Autor: Luiz Vergílio Batista da Rosa
“Pois decidi nada saber, exceto Cristo” (1 Coríntios 2.2)
Sentimentos
As ações são fruto do que sentimos e acreditamos, e determinam a qualidade dos relacionamentos. E os nossos sentimentos e as nossas convicções determinam o projeto de vida que desejamos construir e usufruir. Por outro lado, enfrentamos dificuldade nas relações de mediação e de autoridade, entre nós, sem que os nossos sentimentos e convicções pessoais sintam-se ameaçados. Vivemos, ainda, em muitos aspectos, sob o primado da individualidade e do congregacionalismo, que se tornam anárquicos, quando confrontados com um ideal comunitário e conexional. Proponho uma breve reflexão sobre este tema.
O saber Cristo
Quando cheguei a Porto Alegre, vindo de Bento Gonçalves, uma das primeiras coisas que fiz foi adquirir um mapa da cidade. Pouco a pouco, fui traçando itinerários, tendo como referência o bairro Glória, zona sul de Porto Alegre. Com o tempo, dispensei o mapa. Tornei-me perito das ruas principais dos bairros e também das secundárias e dos becos.
Doze anos depois, transferido para a zona norte, esse mapa mental foi para o espaço. Embora transferido para a mesma cidade, tinha o desafio de construir outro mapa mental; adquirir um novo conhecimento da cidade, a partir de uma nova perspectiva. E, construir novos conceitos sob novas perspectivas é uma tarefa que traz inseguranças e equívocos. Várias vezes deparei-me voltando para a casa pastoral da zona norte, seguindo o mapa mental da zona sul. Percebi que algo havia sido incorporado ao meu modo de vida, não apenas mental, mas afetivo, cultural. Lembrei-me dos mapas-múndi de Mercatur (1538). O mapa Saltério tem 14 figuras nuas, uma com cabeça de cão, outras de pessoas sem cabeça, mas com olhos e bocas no peito, muitas a devorar pernas e braços humanos. Essas figuras eram estrategicamente colocadas nos espaços geográficos desconhecidos ou a serem descobertos.
A construção desses mitos irá povoar a literatura da época, como categorias de pensamento, que vão expressar, na verdade, o olhar e a posição de quem está em determinado lugar, sobre os que estão distantes de seu lugar de referência. Para muitos, estão aí as raízes para o racismo e as múltiplas formas de discriminação, intolerância e opressão, presentes na escravidão moderna e no colonialismo europeu.
Nós pensamos com os mapas mentais construídos. Nos nossos mapas definimos o que é central e o que é periférico; o que é principal e o que é secundário. Sardar diz que pensamos o mundo a partir de mapas culturais.
Assim, nós decidimos o que vai ser incluído e o que vai ser excluído de nosso mapa afetivo, político, social e religioso. Daí brotam os conflitos inter e intraculturais com seus diferentes matizes, constituindo novos guetos, novas barreiras de separação humana. Esse é um conflito que enfrentamos, permanentemente.
Para o apóstolo Paulo, saber o que é essencial se constituía no permanente desafio de sua ação pastoral, cuja radicalidade pode ser manifesta, muitas vezes, até pelo não saber. Decidi nada saber, exceto Cristo. O que era central, ao reconstruir seu mapa cognitivo, à luz de sua experiência de encontro com Deus, era o que determinava a qualidade da vida de relações com Deus e o próximo. Como o saber se processa na relação com as pessoas e com as coisas, o diálogo (testemunho) é uma das poucas possibilidades reais de solução dos conflitos. Dialogar é saber sua história, é contar sua história, mas, também é saber a história das outras pessoas. Estes saberes produzem uma nova história: a da comunhão, do entendimento.
A disposição para o diálogo, que abre portas ao testemunho da fé na revelação de Cristo, como ato amoroso e misericordioso de Deus, é uma das poucas possibilidades reais de solução dos conflitos.
O poder
O apóstolo Paulo também estabelece, na sua ação pastoral, um vínculo inseparável entre o saber a Cristo e o poder de Deus.
O conceito que herdamos da modernidade quanto ao poder é o de que este é uma categoria que uns possuem sobre os outros; que se irradia de cima para baixo; que pertence ao indivíduo que o exerce.
Muitos dos conflitos e das tensões entre pastores e bispos, pastores e pastoras entre si, pastores e leigos, e leigos e leigas situam-se no contexto do exercício do poder que circula entre nós. Isso geralmente acontece porque o exercício do poder é tomado como um ato de coerção. E, como o poder age sobre os nossos corpos, ele se manifesta como ação física de imposição. E quem usa o poder a partir desta conceituação o faz, se necessário, com violência.
Foucault diz que a violência pode ser usada com as melhores intenções (quem bate numa criança para corrigi-la crê que está fazendo algo bom). Como não existem relações humanas que não sejam relações de poder, é preciso pensar uma alternativa conceitual que não seja essa que herdamos da modernidade, pois o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente. Desse modo, não é a negação da realidade do poder que irá resolver nossos conflitos, mas a desconstituição do senso comum sobre ela e a construção de uma nova relação com o poder, a partir de novos pressupostos.
Um desses pressupostos está no reconhecimento de que o poder precisa agir sobre a ação e o saber dos outros. Age no consentimento, nos consensos que legitimam a autoridade. Os saberes instituem valores morais, éticos, estéticos, religiosos e é sobre esse universo consentido que as relações de poder circulam. Essa é uma experiência de ressignificação, ou seja, as relações entre as pessoas pelas quais circula o exercício do poder não são predeterminadas ou preconcebidas, são construídas, portanto, novas. Isso não significa transferência ou diluição de atribuições, mas ação consentida pela construção de relações de diálogo, pela possibilidade de convívio com as diferenças.
Outro pressuposto é o de que o poder pode ser exercido de forma relacional e representativa. Em nossa Igreja, invariavelmente, nos encontramos em muitas instâncias, em meio a diferentes relações institucionais. Ora a de quem processa a dinâmica do poder, ora a de quem está sujeito a essa dinâmica. O próprio trabalho pastoral é exercido pelos pastores e pastoras onde atuam, ora como quem está investido da dinâmica do poder institucional, ora como quem sofre essa dinâmica. Deste modo, um projeto que se fundamente apenas no individual, sofre o risco de sofrer uma prática autoritária, no trânsito do poder. O poder individualizado pode roubar, matar e destruir a dinâmica do Espírito, na vida da Igreja.
A prática do poder de forma relacional e representativa implica construir relações interpessoais saudáveis, em ambiente de mútua confiança e de clareza e respeito pelas especificidades das atribuições que cada um e cada uma ocupam, as quais foram coletiva e conexionalmente constituídas. Isso permite uma relação justa e equânime entre nós, na qual uma posição de intransigência só justificará o individualismo, vaidades pessoais e a desagregação, pecados contra a Igreja de Cristo, pecado contra o Espírito.
Poder do amor
No Evangelho, amor é motivo para o diálogo com Deus e com o próximo; portanto, princípio fundamental (essência) para os relacionamentos e exercício de poder. Amar a Deus é ter consciência de si, do seu valor, do seu lugar, das suas responsabilidades. Amar ao próximo também é descobrir a si mesmo; sua e minha história, nossas relações, como filhos e filhas de Deus. Portanto, amar é dialogar, é falar com a vida; é ouvir a outra pessoa, é fazer-se ouvir. Amar é saber Cristo, “é conhecer as necessidades do bairro, da cidade, do campo, do país, do continente, do mundo; é participar da missão de Deus em estabelecer o Seu Reino; é reconciliar consigo mesmo o ser humano, libertando-o de todas as coisas que o escravizam, concedendo-lhe uma nova vida à imagem de Jesus Cristo, através da ação e poder do Espírito Santo” (PVMI).
Que Deus nos abençoe nessa tarefa.
* Luiz Vergílio Batista da Rosa, Bispo na 2ª Região Eclesiástica – Igreja Metodista.
Bibliografia
ADLER, Daniel, Introdução às Ciências Cognitivas, Ed. Unisinos, 1998.
SBB, Novo Testamento Interlinear, SP, 2002.
FOUCCAULT, Michel, Microfísica do Poder, RJ, Edições Graal Ltda, 1979.
SARDAR, Ziula, et, al. – Bárbaros são os outros, Edições Dinossauro, Lisboa, 1996.
PVMI, Colégio Episcopal, Ed. Cedro, SP, 3ª edição, 2001.
Visite: www.icurriculo.com
www.ilustrar.com.br
www.portalvida.com
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