puebla, 729); b) O horizonte do mundo moderno descortinou-nos a percepção da subjetividade como valor. Mas no contexto ideológico pequeno-burguês ela se desvia para o individualismo que mina a comunhão e participação fraterna. As diferenças de mentalidade se tornam intransponíveis (Puebla, 732); c) O escândalo da pobreza produz indignação. Alguns são tentados a atitudes extremadas, não compartilhadas pelos irmãos, num fenômeno que se poderia chamar de vanguardismo, que se nega buscar a mediação da comunidade religiosa. São levados a passar por cima da mediação e do processo do discernimento comunitários, em nome da urgência dos problemas e da dimensão da injustiça social (cf. Puebla, 735); d) A revalorização da Igreja particular fez com que os religiosos redescobrissem seu lugar dentro dela. Mas ainda não descobrimos como conviver dentro dela, como religioso, que conservam a originalidade de seu carisma e devolvem ao povo de Deus os dons que o Espírito nele fez suscitar. Há, por isso, tensões entre a missão do bispo e o carisma próprio da Vida Religiosa, com a respectiva falta de diá1ogo (cf. Puebla, 737).
Terceiro, o Documento apresenta o marco doutrinal da Vida Religiosa: a graça da vocação da parte de Deus; o seguimento de Jesus Cristo expresso no “voto fundamental” a Deus, que, por sua vez, se articula através dos votos de pobreza, contra o ídolo da riqueza; de obediência, contra o ídolo do poder; de.castidade, contra o ídolo do sexo e do consumismo.
Quarto, o documento oferece à Vida Religiosa estratégias e orientações práticas. Os votos são vividos concretamente através de mediações históricas: a vida, a missão, o serviço. É o que constitui a organização da Vida Religiosa e suas obras. Puebla oferece indicações em três linhas:
a) Na linha de revigoramento da identidade da Vida Religiosa, o documento insiste, em termos gerais, que se deve aprofundar a consciência das dimensões essenciais (estruturais) da Vida Religiosa; em termos específicos, pede que se busque sempre a força original do carisma de cada família religiosa e a fidelidade ao próprio carisma;
b) Na linha do renovação de instrumentos, isto é, das obras e organizações que os religiosos vieram montando, os bispos pedem que os religiosos façam uma revisão das obras tradicionais, para que respondam à nova situação histórica da Igreja e da sociedade; abram suas perspectivas de trabalho para outras dimensões da realidade eclesial e social, principalmente para o mundo dos pobres, mas sem deixar a descoberto o campo das atividades tradicionais;
c) Na linha da eficácia histórica da evangelização, o documento pede a aproximação ao pobre e o compromisso preferencial com ele, no contexto da pastoral de conjunto.
Como se vê, o Documento de Puebla sobre a Vida Religiosa parece ser mais completo, incisivo e provocador do que o de Medellín. Colhe os frutos da década de 70, cheia de promessas para uma Vida Religiosa mais próxima do povo e dos pobres. A década de 80, chamada de “década perdida” pela crise econômica, decorrente da crise da dívida externa de muitos países do continente, é também um tempo de passagem acelerada para o que hoje chamamos de “pós-modernidade”: o avanço da revolução tecnológica e a complexificação da sociedade tornam insuficientes algumas categorias de análise do conflito social – como o conceito de classe – e se começa a perguntar também pela dimensão cultural para dar conta de fenômenos sociais complexos. Além disso, na AL os regimes autoritários começam a dar lugar à democracia formal. Na Igreja o refluxo neo-conservador começa a tomar forma e influenciar as decisões no campo eclesial e da Vida Religiosa.
4. Uma nova pedagogia pastoral (Santo Domingo/1992)
Puebla representou a busca de uma nova estratégia pastoral. A Conferência Geral de Santo Dominggo teve um objetivo específico: comemorar os 500 anos da evangelização do continente e fazer-lhe um balanço. O seu tema já nos direciona para isso: Nova Evangelização, Promoção humana, Cultura cristã. Ele nos conduz para uma evangelização inculturada que, certamente, postula uma pedagogia pastoral adequada.
Essa Conferência Geral tem um contexto diferenciado. Anotamos rapidamente alguns aspectos. No plano sócio-cultural, o avanço da pós-modernidade com reflexos na sociedade e na Igreja, sobretudo do individualismo, do pluralismo cultural e religioso sem contornos. Nos anos 60-70 do século XX tinhamos um processo sócio-político e eclesial mais politizado, motivado, diga-se de passagem, pela luta contra os regimes autoritários da época. Os anos 90 do séc. XX mostram-se mais “despolitizados”, mais “espiritualistas”. Cresce a busca de novas religiosidades sob o comando dos desejos e demandas subjetivas. A religião se transforma cada vez mais em “mercadoria” para ser consumida para a construção da própria biografia sob o impulso do “imperativo herético” (P. Berger). O sistema de valores tradicionais perde sua plausibilidade. Os indivíduos estão remetidos cada vez mais a si mesmos para fazerem escolhas de todas as ordens, na ética, na religião, na sexualidade etc. Outro fato de grande repercussão foi a queda fragorosa do socialismo real e a solene entrada em vigor do neoliberalismo triunfante. A utopia de uma sociedade mais justa e igualitária se enfraquece.
No plano eclesial continua o refluxo para posições mais seguras. O processo de recentralização iniciado ainda na década de 70, avança cada vez mais, colocando em risco o grande ganho de Medellín, a valorização das Igreja particulares ou locais como sujeito da vida eclesial e da missão. Esse caminho parece de ora em diante minado pela ascensão dos novos movimentos eclesiais transnacionais. Eles são mostrados pelo centro como a “primavera” da Igreja. Enquanto isso, as Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais sociais têm dificuldades de se articularem em suas próprias Igrejas locais. A teologia da libertação, hostilizada e batida nos anos 80, continua presente e ativa, mas inspira cada vez menos as grandes opções eclesiais no novo contexto.
O documento de Santo Domingo já não tem a mesma força profética de Medellín e Puebla. Falou-se de “redirecionamento”, de “ajuste pastoral”13 do itinerário da Igreja na AL, num novo realinhamento com o centro da Igreja. Há mudanças visíveis na questão do método. Santo Domingo não parte da realidade do continente, como Medellín e Puebla. Ele parte da doutrina. Privilegia a dimensão religiosa da evangelização e relativiza a dimensão sócio-política e transformadora, enfraquecendo o compromisso social. Privilegiando a dimensão sócio-cultural, se distancia da visão sócio-estrutural. A linguagem já não é mais a da libertação, mas a da promoção humana.
Pode-se observar a consequência desse novo posicionamento da Igreja na AL concretamente numa pregação mais “querigmática”, espiritualizante, ao gosto das emoções pós-modernas, no púlpito midiático da era informacional. É uma pregação que privilegia a experiência religiosa dos sujeitos e se alimenta pouco de conteúdos objetivos da fé.
Mas nem tudo está perdido em Santo Domingo. Nele encontramos uma chave de leitura do Documento nos dois grandes temas: da promoção humana e da inculturação. Eles postulam uma nova pedagogia pastoral para o projeto da nova evangelização. A discussão central de Santo Domingo foi, justamente, em torno da “nova” evangelização. Como deve ser a evangelização para ser nova em relação aos processos tradicionais de evangelização? O que ela pede de nós?
A abordagem da dimensão cultural deve conduzir à busca de uma pedagogia pastoral adequada à diversidade cultural do continente e às exigências de sua complexa realidade pastoral. Exige, consequentemente, a inculturação da fé a partir da riqueza cultural dos povos latino-americanos.
Sem entrarmos nos meandros das discussões de Santo Domingo, o Documento final, apesar das dificuldades e entraves da preparação, faz um grande progresso na definição do que se deve entender por nova evangelização. Ele exige a articulação entre promoção humana e inculturação como dimensões constitutivas da nova evangelização. Explicitamos a seguir nossa compreensão de Santo Domingo no seu todo
Primeiro, a promoção humana. Em Santo Domingo o foco dessa promoção humana não está simplesmente na questão econômica ou política. Ela deve ser entendida no sentido da libertação integral. Ou seja, no fato de promover a pessoa humana, especialmente o pobre, enquanto sujeito, capaz de construir solidariamente a história com os outros. Por isso, a nova evangelização, para ser nova, deve reconhecer o outro como sujeito. “Uma evangelização que não promova a pessoa como sujeito na sociedade e na Igreja, como participante de um processo histórico de libertação integral, é outra e não essa ‘nova’ evangelização”14. Sob esse aspecto se garante a continuidade com Medellín e Puebla.
Santo Domingo acontece dentro de um contexto histórico já em descontinuidade com o de Medellín e Puebla, cuja sensibilidade é marcadamente sócio-política. Agora a sensibilidade é outra. Por um lado, se reconhecem diferenças dentro do sujeito coletivo, definido genericamente como “o pobre”. Dentro dele encontram-se as diferenças de gênero, de etnia e de cultura. Por outro, há uma constante preocupação com o cuidado da criação, com a ecologia.
Assim, o primeiro passo para a nova evangelização é o reconhecimento do outro como sujeito. Sem esse passo voltamos aos processos anteriores da evangelização que exigiam a submissão e a negação do outro como sujeito histórico, onde o pobre é dominado pelo senhor, o índio é reduzido ao branco, o negro escravizado, e a mulher submetida ao homem.
Segundo, a evangelização inculturada. A nova evangelização deve ser inculturada. Inculturação se entende aqui não simplesmente como conceito da antropologia cultural, mas como conceito teológico, fundamentado no princípio da encarnação. A inculturação deve ser pensada em analogia com a encarnação. Como em toda analogia, deve-se preservar a diferença. Enquanto pela encarnação o Verbo eterno vem desde o Pai e se insere na história, numa cultura que antes não lhe cabia, na inculturação “o sujeito humano vai ao outro, já culturalmente situado, a partir de sua própria cultura. Ambos se situam no mesmo nível, marcados que estão, cada um, por sua própria cultura, sua maneira de ser, de viver e de produzir sentido, que lhes define a identidade pessoal e social”15.
Na preparação da Assembléia de Santo Domingo havia duas tendências na abordagem da questão da cultura e inculturação16. Uma compreendia a cultura como a consciência consolidada de um grupo social, ligada a formas culturais já assentadas historicamente. Essa corrente tendia a compreender a “cultura cristã” como “meta-cultura, reguladora das demais”, superior às demais. Preferia falar de “evangelização da cultura”. A expressão “cultura cristã” nesse contexto, dificilmente escapa à suspeita de fazer parte de uma proposta de uma nova cristandade.
A outra tendência buscava justamente uma compreensão mais dinâmica e processual. Apresenta a cultura como processo ligado ao mundo vital dos sujeitos históricos concretos. Esse mundo vital dos sujeitos culturais é diferenciado, plural. Neste sentido, a evangelização para ser nova deve partir do pressuposto de que “toda cultura pode chegar a ser cristã, ou seja, a fazer referência a Cristo e inspirar-se nele e em sua mensagem”17. Essa tendência prefere falar de “evangelização inculturada”. Ela visa a promoção da pessoa humana no sentido da libertação integral e a inculturação do Evangelho nas culturas.
Uma interpretação mais coerente de Santo Domingo dentro da tradição eclesial iniciada por Medellín certamente vai nessa direção. Essa foi a intenção da própria Assembléia18.
O que o Documento de Santo Domingo diz da Vida Religiosa? Diretamente são apenas 7 pontos, ns. 85 a 91, e o n. 275 sobre a Vida Religiosa a serviço da educação católica. É um resultado magro em relação às orientações de Puebla. Mas podemos cavar mais fundo, nas exigências para uma nova evangelização do continente, expostas acima. A Vida Religiosa sempre esteve associada à tarefa árdua e sacrificada da evangelização deste a chegada de espanhóis e portugueses por aqui. A partir das exigências de Santo Domingo para a evangelização, a Vida Religiosa deve sentir-se estimulada, primeiro, a dar continuidade em tempos tão diferentes à missão evangelizadora, a que sempre esteve associada; segundo, perseverar na grande tradição iniciada em Medellín, pelo reconhecimento da dignidade do pobre como sujeito e no compromisso pela promoção humana no sentido de Medellín e Puebla; terceiro, profeticamente ser “vanguarda” na missão da Igreja, buscando as “fronteiras”, abraçando a causa da evangelização inculturada junto aos pobres em geral, e aos indígenas, afro-descendentes e minorias, mais especificamente.
Os tempos são diferentes. O clima cultural do início de milênio é outro19. Mas a tarefa continua. 14 anos depois de Santo Domingo, o que podemos esperar da Conferência Geral de Aparecida?
5. Aparecida/2007: uma espiritualidade para tempos novos?
Em maio de 2007 reúne-se a V Conferência Geral do Episcopado latino-americano e caribenho em Aparecida do Norte, São Paulo, junto ao Santuário nacional dedicado a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Tratará do tema: Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nele nossos povos tenham Vida. O enunciado aponta na direção do cultivo da identidade da fé cristã, já no clima cultural desse início de milênio, diferente do clima cultural do tempo do Concílio, de Medellín e Puebla. Entre os múltiplos fenômenos que fazem do nosso tempo diferente do passado, acentuamos duas coisas: o avanço do individualismo e do consumismo, pela influência que exercem no campo cultural e religioso.
Vivemos hoje num contexto diferente do tempo das cristandades. Nelas havia certa homogeneidade cultural cristã. O códigos de leitura da própria experiência religiosa se encontravam “à vista” na cultura cristã. Nosso tempo está sendo caracterizado por alguns como pós-cristão, ou pós-cristandade. Nele é de fundamental importância a personalização da fé, ou seja, refazer o elo perdido entre a pessoa e a fé compartilhada na Igreja, a fé eclesial. Para que o fiel discípulo de Jesus Cristo chegue a ser missionário é preciso que a apropriação subjetiva da fé como experiência pessoal seja acompanhada por uma adesão firme aos conteúdos objetivos da fé20. Só assim o individualismo religioso pode ser vencido. Desta forma, o cultivo da intimidade com o Deus de Jesus Cristo se torna fonte de entusiasmo missionário.
Como entra a Vida Religiosa nesse tema? Tem tudo a ver com ele. A raíz batismal da Vida Religiosa nos diz da vocação de todo cristão à santidade de vida, da exigência evangélica para uma presença profética na sociedade e na Igreja, como sinal escatológico do Reino. A Vida Religiosa deve aprofundar esse projeto evangélico do discípulo de Jesus Cristo. Ela é um modo excelente de “chegar a ser cristão”21.
Nesse projeto a Vida Religiosa certamente deverá apontar para o núcleo irradiador da evangelização, a espiritualidade cristã, renovada a cada tempo. A chave da eficácia missionária, evangelizadora, da Vida Religiosa, como da Igreja em geral, não está simplesmente na eficiência organizativa de nossas instituições, mas na espiritualidade que se alimenta da presença viva do Senhor e se expressa no compromisso com a transformação do mundo.
Concluindo: tentamos traçar o itinerário da Igreja e, com ela, da Vida Religiosa na AL, inspirando-nos nos grandes Documentos das Conferências Gerais do Episcopado. Passamos pela redescoberta da dimensão social da fé (Rio/1955); por uma nova visão da realidade do continente e suas consequências para uma nova consciência eclesial na AL (Medellín/1968); pela definição de uma nova estratégia pastoral para responder a uma nova compreensão da missão evangelizadora (Puebla/1979); pela busca de uma nova pedagogia pastoral como exigência de uma evangelização inculturada. Com o olhar voltado para a próxima Conferência Geral de Aparecida, pela orientação do tema, chegamos à espiritualidade. A cada passo a Vida Religiosa é convocada a dar a sua resposta, conforme o seu carisma.
Resta-nos esperar que a Assembléia de Aparecida ouça a voz da realidade do continente, especialmente dos pobres, no compromisso com a justiça social; ouça a voz das Igrejas da AL e do Caribe, para que nossos povos tenham realmente Vida plena.
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