Sexo e santidade: Entrevista com Gina Strozzi

Autor: Entrevista




JE – O sexo na sociedade para ser debatido precisa ser corrompido. Só é possível falar de sexo sem constrangimento se o seu sentido for adulterado? Talvez sua pergunta sintetize os resultados desta liberdade intoxicante que todos nos somos vítimas. Quando você fala de sexo corrompido, isso me parece um sexo afastado da condição humana. Constrangimento frente a algo natural não existe, há constrangimento frente ao sexo porque ele foi desnaturalizado, e pior, foi desumanizado. Corrompemos o sexo quando não respeitamos a inocência da infância e aceitamos a perversidade da mídia; quando acreditamos nas performances de atletas sexuais nos filmes de Hollywood, e adoecemos por isso, por não conseguirmos ser como eles, ou até por confiarmos que ninguém em nenhuma relação sem preservativo pegou AIDS ou engravidou; ou mesmo, quando agimos com naturalidade diante de editoriais da Marie Clair ao nos perguntar se já fizemos sexo a 3, ou se já gravamos um filme pornô. É preocupante a nossa falta de constrangimento, pois isso aponta para um homem nu e carente, ameaçado sem perceber pela corrupção e fragilidade ética. Em tempos onde o sexo fez seu total “strip-tease”, a sexualidade se dá como saturada fazendo nossas consciências se acomodarem frente ao abismo da imoralidade.
JE – Qual o limite da discussão sobre sexo no eixo eclesiástico? Até que ponto a igreja deve influenciar no conceito propriamente dito? Cada instituição tem sua função, têm seus papéis e responsabilidades. A função da igreja não é ensinar sobre sexo, a priori, sua missão na Terra é levar pessoas a serem salvas pela ação redentora de Jesus Cristo. Quero dizer que tratar de sexo não é dever primeiro da igreja, mas isso não absolve a igreja de se posicionar e manifestar-se diante às inquietações dos seus membros. Sabemos que a igreja está evoluindo no trato das questões pessoais e íntimas. Nitidamente percebemos a preocupação de líderes para com a problemática da gravidez na adolescência, da pornografia, do erotismo infantil, das novas formas de relacionamento ‘relâmpago’ entre os jovens, das discussões sobre a homossexualidade e outras modalidades de relacionamento. Isso aponta para púlpitos que dialogam e tentam encontrar respostas para estas questões. Na verdade os teólogos e pastores são os responsáveis por tratar destas situações à luz da Palavra de Deus, as igrejas necessitam de uma hermeneutização consciente e que dê conta de acolher, tratar e proporcionar vida ao rebanho.
JE – Com quantos anos uma pessoa passa a pensar em sexo? A partir de que idade os pais devem sentar com seus filhos e falar sobre o assunto? Bem cedo, em torno de 2 a 3 anos, as crianças percebem as diferenças sexuais através das roupas e dos brinquedos. Com 4 anos se estabelecem os papéis de gênero (os comportamentos de menino e de menina), processa-se a identificação sexual. A criança brinca de família e de casamento. Neste caminhar, muito importante na educação sexual é respeitar a curiosidade da criança, a criança não deve ser punida ou ter respostas evasivas diante de uma dúvida ou inquietação. Fazer ‘segredos’ sobre sexo gera na criança desconfiança e suspeitas. Os pais devem ter uma postura onde as queixas, as dúvidas e as curiosidades sejam autorizadas. Crianças seguras falam de forma transparente com os pais, se mostram e repartem as angústias normais do desenvolvimento psico-sexual. Não há uma idade pré-estabelecida pra se conversar sobre sexo, se entendemos que desde que nascemos somos seres sexuais, compreenderemos que a sexualidade é algo amplo em nós, ela não se restringe ao ato sexual, portanto, mais importante do que se falar sobre sexo é ensinar e permitir a percepção da sexualidade como normal e natural nas nossas vidas. Muitos pais se sentem tímidos e sem recursos para falar com seus filhos sobre a sexualidade, até porque muitos não conseguem lidar com a sua própria vida sexual, então eu sugiro que dêem o ‘colo’, dêem afeto, aproximem seus filhos de modo que se crie sensibilidade e intimidade o suficiente para que eles possam vivenciar com tranqüilidade o cotidiano das tensões, das descobertas e conquistas de uma sexualidade sadia.
JE – Crê que a AIDS impediu maior libertinagem sexual? Creio que a AIDS sacudiu implacavelmente os lugares de maior privacidade, colocando cada pessoa diante da sua sexualidade, do relacionamento com o outro, da intimidade e da sua individualidade. A AIDS colocou em jogo o grande paradoxo do sexo na modernidade: vivemos em total permissividade, porém ameaçados pela infelicidade, doença e morte! Estamos libertos, porém sós!!! Aliada a esta questão da solidão e medo de contágio, onde a hipótese mais segura é a da auto-satisfação pelo sexo virtual, surge também o apelo ao que chamamos de ‘sexo-de-auto-risco’. Nesta modalidade se torna altamente libidinoso um sexo mais ousado onde o perigo de contaminação torna o sujeito mais excitado. Este é o inferno moderno que a AIDS nos legou.
JE – Que efeitos negativos a mídia trouxe para o assunto? Mídia é um caso sério. Geralmente os meios midiáticos propõem um modelo de comportamento sexual que causam sofrimento e inferioridade. A mídia massifica, uniformiza e desconsidera as subjetividades e particularidades da sexualidade humana. As revistas masculinas e femininas ditaram a mentira de que “pênis grande é o que conta” e traumatizaram muitos homens. A Tv ultrapassou todos os limites quanto à violência e vulgaridade, vemos ‘mascaradas’ de todo o tipo, seminuas e insinuantes testando o nosso limiar de tolerância moral, principalmente frente às crianças, que se tornam alvos de hostis e brutais exposições.
JE – Nos EUA são proibidas cenas de nudismo, revistas com exposições explícitas nas bancas e palavrões na tv aberta. Mas existe uma malicia dissimulada em quase todos os programas. Crê que há beneficio nessa abordagem? A sexualidade é formatada em nós por gestos, cheiros, fantasias, símbolos, códigos invisíveis que encontram sentido no imaginário de qualquer pessoa, seja criança, jovem, adulto ou idoso. Assim, ver a foto explicita ou ser seduzido e induzido a desejar algo erótico sem uma imagem influencia de igual forma o comportamento humano. Mas, diante disso, podemos ainda considerar o que a psicanálise nos ajudou a compreender: que o desejo se dá e se sustenta principalmente na falta do objeto, o que significa dizer que esta forma mais velada de erotismo talvez excite mais as mentes e corpos do que a exposição freqüente do nu nas bancas de revistas.
JE – Que tipo de ajuda pode conseguir a pessoa que usa o sexo de maneira compulsiva? O compulsivo não sente prazer, segue sempre um ritual, vê o sexo como uma obrigação que impõem a si próprio. O compulsivo tem o sexo como uma válvula de escape da ansiedade, faz sexo pra sentir alívio e não pra se satisfazer. Não devemos confundir a compulsão por sexo com o impulso pelo sexo. A pessoa com forte impulso por sexo, geralmente necessita de excessiva atividade sexual e obtém prazer nos atos.
JE – Como lida com o fato de ser Sexóloga e Cristã ao mesmo tempo? Primeiro, quero dizer que não há contradições. Qualquer cristão tem sexualidade e faz sexo. Eu sou uma especialista deste tipo de comportamento. Tento ajudar as pessoas nesta área. A tua pergunta de certa forma carrega um pouco do preconceito contido no imaginário das pessoas, de que sexo e cristianismo são incompatíveis, e todo o meu trabalho é tentar agregar à pessoa humana sua integralidade, considerando a cultura, a religião, a educação e os preceitos familiares, entre outras coisas como instituidores da sexualidade.
JE – Mas nunca sofreu algum tipo de preconceito? Geralmente falar sobre sexo suscita no imaginário das pessoas algumas fantasias do que é uma Sexóloga, ou de que como é alguém que vai tratar este assunto. Pessoalmente, causo alguma estranheza nas pessoas sim, mas não que sofra preconceito porque acredito que o preconceito envolve ações práticas ou simbólicas contra um sujeito, e no meu caso isso nunca ocorreu. O que acontece é um ‘susto’, porque ou sou nova demais, ou porque as pessoas acham que eu deveria ter muita prática no assunto pra poder ensinar sobre isso. E no que toca a questão da experiência isso é bem complicado. Até porque essa especialização é nova no Brasil; o tratamento profissional para com a sexualidade é recente. A Medicina, a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia se concentram sobre questões sexuais, principalmente após a epidemia da AIDS. Uma das maiores autoridades em sexualidade humana, Drª. Carmita Abdo da Faculdade de Medicina da USP é a responsável pelos dados que nos fazem refletir sobre a importância da conscientização e da educação sexual, dados apontam que 50% da população são acometidos por disfunções sexuais, ou seja, se não for eu, pode ser você.
JE – Sem jargões evangélicos, quais as vantagens do sexo dentro do casamento? É a vantagem de ter o sexo como algo que faz parte de um relacionamento, de um vinculo, de um concerto que envolve direitos, deveres e responsabilidades. Sexo num relacionamento denota a noção e o sentimento de segurança e de pertença. Em tempos de convívio destruído, onde as pessoas estão fadigadas pelos descartes e troca-troca de casais, e onde o ‘amo você’ significa ‘te amo até aparecer um melhor’… sexo no casamento inspira permanência, memória, lembranças e por isso insisto no sentimento de pertença e segurança que ele ainda pode nos oferecer. As pessoas são seres que almejam os laços, os vínculos, as fotos no álbum pra mostrar pros netos. Relação sexual no casamento tem proximidade com esta figura, com a reprodução das nossas histórias.
JE – Existe alguma relação entre a maneira que uma pessoa pensa em sexo e seu caráter? Somos seres complexos, nosso caráter pode ser instituído pela família, pelas leis que aprendemos e escolhemos para respeitar, pela religião que seguimos e cremos, pela educação que tivemos no colégio, pelos valores que emprestamos dos nossos amigos e grupos, enfim assim como somos seres que ‘somam’, também somos seres que ‘abstraem’, somos pessoas que rejeitamos, abrimos mão, e não nos apropriamos do que não julgamos necessários a nós. De igual forma ocorre com a sexualidade, incluímos a ela o que julgamos bem ou preterimos o que é mal. Obviamente que não me refiro aos transtornos sexuais (como a pedofilia, o sado-masoquismo, etc), pois nestes, há um rompimento não de caráter, mas de aparelho psíquico, há uma defasagem na vida afetivo-emocional do individuo.
JE – Você acredita que a igreja católica tenha influenciado de maneira negativa os valores do sexo proibindo o casamento de padres e freiras? Vejo que a repressão é sempre um mau caminho. Quando reprimimos algo tão forte quanto é a sexualidade, geralmente acabamos em dois lugares: na doença ou na clandestinidade, ou seja, “vou procurar um lugar onde ninguém me vê pra poder fazer o que não me permitem.” Agora, falando especificamente do sacerdócio, acredito sim que existem pessoas separadas pra esta função e portadoras desta vocação. Porém, talvez o maior mal que um sistema possa fazer às pessoas é privá-las da satisfação de uma necessidade, e não estou falando de sexo por sexo e sim de sexo por amor, de sexo como forma de carinho, como forma de relacionamento. É importante entendermos que as religiões, principalmente as ocidentais, são um tanto quanto restritivas em matéria de sexo (dentre outras coisas), porque as interdições fazem parte da natureza das religiões para resguardar a atenção dos indivíduos em direção ao sagrado e isto em si não é mal, e ainda mais do que isso, os interditos são impostos a fim de se garantir não só a atenção, mas a qualidade da atenção (santidade e pureza de vida no culto) que será dedicada a Deus. Portanto, o mal não está nas restrições à sexualidade, mas à proibição arbitrária, refletida na negação e repressão total sobre um alvo tão misterioso e imponderável como é a sexualidade humana.
JE – Sempre se fala de sexo na igreja de maneira superficial e em algumas o assunto sexo é quase proibido. Por que é tão difícil se falar de sexo? Falar sobre sexo é difícil porque se encosta à noção de pecado. Sabemos que muitas vezes os “piores” pecados na igreja estavam agregados às idéias de adultério, gravidez indesejada, promiscuidade no namoro, homossexualidade e etc. Assim, todo o esforço hoje em se perceber a importância de se tratar este assunto fica meio que contaminado por esta idéia do pecado.
JE – Quando o sexo passa a ser pecado? Quando o sexo lhe afastar de Deus.
JE – Em suas palestras ou atendimentos em sua clínica, qual o caso que mais te intrigou? Uma das minhas pacientes me relatou que tinha cerca de 5 anos quando perguntou a mãe o que era motel. A mãe disse que era um lugar de dormir uma noite só. Um dia a família saiu para viajar e a filha perguntou mais uma vez a mãe se eles iriam dormir em um motel. A mãe disse que não, porque motel era para marginais e pessoas de baixo calão. Sempre que passava em frente a um motel e via alguém saindo, imaginava que aquelas pessoas eram bandidas. Depois que descobriu que aquelas pessoas faziam sexo lá, (a concepção de motel no Brasil é oposta à concepção americana) ela se bloqueou em relação ao sexo. Sexo para ela era coisa de bandido, de gente sem escrúpulos, e isso teve de ser trabalhado no seu lado psicológico já que não concebia a idéia de sexo como presente de Deus, dentro do casamento. Highlights: “A mídia massifica, uniformiza e desconsidera as subjetividades e particularidades da sexualidade humana. As revistas masculinas e femininas ditaram a mentira de que ”pênis grande é o que conta” e traumatizaram muitos homens.” “Não há uma idade pré-estabelecida pra se conversar sobre sexo, se entendemos que desde que nascemos somos seres sexuais, compreenderemos que a sexualidade é algo amplo em nós, ela não se restringe ao ato sexual, portanto, mais importante do que se falar sobre sexo é ensinar e permitir a percepção da sexualidade como normal e natural nas nossas vidas.”

* Ela é uma das pioneiras no Brasil na pesquisa da sexualidade sob o prisma da santidade. Gina Strozzi é casada com o Pr. Augusto Nicolau da Igreja Batista da Liberdade em São Paulo, tem um filho de 4 anos chamado Guilherme. Gina é formada em Teologia, Pedagogia, Psicologia e Sexologia pela USP. É Mestre e doutoranda em Ciências da Religião pela PUC-SP.


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