Ver, julgar e agir

Autor: Guilhermo Cook

A evangelização ao estilo de Jesus em João 9

Depois de vários anos de ministério no Brasil e após concluir meus estudos doutorais, me Junho de 1979 regressei à Costa Rica para trabalhar com o CELEP. A Junta diretiva e os coordenadores do CELEP estavam reunidos em Alajuela para avaliar seu trabalho e planejar o que fariam no futuro. Eu acabava de ser nomeado assistente de Orlando Costas e pediram-me que dirigisse um dos períodos devocionais. Recordo muito bem o texto que escolhi: João 9.16 (“Por isso alguns dos fariseus diziam: Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado. Diziam outros: Como pode um homem pecador fazer tamanhos sinais? E houve dissensão entre eles.”) Precisamente um dos dois dias antes, em minhas devocionais pessoais, havia notado um dado interessante nesse texto, que li talvez uma centena de vezes: Os fariseus estavam divididos em dois grupos.
O grupo majoritário avaliou a cura do cego de nascença a partir de sua doutrina legalista, condenando a Jesus. O grupo minoritário avaliou o sucesso a partir do próprio fato, desde a práxis, recusando apressar-se em dar uma sentença negativa. Em todas as épocas da história tem havido duas maneiras de avaliar as ações da Igreja e dos que professam o nome de Jesus Cristo: A partir de “cima”, por assim dizer, amparados pela segurança da teoria doutrinal, e desde “baixo”, a partir do risco, da insegurança e vulnerabilidade da prática. Esta diferença qualitativa de interpretação tem dividido e continua dividindo a Igreja. Na verdade, a divisão é falsa, pois a teoria e a prática são inseparáveis e devem manter-se em constante tensão dinâmica.
Senti-me motivado, baseado na reflexão da equipe celepina naquela ocasião, a estudar o texto dentro de seu contexto. Tive a oportunidade de analisar esta passagem por meio do método expositivo, com pequenos grupos de estudo bíblico, atrevendo-me agora a colocar no papel algumas reflexões sobre João 9. Faço-o em memória de meu querido irmão e companheiro de ministério, Orlando Costas, a quem devo o necessário impulso para que eu me superasse, e que me inspirou a interpretar a Bíblia a partir de uma perspectiva missiológica e pastoral, desde a América Latina.

O CONTEXTO GERAL DA PASSAGEM

Em comparação com os outros evangelistas, João é bastante moderado na descrição de fatos curiosos acerca do ministério de Jesus. Por podemos assegurar-nos de que ele não deixou essa história com o simples objetivo de incluir no acervo de relatos um exemplo de poder de cura de Jesus que fora omitido nos evangelhos sinóticos. João tem um propósito pedagógico frente a problemas de doutrina e prática nas igrejas da Ásia, no fim do primeiro século de nossa era. Diversas heresias dualistas colocavam em dúvida a humanidade ou a divindade de Jesus e manejavam teorias esotéricas (gnósticas), cujos símbolos eram verdade e falsidade, luz e trevas. João confronta essas heresias através de todo o seu evangelho.
João 9 relata um incidente multifacetado, cujo propósito é, precisamente ressaltar a divindade e a humanidade de Jesus por meio de sete diálogos, conforntações ou crises em torno de uma ação evangelizadora do Mestre. Por detrás de cada encontro há uma pergunta fundamental: o que é verdade e o que é mentira? E, conseqüentemente, como se pode realmente “ver”, ou seja, discernir entre os dois? No fundo, a história é uma espécie de parábola sobre “andar na luz” ou “nas trevas”, dois importantes temas nos escritos joaninos.
O método que João usa não poderia ser mais radical. Revela-nos um Jesus problematizador e questionador, mesmo não sendo a personagem principal do relato. João mostra como um crente comum e reconhecidamente pobre, fisicamente impedido e analfabeto, é capaz de julgar e confundir a sabedoria dos entendidos. Isto tem muito significado para nós hoje, quando “a igreja dos pobres e marginalizados” desafia nossos cômodos pressupostos teológicos. Vivemos também numa era em que a partir do chamado “Terceiro Mundo” se enviam missionários ao “Primeiro Mundo”.
“Ver, julgar e agir” é mais conhecido como uma metodologia católica de análise dos fenômenos históricos-sociais. Não obstante, sem perder de vista a metodologia, proponho-me a usar esse trinômio como um paradigma da evangelização. Intentaremos, simplesmente, em descobrir como cada um dos protagonistas desta singular história vê, julga e age frente à necessidade de um pobre infeliz e ante o fato incontestável de sua cura. Neste estudo, ver julgar e agir se relacionam, respectivamente com as dimensões kerigmáticas de proclamação, juízo e compromisso. “Ver” tem a ver com a nossa percepção da revelação divina, na pessoa de Jesus Cristo e naqueles em quem quiser se manifestar. Julgar tem o sentido de krisis, ou krima, cognatos gregos que em sua raiz comunicam a idéia de cirandar, de provocar uma profunda reavaliação, de estabelecer uma opção radical. A evangelização no estilo de Jesus Cristo provoca crise, sacode, repreende, ilumina as contradições, obriga a tomar posicionamentos. Julgar é o eixo determinante entre ver e atuar. Ver sem julgar é, na realidade não ver. Julgar sem atuar é permanecer no ar. Atuar significa optar: comprometer-se com Jesus Cristo e com sua missão, ou então voltar-lhe as costas.
Analisemos a passagem! Nós o fazemos aqui a partir da versão popular (A Bíblia na Linguagem de Hoje), porque seu estilo é mais apropriado para o contexto do relato.

Primeira crise: problema teórico ou necessidade concreta (vs. 1-7)

“Quando Jesus ia passando, viu um homem que tinha nascido cego”. Jesus viu um homem que a religiosidade de sua época considerava menos que uma pessoa. Era excluído das bênçãos do pacto. Os discípulos , ao invés de uma pessoa necessitada, vêem um objeto de curiosidade, um simples problema teológico. “Mestre, porque este homem nasceu cego? Foi porque ele pecou ou porque os pais dele pecaram?” É outra forma de fazer a pergunta do saduceu em Lucas 10.29: “Mas quem é o meu próximo?” (Hoje perguntamos: Quem são os pobres? O que vem primeiro: o evangelismo ou a ação social?) As discussões teológicas nos permitem evitar a responsabilidade de um compromisso autêntico com o necessitado. Porque não viram, julgaram mal e, por conseguinte perderam a oportunidade de atuar.
Jesus, então enfoca a atenção dos discípulos no verdadeiro problema. O cego está ali para ser servido: para que a vontade de Deus se manifeste nele. Agora, enquanto é dia (porque de noite não se pode trabalhar), é necessário fazer as obras de Deus. É significativo que o relato comece com a justaposição de luz e trevas: “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo”. Aqui se descobre o propósito deste relato: dissipar as trevas da mentira e iluminar nosso coração com a verdade de Deus. Aqui e mais adiante veremos que quem necessita da luz de Deus são, em primeiro lugar, os que confessam ser seguidores dele.
Jesus atua de imediato frente à necessidade do cego. Porém o faz de forma inusitada. Não toca os olhos do cego, mas, sim, recorre a uma prática que, em nossa perspectiva, pareceria pouco saudável, para não dizer repugnante. Não é a única vez que Jesus faz lodo com saliva e unta os olhos de um cego (Mc 8.22-23) e os lábios de um surdo-mudo (Mc 7.33). Porque o fez? Porque era um método que encontrava forte respaldo na cultura popular. Na antiguidade se cria, não sem certa razão, no poder curativo da saliva. Desta maneira, e sem necessidade de fazê-lo, Jesus comunica o seu amor por meio da medicina popular! De igual forma, porém ele se identifica com a prática cerimonial judaica: envia o cego ao tanque de Siloé, cujas águas eram usadas para ritos de purificação. Ele não rejeita os costumes do povo. Antes, transforma-os em instrumentos do seu amor.

Segunda crise: Indecisão ou integridade (vs. 8-13)

Uma vida transformada por Deus vale mais que mil sermões evangelísticos. O ex-cego agora é o foco de grandes interrogações. Será ou não será o mesmo que conhecemos antes? Quem é o autor do milagre? Contudo, a resposta do que foi curado se concentra na ação: “O homem chamado Jesus fez um pouco de lama, passou nos meus olhos e disse: “Vá ao tanque de Siloé e lave o rosto. Então eu fui, lavei e estou vendo.” É uma explicação cheia de verbos – vividamente descritiva. São as palavras de um homem simples, pouco acostumado a especular, cuja vida se mede em termos de ações ou da falta delas. Os vizinhos por sua vez, o viram mas nem, todos creram. A presença do cego no meio de sua vizinhança transformou-se em um fator de juízo ou de crise, e a ação grupal é incompleta, porque não puderam definir-se. Levam o homem ante as autoridades religiosas. Falta-lhes integridade.

Terceira crise: o sábado ou o shalom (vs. 14-17)

O sábado e o shalom eram inseparáveis no plano de Deus. Um representava a outro. O repouso do povo de Deus e da terra e o ano do jubileu (a libertação dos cativos e a devolução de propriedades a seus donos originais) tinham como objetivo comunicar shalom (paz, bem-estar, sanidade, salvação) nas dimensões do trabalho, conservação de recursos naturais e justiça social. Eram antecipações do shalom do reino. Não obstante, a lei sabática nunca se cumpriu segundo a intenção divina. Por sua rebelião, Israel nunca entrou no repouso do shalom (Hb 3.11, 18; 4.1-11). Em vez de símbolo de libertação, o sábado se transformou em instrumento de opressão. No tempo de Jesus, o sábado e o shalom estavam em crise e em contradição.
Voltemos ao protagonista de nossa história. Ele está só. Jesus e seus discípulos o deixaram. Seus vizinhos o abandonaram à própria sorte. Assim só, como está, ele é sinal de crise. Nessa passagem encontramos dois focos de atenção, como já vimos: um é teórico e o outro concreto, prático. Primeiramente, os discípulos,e agora os fariseus, confrontam-se com duas opções com duas opções: a tradição ou o bem-estar e shalom de uma pessoa. É entre estes dois pólos que hoje se joga a evangelização no mundo inteiro. Para os fariseus, o problema é sábado. Ele é mais que um dia de repouso. Simboliza todo um sistema religioso e de trabalho e o controle que sobre isso exerciam as autoridades religiosas. Os fariseus não podem permitir que essa tradição se rompa, pois isso significaria perder seu domínio sobre o povo.
Os fariseus, pois, não vêem uma pessoa que acaba de ser curada. Vêem, antes, um atentado contra a integridade da lei e contra o seu domínio religioso. Interrogam o cego uma e outra vez sobre o ocorrido, tentado confundi-lo, porém ele não se deixa confundir. A resposta daquele que foi curado é mais breve do que quando narrou sua experiência a seus vizinhos. É a atitude própria de uma pessoa simples que se sente impedida ante o peso da lei. É nesse ponto que se apresenta a divisão no seio do concílio dos fariseus. A divisão entre teoria e prática com que iniciamos este estudo.
Quando o cego responde a um segundo interrogatório, atreve-se a emitir um juízo acerca da identidade de seu benfeitor. “Penso que é profeta”. Isto não satisfaz aos fariseus, que o têm por impostor. Por isso apelam aos pais do homem que foi curado.

Quarta crise: Status quo ou solidariedade (vs. 18-23)

Foi necessário o testemunho dos pais para que os fariseus aceitassem a identidade daquele que fora cego. Não obstante, embora tivessem diante de si a prova digna de fé da obra de Deus na vida do seu filho, para eles este se torna também sinal de crise e se recusam a defendê-lo. Tal é o domínio da tradição religiosa, que julgam mais importante manter seu status dentro da sinagoga do que solidarizar com o próprio filho. Como recuperou a visão? Perguntem a ele! Tem maioridade.

Quinta crise: Tradição ou testemunho (vs. 24-34)

Reinicia-se o processo. Chegou a hora da sentença piedosa: “Prometa a Deus que você vai dizer a verdade. Nós sabemos que esse homem é pecador”. Ponto final. A tradição, com todo peso da lei, se pronunciou. Não há mais o que dizer. Mas o cego tem certamente muito o que dizer. Perdeu a timidez, porque tem um testemunho a compartilhar!: “Se é pecador, não sei (não sou teólogo como vocês). Uma coisa sei: “Eu era cego e agora vejo!”. E ponto final. A crise se intensifica. Uma força irresistível se choca com um objeto imóvel. Quem cederá? Parece que nenhum dos dois.
Momentaneamente confundidos, os fariseus voltam ao ataque. A tradição não pode dar-se por vencida. Repetem o interrogatório, esperando confundi-lo. “Que foi que ele fez a você? Como curou sua cegueira?” Não obstante, o ex-cego não se deixa amedrontar. Muito pelo contrário. Esse homem simples e iletrado perde a paciência com os sábios doutores da lei, respondendo-lhes com ironia: “já disse, e vocês não querem acreditar. Porque querem ouvir isso outra vez? Será que vocês também querem ser seguidores dele?”
Que espetáculo mais interessante! Estes sóbrios doutores da lei perdem as estribeiras. Vêem-se reduzidos a usar o insulto, uma arma do desespero (pior ainda fará, mais tarde o augusto Sinédrio, esbofeteando e cuspindo no Mestre), e fanfarronadas: “Você é que é seguidor dele! Nós somos seguidores de Moisés (ou dos três Joões: Calvino, Wesley, Batista?). Sabemos que Deus falou a Moisés; mas este homem nem sabemos da onde ele é.”

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