Autor: Sergio Ribeiro
A grandeza de Barth é que ele corrige-se a si mesmo, continuamente à luz da ‘situação’, buscando cuidadosamente não se tornar seguidor de si mesmo”. (Paul Tillich, Sistematic Theology, The University of Chicago Press, 1951, p. 5). O contexto histórico das duas primeiras décadas dos novècento constitui o pano de fundo da teologia de Karl Barth. A efervescência da Europa, envolvida numa primeira grande guerra e em violentos choques ideológicos, assim como a expansão do pensamento científico e a timidez do liberalismo teológico são, sem dúvida, agentes causadores da reflexão crítica que contribuiu para pesquisa e construção do pensamento de Barth. Depressão social, miséria, tragédia e bestialidade marcaram indelevelmente sua reflexão sobre o cristianismo e as necessidades do homem moderno. Até o caos e a destruição da I Guerra Mundial envolverem a Europa, a teologia estava emaranhada em discussões como a imanência de Deus e o ser humano como agente moral e livre, a centralidade de Deus, a religião ética, a fé racional e experimental, o criticismo bíblico e a escatologia, sendo esta última sempre otimista e progressista. É importante observar que a teologia liberal, como qualquer reflexão, traduzia preocupações de época, assim dava ênfase ao racionalismo do século 18, época em que nasceu, cresceu e amadureceu. A teologia liberal afirmava, entre outras coisas, que o homem pode chegar ao conhecimento de Deus por meio da revelação geral, ou seja, através da revelação de Deus na criação/natureza, ou ainda, que o homem é capaz de chegar ao conhecimento de Deus por meio da razão. Tal compreensão do fazer teológico é característico da teologia natural, segundo a qual a base da fé é a revelação comprovada pela razão. Assim, a teologia liberal procurou sempre estabelecer teorias acerca do conhecimento de Deus, partindo de fontes como as ciências e as filosofias. Se teorias podiam levar ao conhecimento de Deus, práticas e/ou processos que expressassem essas teorias poderiam levar à salvação. E aqui entram, por exemplo, a ética e justiça social. Ora, o contraste entre o panorama histórico desses anos de guerra e destruição e o que propunha a teologia liberal era difícil de engolir. Como conciliar a tragédia da maldade humana e o racionalismo evolucionista, detentor das chaves para um mundo melhor? Cresce para Barth a importância dos reformadores do século 16: de Lutero com as teologias do Sola Gratia, Sola Fide, Sola Scriptura, Coram Deo, Christus per Me, Anfechtung, e, logicamente, de Calvino. [Clory T. de Oliveira, A Teologia de Karl Barth e a missão da igreja, Revista Teológica da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, Simpósio 3, p. 235, dez. 1979]. A partir dessas realidades Barth foi construindo sua reflexão teológica, enquanto reação ao naturalismo da teologia liberal do século 19 e enquanto redescoberta da catedral teológica levantada pelos gênios da reforma protestante.
UM JOVEM EM BUSCA DE RESPOSTAS: Karl Barth nasceu em Basel, Suíça, no dia 10 de maio de 1886, e faleceu em dezembro de 1969. Filho de pais religiosos, foi educado em meio a pastores conservadores. Suas influências acadêmicas foram Kant, Hegel, Kierkegaard e teólogos como Calvino, Baur, Harnack e Hermann. Em 1911 começou a pastorear uma pequena igreja do interior da Suíça e aí ficou até 1925. Durante esses anos conheceu Eduard Thuneysen, amigo que acompanhou e contribuiu em suas reflexões teológicas. Nessa época seu grande desafio era o que pregar a cada domingo. Em 1914, ele e Thuneysen resolveram buscar uma resposta ao desafio da pregação. Durante quatro anos, Thuneysen estudou Schleiermacher e Barth estudou Paulo. Como fruto desses estudos, em 1919, Barth publicou seu Comentário sobre Romanos. A teologia de Barth recebe muitos nomes: teologia da crise, teologia dialética, teologia kerigmática, teologia da Palavra. O que pregar? Qual a proclamação? O que falar à congregação? O desafio pastoral foi o ponto inicial do desenvolvimento de seu pensamento teológico, quando passou a sistematizar estudos e observações, produzindo uma obra notoriamente marcada pelo interesse social e político. Em 1922, foi preletor de teologia reformada na Universidade de Gottingen, onde desenvolve a teologia dialética junto com Thuneysen, Bultmann, Gogarten e Brunner. Entre 1926 e 1930 foi professor e dedicou-se a pesquisa teológica e à produção científica. Iniciou a Dogmática da Igreja, obra que não chegou a terminar. Nos anos de 1933 e 1934, envolveu-se no movimento de resistência à presença da ideologia nacional-socialista dentro da igreja luterana. Dessa resistência originou-se a Igreja Confessante. Em conseqüência de suas idéias e pregações, foi expulso da Alemanha. Passou então a lecionar na Suíça, onde abriu sua casa para refugiados e opositores do nazismo. Auxiliou estudantes e forneceu literatura teológica para os pastores alemães. Sua influência teológica cresceu mundialmente entre todas as igrejas cristãs. Depois da Segunda Guerra Mundial, levanta-se contra o estalinismo e pela paz na Europa, e afirma que “neste momento, a vocação da igreja é dizer: punhais à parte, é a hora da palavra”. Dentre a produção teológica de Barth, devemos destacar: Busque Deus e Você Viverá (1917); Comentário à Epístola aos Romanos (1918-1919); Não (1934); Esboço de Dogmática (1947); Cristo e Adão, segundo Romanos 5 (1952); A Humanidade de Deus (1956); Church Dogmatics, de 1932 até a sua morte.
A ASCENSÃO DO III REICH: Em 1933, o presidente Hindenburg confiou a Hitler a chancelaria do Reich. Assim, os nacionais socialistas subiram ao poder, mas não o detinham. Até aquele momento, apenas Hermann Goering, nomeado ministro do Interior da Prússia, ocupava um cargo de destaque. Os conservadores, por isso, acreditavam que detinham o controle da situação política na Alemanha. Hitler, então, decide dissolver a Assembléia e convocar novas eleições para 5 de março, a fim de obter maioria no Reichstag. A campanha política começa no fim de fevereiro. Muitos são os entraves entre o Partido Nacional Socialista, o Partido Nacional Democrata e o Partido Centrista Católico. Reuniões e comícios são desfeitos. Goering passa a liderar a polícia e depois de algumas ‘visitas’ a Karl Liebknecht, dirigente do Partido Comunista, descobre documentos que denunciam a intenção dos comunistas de realizar uma revolução no país.Dias depois o Reichstag é incendiado e Hitler consegue junto ao presidente Hindenburg autorização para suspender as sete seções da Constituição de Weimer. “Para a proteção do povo e do Estado”, afirma Hitler. Assim estavam suspensas a liberdade de reunião, a liberdade de opinião e a liberdade de imprensa, e o chanceler nacional socialista passava a ter autorização para legislar nos casos em que houvesse recusa quanto ao cumprimento das medidas de segurança pública. Iniciou-se dessa forma um período de terror nazista: todos os que não estivessem ligados ao Partido Nacional Socialista eram, em potencial, considerados perigo para a ordem social. As reuniões foram proibidas e os caminhões da polícia S.A. (Sturn-Abteilung) transitavam pelas ruas espalhando o medo e o terror. Apesar da propaganda feita pelos nazistas, as eleições não foram ganhas como Hitler esperava. Consegue, então, que o Reichstag aprove um “decreto de habilitação” que lhe confere quatro anos de poder sobre o Legislativo, o que lhe possibilita governar como desejava. Para conseguir tal aprovação, impediu os comunistas e alguns democratas de votarem. Hitler dissolve os partidos políticos e os coloca na ilegalidade. O Partido Nacional Socialista passa a ser considerado Estado.
À SOMBRA DE HITLER: Nessa época, a igreja evangélica alemã estava a procura de sua identidade. Durante anos existira à sombra do monarquia, quando seu bispo era também líder político. Agora, encontrava-se perdida na democracia criada pela Constituição de Weimar. Os católicos centristas e os socialistas formavam a base de sustentação da democracia, por isso os conservadores viam no nacional socialismo o alicerce para uma igreja forte e para a possibilidade de uma nova união com o Estado. Assim, em 1933 a igreja alemã protestante estava predisposta a aceitar as idéias do nacional socialismo como proposta política segura para a formação de uma igreja forte. No dia 23 de março de 1933, Hitler prometeu: “Os direitos das igrejas não serão atingidos. Suas relações com o Estado não serão modificadas”. Em 27 de agosto de 1933, Hitler declara: “A unidade dos alemães deve ser garantida por uma nova concepção do mundo, pois o cristianismo, sob a forma atual, não está à altura das exigências que é preciso impor aos elementos que asseguram a unidade alemã.” [Daniel Cornu, Karl Barth: Teólogo da liberdade, RJ, 1971, p. 17]. A igreja evangélica alemã adapta-se ao ideário nacional socialista através do Movimento dos Cristãos Alemães e passa a fazer oposição cerrada ao marxismo, ao comunismo e ao judaísmo. O Movimento dos Cristãos Alemães pensa, inclusive, em criar a Igreja do Reich nacional-socialista. É formado um triunvirato constituído por líderes eclesiásticos, que representa o conselho superior da Igreja Evangélica, os luteranos e os reformados. Elaboram um projeto de constituição que expressa a “alegria da igreja alemã em participar da formação de uma nação e do renascimento do sentimento patriótico”. Vão mais longe e declaram: “Um poderoso movimento nacional dominou e levantou nosso curso no seio da nação alemã despertada de seu sono. Dizemos um ‘sim’ agradecido a essa reviravolta da história. Foi Deus que nô-la deu. Glória a Ele! Ligados à Palavra de Deus, reconhecemos nesse grande evento de nosso tempo uma nova ordem do Senhor à sua Igreja…” [Daniel Cornu, idem, op. cit., p. 22].De acordo com a constituição elaborada pelo triunvirato, um bispo designado pela maioria da liderança seria o representante da nova igreja alemã e teria poder de decisão correspondente ao Führer no Reich. Há então um desentendimento quanto as indicações. Friedrich von Bodelschwingh representa os moderados, e Ludwig Müller é o “protetor” dos cristãos alemães. Apesar de Bodelschwingh ter sido nomeado, a discussão cresce na medida em que os cristãos alemães alegam que a decisão teria sido tomada sem que o homem de confiança do chanceler, Müller, tivesse sido consultado e, portanto, a nomeação seria ilegal. O bispo vê-se pressionado a renunciar ao cargo e escreve mensagens a respeito da grave situação. Não pode publicá-las em nenhum jornal e é forçado a enviá-las privadamente.
UM PASTOR E SUAS OVELHAS: Em 1911, Barth iniciara o pastoreado em Safenwill, no cantão da Argóvia, onde depara-se com a realidade rural e com os conflitos entre operários e patrões, que ocorriam na única fábrica existente na região e da qual dependia toda a comunidade. Barth passa, então, a envolver-se com as questões sociais e com os conflitos. Por essa época torna-se socialista cristão e recebe influências de Herrmann Kutter e Léonard Ragaz. Participa de ações políticas e ajuda a organizar um sindicato. Em 1915, filia-se ao Partido Social Democrata. Mas, com o início da Primeira Guerra Mundial, Barth vê sua fé liberal abalada, assim como seus ideais socialistas. Volta-se, então, para a esperança escatológica e através dos dois comentários teológicos que escreve a respeito da Epístola aos Romanos elabora a teologia da crise. “Essa teologia, com efeito, proclama a crise do tempo pela eternidade: Deus proclama um julgamento sobre o homem, sua cultura e civilização. A existência humana é ligada à temporalidade, ao pecado e à morte. O conjunto de suas atividades religiosas, são aquelas de uma criatura pecadora. Entre o homem e Deus, a diferença qualitativa é infinita. O homem não pode atingir Deus por si mesmo. A relação não se estabelece senão pela revelação de Deus em Jesus Cristo, e esta toca o mundo sem penetrá-lo… Mesmo comunicado, Deus não é jamais possuído: sempre objeto de esperança, sempre a vir, sua presença é a cada instante um futuro eterno. Escatologia e transcendência fundem-se inteiramente. É tão somente na linha da morte, do ponto em que nossa existência se curva diante do não divino, que esse não se revela como sim, o juízo como uma graça. É no rigor de seu juízo que atingimos a realidade de Deus. Mas aí, no milagre da ressurreição e da fé, nós a atingimos verdadeiramente”. [Idem, op. cit., p. 18]. Com o passar do tempo Barth elabora a teologia da Palavra, que significa um rompimento com seus amigos Emil Brunner, Friedrich Gogarten e Rudolf Bultmann. Nesse momento Barth deixa as questões de tempo e eternidade na ressurreição e passa a refletir sobre “o evento que os liga na encarnação”, ou seja, a revelação, Palavra de Deus em Jesus Cristo encarnado. Quem o recebe, recebe a Palavra de Deus e se reveste de uma nova dignidade que pode ser reconhecida nos seus semelhantes e que dá base à ética. Portanto, a teologia da Palavra é uma cristologia. Por estar comprometido com a realidade social, Barth (1933) reage ao nazismo, mas sua reflexão sobre as questões políticas é teológica, pois está preocupado com a fé cristã e com a igreja evangélica na Alemanha. Escreve estão um manifesto — A existência teológica hoje (Teologische Existenz heute) — na noite de 24 para 25 de junho, quando Bodelschwingh se demite. O centro da discussão do manifesto de Barth é a questão da Palavra de Deus e sua importância no caráter e na vida do cristão. A teologia de Barth é cristológica e chama a atenção dos cristãos para o papel da igreja enquanto proclamadora da Palavra de Deus no mundo. Esse manifesto teológico configurava-se como reação política, contrariando a proposição dos Cristãos Alemães de apoio e incorporação aos princípios do Reich. “Parece-nos que o povo alemão, buscando voltar às fontes profundas de sua vida e de sua força, quer também reencontrar o caminho da igreja. As Igrejas Alemãs devem fazer tudo para que isso ocorra…” “A igreja deve provar que é a Igreja do povo alemão ajudando esse último a reconhecer e a realizar a missão de que foi encarregado por Deus, e que é também objetivo supremo do atual governo”. “Para os Cristãos Alemães, a grandeza do Estado nacional socialista, não é apenas uma questão de civismo ou de convicção política, mas um objeto de fé. Reclamam uma igreja que compartilhe de seus pontos de vista e respeito. O Evangelho não deve ser anunciado no futuro senão segundo Evangelho do Terceiro Reich. A confissão de fé deve ser mantida, mas deve se desenvolver no sentido de uma defesa incondicional contra o mamonismo, bolchevismo e o pacifismo não cristão. A nova igreja será a igreja dos cristãos alemães, ou seja, dos cristãos de raça ariana…” [Trechos citados por Barth em Theologische Existenz heute, p.22-23]. O discurso de Barth estava dirigido aos líderes da igreja evangélica alemã, com o fim de chamar a atenção deles para a mensagem que estavam pregando. Não é uma resposta que procura refutar diretamente os Cristãos Alemães, mas, um alerta geral quanto a quem deve ser o centro da pregação cristã: Jesus Cristo. Eram notórias as mudanças no cenário político, por isso seu manifesto analisa três questões preocupantes: “a questão da reforma eclesiástica, a da nomeação de um bispo do Reich e a existência do movimento dos Cristãos Alemães”. Para Barth não era possível que se visualizasse num evento da história uma “nova ordem para a igreja”, isso só era possível por meio da revelação de Deus, a Palavra. Com relação a figura do bispo, um Führer dentro da igreja, mostra a clara associação do cargo com o Führer nacional socialista e para o modelo de onde foi tirado, o episcopado católico romano.
UM TEÓLOGO E SEU DEUS: Os tópicos apresentados a seguir estão escritos à maneira de roteiro. Optou-se por seguir a sistemática de Clory T. de Oliveira, autora do artigo A teologia de Karl Barth e a missão da igreja, fonte supracitada da pesquisa, por considerá-la coerente. Contudo, o conteúdo dos tópicos não segue o artigo, já que a eles foram acrescentados comentários. I. Deus é o Inteiramente Outro — Deus é absolutamente diferente. Não está relacionado a nenhum processo de aperfeiçoamento de algo que seja bom. Tudo que o ser humano pense a respeito das qualidades de Deus serão sempre projeções humanas. II. A Palavra de Deus é Soberana –Para Barth a Bíblia é uma produção humana que pode tornar-se objetivável se for “revelada”, “escrita” e “pregada” sob a ação do Espírito Santo, caso contrário, não é uma revelação de Deus. Portanto, é o Espírito Santo que legitima a palavra humana sobre Deus, do próprio Deus, sempre de modo contemporâneo. A mensagem só é considerada como vontade de Deus se for cristocêntrica. III. O Inteiramente Outro torna-se o Irmão Humano — Em Jesus Cristo tem-se o humano e o divino, sem contudo, manchar a transcendência de Deus. “Em Jesus Cristo, Deus coexiste com o homem”, logo, há uma relação entre o homem e Deus que fundamenta a relação social da necessidade comunitária (relação homem/mulher). Mas não há possibilidade de que o homem tenha acesso a Deus. É sempre Deus que se dirige ao homem. “Deus é livre, a iniciativa é sempre Sua”. O homem não pode ser salvo por meio de seus feitos e esforços, a salvação é obtida pelo favor de Deus, isto é, através da graça. IV. Cristologia — Para Barth tudo principia e finda na pessoa de Cristo, portanto, Cristo deve ser o centro da teologia. Basicamente a teologia é cristológica e a razão de existir da igreja é Cristo. Logo, entende-se que é sua tarefa a obra missionária e, para os que seguem a Cristo, o caráter e modo de vida de Cristo devem ser padrão, em Cristo e através do poder do Espírito Santo. V. Graça, pecado e salvação — Graça é o favor da parte de Deus que torna possível ao ser humano ser salvo, é uma iniciativa de Deus que favorece a humanidade. Por conseguinte, “crer na graça de Deus é ser agradecido; ser agradecido é receber a dádiva da graça e querer reparti-la com os outros…” Pecado não é parte da natureza do ser humano, mas, aconteceu na desobediência do homem ao seu Criador, portanto, houve a quebra de comunhão e separação de Deus. Salvação é uma obra da graça divina que expressa na obra de Jesus Cristo a verdadeira vida. O homem nada pode fazer para obtê-la, a não ser recebê-la por meio da fé.Diz-se então que, segundo Barth, deve-se adorar somente a Deus, a Escritura basta para guiar a Igreja no sentido da verdade e a graça de Cristo basta para regular nossa vida. Sem dúvida alguma a teologia de Barth deve causar impacto na igreja contemporânea. Se não for assim, perde-se a oportunidade de se viver/testemunhar/comunicar o evangelho de modo sério e coerente. Há de se fazer observações ao pensamento teológico de Barth, principalmente quando é radical e submete a razão humana a uma posição de completo desprezo, contudo, mediante os fatos históricos e a análise de como se deram alguns acontecimentos terríveis, pode-se compreender o radicalismo de Barth em face dos colapsos sociais. A teologia dialética pretende ser uma reação a teologia naturalista que se veiculava no século 19 tornando a igreja conformada e alienada dos princípios básicos revelados por Deus em Jesus Cristo. Deve-se louvar a preocupação de Barth em relacionar a teologia cristocêntrica de maneira prática à realidade sócio política sem, contudo, alienar-se dos princípios revelados por Deus. A questão do radicalismo de Barth deve ser compreendida à luz do liberalismo da teologia naturalista, que tornava cada vez mais banal o relacionamento genuíno com Deus e a salvação, favorecendo outros caminhos para se chegar ao conhecimento de Deus. O fideísmo de Barth resgata os princípios teológicos conservadores ignorados pelo momento histórico que tratava o homem como centro do universo e força suficiente e capaz em si mesmo, mas, que em contrapartida, desencadeava uma série de distúrbios e colapsos sociais nas diferentes nações. A implicação dessa teologia na atualidade é a exigência de ponderação e equilíbrio entre fé e razão, possibilitando um repensar das bases eclesiásticas e suas implicações para as comunidade cristãs inseridas no contexto sócio, político, econômico e cultural. Através da teologia de Karl Barth é possível vislumbrar uma igreja que seja comprometida com a soberana Palavra de Deus e seus princípios norteadores e agente transformador da realidade do mundo, por causa do amor de Cristo e em Cristo, no poder do Espírito Santo. A conseqüência disso, é uma igreja missionária que entende a relevância de compartilhar com o mundo a boa nova, sendo consciente de suas limitações e dependente de Deus. Nesse sentido, cabe comentar que a realização dessa obra não se condicionará aos feitos, propósitos e estratégias humanas, a fim de que não se configure uma obra ativista e religiosamente vazia; antes, essa igreja será impulsionada pelo amor e constantemente alimentada pelo Espírito Santo de Deus, sem contudo, desprezar os potenciais humanos. O pensamento teológico de Barth é rico e objetivo e demonstra claramente uma reflexão teológica preocupada em, de acordo com a Escritura, efetuar o kerigma de Deus para o homem. É interessante notar que na atualidade, a teologia parece ignorar a reflexão quanto ao favor de Deus ao homem; à questão de Deus ter a iniciativa, por amor, de aproximar-se. O pensamento em voga evoca exatamente a idéia oposta quando afirma que o homem deve exigir de Deus o favor, colocando o ser humano e a divindade no mesmo patamar e tornando a comunicação imperativa. Deus é portanto, comunicável, o que torna-O também manipulável. O conceito teológico da graça de Deus para com a humanidade deve ser retomado. A igreja deve reconhecer que por si não é capaz de realizar qualquer obra. Deus é que tem o querer e o efetuar e segundo o beneplácito de sua vontade, opera através dos que estão em Cristo, a fim de que o próprio nome de Cristo seja engrandecido. A implicação desse conceito é que uma igreja constituída por pessoas comprometidas com a Palavra de Deus, em Cristo, atuará no mundo sempre na dependência de Deus e reconhecerá a necessidade de que todos sejam dignificados em Cristo, por meio da proclamação das boas novas.
UM ROTEIRO DE ESTUDO: A sua teologia parte da crise e da negação toda a produção humana está sob crise e juízo de Deuse se resolve num processo dialético:Ø o Não de Deus à salvação própria (à religião Babel) vs. o Sim de Deus ao homem. B. Sua teologia é cristológica e cristologia é Ø a doutrina da pessoa de CristoØ a compreensão da dogmática à luz da pessoa de CristoØ reflexão cristã: Deus-em-carne, Deus-feito-homem C. Sua teologia é kerigmáticaØ a mensagem se torna a palavra de DeusØ a palavra do homem se torna a palavra de Deus, se assim for a vontade de DeusØ não há apologética, porque defender a fé é pretender que Deus precisa ser defendido. D. A dialética do kerigma leva a duas conclusões Ø a Bíblia é uma produção humana — lida na presença de Jesus Cristo, se assim for da vontade de Deus, torna-se a palavra de Deus para nósØ a Igreja não é uma instituição que possa ser descrita por sua continuidade histórica — mas, se assim for da vontade de Jesus Cristo, torna-se comunidade com os irmãos na fé através do milagre da Sua presença. E. Sua teologia é crítica em relação aoØ Protestantismo liberal – Aceitou fontes de conhecimento fora da revelação. Tentou apresentar uma teoria do conhecimento fora da revelação. Colocou a consciência moral e a experiência como fonte de revelação.Ø Catolicismo romano e àØ Teologia natural – O homem não pode chegar à compreensão de Deus meramente através da contemplação dos elementos naturais. Terá sempre uma idéia a priori de Deus, fabricação de sua própria mente.
UM TEXTO DE BARTH: Comunidade Civil e Comunidade CristãKarl Barth, Montevidéu, Ediciones Tauro, 1973 [Esta obra de Karl Barth discute as relações entre a Igreja e o Estado. Não enquanto problema jurídico de relações institucionais, mas encontro dialético entre comunidades que se sobrepõem, que têm um mesmo centro de autoridade. No texto sentimos como pano de fundo as reflexões do Agostinho de As Duas Cidades. Aqui, Barth apresenta seu pensamento social numa exposição teológica brilhante e faz um chamado à “presença da comunidade cristã no exercício de sua corresponsabilidade política”. Num século de guerras, o texto de Barth é altamente inspirativo. Por isso, traduzimos e apresentamos na seqüência o capítulo XIV do livro Comunidade Civil e Comunidade Cristã.] Capítulo-XIVA orientação da ação política cristã, de uma ação que se compõe de discernimento, juízo e eleição de uma vontade e de um compromisso, está relacionada com o caráter duplo do Estado, que possui ao mesmo tempo a possibilidade de oferecer e a necessidade de receber a imagem analógica do Reino de Deus que a Igreja anuncia. Como já mostramos, o Estado não pode ser uma réplica da Igreja, nem uma antecipação do Reino de Deus. Em sua relação com a Igreja tem realidade própria e necessária e em sua relação com Deus representa – da mesma maneira que a Igreja – um fenômeno puramente humano, acompanhado de todas as características deste mundo temporal. Não se pode pensar em identificá-lo nem com a Igreja, nem com o Reino de Deus. Mas, por outra parte, desde o momento em que está fundado sobre uma disposição particular da vontade divina, e porque pertence na realidade ao Reino de Cristo, não se pode dizer que seja autônomo. Não poderia existir independentemente da Igreja e do Reino de Deus. Por esta razão não se poderia falar de uma diferença absoluta entre a Cidade e a Igreja por um lado, e a Cidade e o Reino, por outro. Logo, fica uma possibilidade: desde o ponto de vista cristão, o Estado e sua justiça são uma parábola, uma analogia, uma correspondência do Reino de Deus que é o objeto da fé e da prédica da Igreja. Como a comunidade civil constitui o círculo exterior em cujo interior se inscreve a comunidade cristã, com o mistério da fé que ela confessa e proclama, as duas, tanto uma como outra têm o mesmo centro do qual resulta a primeira, distinta pelo princípio no qual está fundada e pela tarefa que lhe corresponde, se encontra forçosamente na relação analógica com a verdade e realidade da segunda; analogia no sentido de que a Cidade é capaz de refletir indiretamente, como por um espelho, a verdade e a realidade do Reino que a Igreja anuncia. Mas como está condenado a continuar a ser o que é e a atuar dentro de seus próprios limites, o Estado, como reflexo da verdade e da realidade cristã não possui justiça e consequentemente não possui também existência intrínseca e definitiva. Ao contrário, sua justiça e sua existência estão sempre gravemente ameaçadas e sempre deve se perguntar se, e até que ponto, está cumprindo com suas tarefas de justiça. Para preservar a comunidade civil da decadência e da ruína é necessário recordá-la de quais são as exigências desta justiça que deve representar. A comunidade civil, pois, precisa desta analogia tanto quanto é capaz de criá-la. Por esta razão necessita uma e outra vez um quadro histórico cujo fim e conteúdo possam ajudá-la a chegar a ser uma analogia, uma parábola do Reino de Deus, permitindo a ela cumprir as tarefas da justiça civil. Mas, nesses assuntos, a iniciativa humana não pode orientar-se somente por si mesma. A comunidade civil, como tal, não conhece nem o mistério do Reino de Deus, nem o centro escondido do qual depende e diante do testemunho e mensagem da comunidade cristã é neutra. Por tanto, tem que se limitar a buscar sua água nas “cisternas rachadas” do chamado direito natural. Por si mesma não pode lembrar-se do critério verdadeiro de sua justiça, nem colocar-se em movimento para cumprir com as tarefas desta justiça. Justamente por esta razão é que precisa da presença às vezes incômoda e saudável da atividade que se desenvolve ao redor do centro comum dos dois domínios: a presença da comunidade cristã no exercício de sua corresponsabilidade política. Sem ser o Reino de Deus, a comunidade cristã sabe algo dele, crê, espera e ora no nome de Jesus Cristo e anuncia a excelência deste nome sobre todos os outros. Nesse ponto não é nem neutra nem impotente. Quando passa ao plano político para tomar sua parte de responsabilidade não abandona sua atitude “comprometida”, esta atitude de fidelidade ao único Senhor.Para a Igreja, aceitar a parte de responsabilidade que lhe corresponde significa uma única coisa: tomar uma iniciativa humana que a comunidade civil por sua parte não pode tomar, dar a comunidade civil um impulso que ela não pode dar a si própria, fazê-la lembrar das coisas que a comunidade civil não sabe lembrar por si mesma. Discernir, julgar, eleger no plano político implica sempre para a Igreja ter que aclarar as relações que existem entre a ordem política e a ordem da graça, para azar de todo aquele que possa obscurecer esta relação. Entre as diversas possibilidades políticas do momento, os cristãos saberão discernir e eleger aquelas cuja realização leve a uma analogia, a um conteúdo de sua fé e de sua mensagem. Os cristãos se encontrarão ali onde a soberania de Jesus Cristo, acima de todas as coisas de ordem política ou de outras ordens, não é obscurecida, mas evidente. A comunidade cristã exige que a forma e substância do Estado, neste mundo caduco, orientem os homens em direção ao Reino de Deus e não os distanciem. Não pede que a política humana coincida com a de Deus, mas sim, que na imensa distância que a separa daquela, seja paralela. Pede que a graça de Deus, revelada de cima e atuando aqui em baixo, se reflita na totalidade das medidas exteriores, relativas e provisórias assumidas pela comunidade dentro dos limites das possibilidades que este mundo oferece. É, pois, em primeiro e último lugar, diante de Deus – este Deus que em Jesus Cristo revelou sua misericórdia aos homens – que ela exerce sua responsabilidade política. Todas suas decisões políticas (discernir, eleger, julgar, querer) têm por isso valor como testemunho, que não é menos real por ser um testemunho implícito e indireto. Sua ação política é pois, também, uma forma de confessar sua fé. Exorta à comunidade civil para que saia de sua atitude de neutralidade, de ignorância espiritual, de seu paganismo natural, para comprometer-se junto com ela, diante de Deus, em uma política de responsabilidade compartida. Desencadeia, além disso, o movimento histórico cujo fim e conteúdo são fazer da cidade terrestre uma parábola, um sinal analógico do Reino de Deus, permitindo a esta cumprir com as tarefas da justiça civil.
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