Recordar os sofrimentos do passado

Autor: Paulo Severino
Uma reflexão sobre o papel da memória na fé, a partir de 1 Coríntios 11.23-26

INTRODUÇÃO

No texto-base desta reflexão, que registra a tradição recebida pelo apóstolo Paulo a respeito da Ceia do Senhor, destaca-se a frase: “Em memória de mim”. Ela aponta para o fato de que a recordação do passado é um dos aspectos fundamentais da celebração eucarística.
Temos necessidade da memória. A fé vive da memória. Lemos em Êxodo 12.14: “Este dia vos será por memorial, e o celebrareis como solenidade ao Senhor: nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo”. Assim como o povo judeu recebe a ordem de comemorar a Páscoa como memorial, todos os anos e para sempre, nós cristãos devemos celebrar regularmente a Ceia do Senhor (a Páscoa cristã) em memória de Cristo, “até que ele venha”.
Quão grande é a importância da memória. Afinal, ninguém vive sem passado, sem tradições, sem raízes, sem história. Nosso passado é nossa história. É só o que realmente temos, que ninguém pode tirar de nós.
De mais a mais, não se pode saber quem se é se não se sabe quem se foi. Este é o drama dos desmemoriados, que perdem sua identidade porque perderam sua memória.
Que recordamos na Ceia? O amor de Deus em Cristo (Jo 3.16), e o amor do próprio Cristo por nós (Jesus é o Bom Pastor, que dá a vida pelas ovelhas, e o faz voluntariamente, espontaneamente; cf. Jo 10). Como é este amor? É de doação integral, de entrega total e completa. João 13.1 diz que Jesus nos amou até ao fim, ou seja, foi às últimas conseqüências em seu amor por nós. Ceia é anúncio da morte do Senhor – para lembrarmos até que ponto ele nos amou. Só por isso seu amor pode ser plenamente acreditado. Amor só é verdadeiro quando é de 100%, sem reservas.
Para que este amor? Para nossa salvação (Mc 10.45; novamente Jo 3.16). Salvação é vida eterna na comunhão de Deus, para a qual fomos criados; é ter a condição de filhos e filhas de Deus.
Ceia é memória, recordação; é ocasião de trazer de volta ao coração tudo o que Deus fez por nós, atualizando seu amor para o nosso hoje. Para promover essa atualização, é preciso olhar para trás.
É preciso recordar o passado – as coisas boas e ruins, ambas partes integrantes da história de povos e pessoas individuais. (Entendendo coisas boas como tudo aquilo que Deus fez por amor de nós, e coisas ruins como as realidades decorrentes de nosso afastamento voluntário para longe desse Deus de amor.) Nada pode ser negado; tudo deve ser assumido.
Lembrar das coisas boas é fácil, é agradável, é tranqüilo. Mas é preciso lembrar também das coisas ruins, dos sofrimentos do passado. Preciso e inevitável: lembrar a salvação é ao mesmo tempo lembrar a escravidão, a situação de não-salvação da qual Deus nos tirou e o sofrimento ligado a ela. Se é verdade que nossa memória é, em geral, seletiva, e por isso esquecemos muitas coisas, a maioria sem importância, é verdade também que há coisas que não podem jamais ser esquecidas, que não podem nunca ser consideradas desimportantes. E entre elas está o sofrimento.
Nossa reflexão de hoje não será sobre as coisas boas do passado, mas sobre as ruins, que também precisam ser recordadas. Por que lembrar o sofrimento do passado? Porque é parte de nossa vida humana, de toda vida verdadeiramente humana (lembremo-nos do célebre poema de Francisco Otaviano). E tudo isso para quê? Basicamente, com três finalidades devemos recordar os sofrimentos do passado.

1) PARA QUE AS SITUAÇÕES RUINS NÃO SE REPITAM

Pelo menos, não no que depender de nós. Deixar o sofrimento do passado cair no esquecimento é abrir brecha para a repetição de coisas desagradáveis. Não se pode ignorar o que se passou, por pior que tenha sido; não se pode fingir que certas coisas não aconteceram; não se pode fugir do passado. Quem faz assim está fadado a desaparecer, como os grandes impérios da antiguidade, que só celebravam seus grandes feitos.
Diferente é o exemplo dos judeus, único povo do mundo antigo a recordar suas desgraças e tragédias e a refletir sobre elas, como a servidão no Egito e o exílio babilônico, por exemplo – não por acaso, a dos judeus é a única cultura antiga que sobreviveu. Que é a Páscoa judaica? A celebração da libertação do Egito e do sofrimento relacionado àquele tempo; por isso, a festa é celebrada com pães asmos, que representam a pressa da saída, e ervas amargas, símbolo do sofrimento (Êx 12.8; cf. v. 11). Fiéis a esta sua característica, os judeus hoje em dia comemoram todos os anos o holocausto nazista. Não por masoquismo, isto é, não por gosto pelo sofrimento, mas para evitar sua repetição. Pois só quem tem plena consciência do mal que sofreu pode estar pronto para lutar contra novas ocorrências do mesmo mal.
O sofrimento não pode ser esquecido para não acontecer de novo. Por isso, “fazei isto em memória de mim” – de tudo que Jesus fez por nossa salvação, do quanto lhe custou realizar sua obra, da suficiência dessa obra, do grande preço do perdão, que não pode ser banalizado nem desprezado sem grave prejuízo no presente e no porvir.

2) PARA NÃO IMPOR SOFRIMENTOS A OUTROS

Quem sofreu sabe por experiência própria como isto é ruim. Não deve, portanto, fazer com que outros passem pela mesma situação. Esta era a vontade de Deus em Israel com respeito ao estrangeiro. Lv 19, mesmo capítulo da Torá que nos diz: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (v. 18b), segundo grande mandamento da lei de acordo com Jesus, também nos diz nos vv. 33-34: “Se o estrangeiro peregrinar na vossa terra, não o oprimireis. Como o natural será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito”. O estrangeiro fazia parte do grupo dos que mereciam especial atenção do Deus de Israel, Deus dos fracos e dos oprimidos; freqüentemente aparece ao lado do órfão e da viúva. Portanto, lembrar o sofrimento é importante para tratar bem os outros:com respeito, cuidado, dignidade.
Nem sempre esse princípio bíblico e tão lógico foi seguido – possivelmente, quase nunca. Pois os homens são muito lentos e relutantes para aprender o bem e para praticar a vontade de Deus. O momento mais notável de desobediência desse princípio foi o tempo do império de Davi e Salomão, quando Israel, o povo outrora oprimido, tornou-se opressor – fez sofrer. Arcou com as conseqüências de seu erro: desunião dos reinos de Israel e Judá, logo após a morte de Salomão, pois os israelitas do norte não agüentavam mais sofrer sob o filho de Davi; constantes guerras fratricidas e com os vizinhos que queriam recuperar sua independência e também, se possível, dominar o povo de Deus; enfraquecimento e decadência, com poucas interrupções de paz e prosperidade; e o fim definitivo da monarquia, primeiro no norte, depois no sul. Apesar dos sonhos messiânicos de restauração da glória passada, que perduram até hoje, isto nunca se concretizou nem jamais se concretizará, pois não é esta a vontade de Deus. O Deus da libertação não pode ser transformado impunemente num deus de opressão.
Assim, não temos o direito de causar sofrimento ao nosso próximo. Sabemos o quanto é ruim sofrer.
Cuidemos, pois, de não fazer sofrer aqueles em favor de quem Cristo morreu. De Deus não se zomba; Ele não deixará o mal sem castigo.

3) PARA SER SEMPRE GRATOS A DEUS POR SUA SALVAÇÃO

Em outras palavras: Para manter viva na consciência a realidade do que fomos outrora e do que somos agora. Estamos livres de um passado de sofrimento por culpa de nossos próprios erros, de nossa rebelião sem causa contra Deus, pela sua maravilhosa e estranha graça. Estamos reconciliados e em paz com Deus. O pecado já não tem domínio sobre nós. Coisas ruins poderão ainda nos acontecer, como conseqüência de novos erros nossos, danos poderão ser causados aos nossos corpos pela maldade dos homens, mas nada nem ninguém poderá atingir nossas almas, o âmago de nosso ser, sem nosso consentimento. A ninguém precisamos temer senão ao Deus vivo e verdadeiro, nossa Rocha e Redentor (cf. Mt 10.28).
Leia Deuteronômio 8, e veja a razão apresentada ali para a memória do passado. É preciso recordar para ser humildes e gratos, e, conseqüentemente, generosos. O esquecimento de que tudo que somos e temos vem de Deus gera falta de consciência dos nossos limites e necessidades, o que pode nos levar a um ridículo orgulho e a uma igualmente ridícula e também enganosa sensação de auto-suficiência. E pior: leva-nos à falta de gratidão, um dos mais graves pecados, e dos mais comuns. Por fim, pode nos levar ainda à falta de misericórdia, como mostram as parábolas do credor incompassivo (Mt 18.23-35), do rico avarento (Lc 12.13-21) e do rico e Lázaro (Lc 16.19-31).
Para nossa edificação e bênção, num viver livre desses erros terríveis, o Senhor instituiu o sacramento da Santa Ceia. E um dos nomes da Ceia do Senhor é Eucaristia – ela é celebração da “boa graça de Deus”, momento de ação de graças na vida da Igreja pela salvação gratuita e imerecida de Deus em Cristo.
A Ceia é alimento indispensável para a manutenção e o crescimento da vida espiritual – alimento que não podemos providenciar para nós mesmos e sem o qual não podemos passar, mas que Deus também nos concede de graça: este pão do céu, pão da vida, que é Jesus, simbolizado no pão material que repartimos.
A Ceia é estímulo e incentivo para a prática do amor – assim como fomos amados, devemos nos amar uns aos outros e a todas as pessoas, inclusive o nosso inimigo, que também é nosso próximo.
A fé vive da memória, da recordação dos atos salvíficos de Deus. Recordar os benefícios de Deus é recordar ao mesmo tempo os sofrimentos do passado, dos quais Deus nos livrou.
Não se pode desprezar o passado; antes, é preciso ter consciência viva do que passou, pelos três motivos acima: para que as situações ruins não se repitam; para não impor sofrimentos a outros; para ser sempre gratos a Deus por sua salvação. Só assim seremos plenamente humanos, como Deus quer.
A fé olha continuamente para trás, para a história, lugar da revelação e da experiência de Deus, desse Deus que é o mesmo, ontem, hoje e sempre, pois não muda em seu amor, a despeito da nossa inconstância. Daí tira forças para as lutas do presente, esperança para o futuro, sustento para a caminhada na fé e no amor.

*O autor é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, professor do Seminário Simonton, onde exerce as funções de coordenador do Departamento de Teologia Exegética e do Curso de Bacharel em Teologia, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Para falar com o autor, envie um email para: gloriapaulo@easyline.com.br

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