Autor: Jean Delumeau
Leia com exclusividade a palestra que o historiador francês Jean Delumeau fez em Bauru
Jean Delumeau, um dos principais historiadores europeus, especialista no passado do cristianismo, realizou neste mês uma série de palestras em universidades brasileiras. Trópico apresenta abaixo, com exclusividade, a conferência que ele fez na Universidade do Sagrado Coração, em Bauru (SP), no dia 5 de junho.
Delumeau também falou na USP, na Unicamp, em Salvador, Belo Horizonte e na UNB, em Brasília, onde participou, no dia 14, da defesa de tese de doutorado de Luís Corrêa Lima, autor do livro “Teologia de Mercado: uma visão da economia mundial quando os economistas eram teólogos” (Edusc).
Delumeau é autor de “O Pecado e o Medo”, lançado no Brasil recentemente pela Editora da Universidade do Sagrado Coração, que promove a visita do historiador ao país, junto com as universidades onde ele falará. Também foram publicados no Brasil os seguintes livros de sua autoria: “História do Medo no Ocidente”, “A Confissão e o Perdão”, “Mil Anos de Felicidade”, “O Que Sobrou do Paraíso” (Companhia das Letras) e “De Religiões e de Homens” (Loyola).
O tema que vocês quiseram que eu tratasse hoje é bastante atual por duas razões: primeiramente, porque meu livro que traz o título dessa conferência acaba de ser lançado aqui, em português; depois, porque o recente filme de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”, convida a uma reflexão histórica sobre o dolorismo.
Fui levado a escrever o livro “O Pecado e o medo” num contexto de uma vasta pesquisa histórica sobre os medos de outrora no Ocidente. Pois, dentre esses medos, como poderia esquecer um dos mais importantes, sobretudo nos séculos passados? Estou me referindo ao medo de alguém julgar a si mesmo como um pecador. O jesuíta francês Bourdaloue escrevera no século XVII: “Não é de forma alguma um paradoxo, mas uma verdade certeira, que não temos maior inimigo a temer do que nós mesmos. Como isso é possível?… Eu sou mais… temível para mim do que todo o resto do mundo, já que só cabe a mim aniquilar a minha alma e excluí-la do reino de Deus”. Essa afirmação refletia antigamente a opinião geral dos diretores espirituais da cristandade.
Mas permitam-me nessa introdução precisar dois pontos: inicialmente eu só quero e posso dar aqui uma contribuição de historiador -um historiador que tem consciência de seus limites; além disso, desejo acentuar que meus dois livros sobre o medo, e principalmente este ao qual me refiro, constituíam dossiês, e não requisitórios. Este tema que abordo hoje esclarece o funcionamento e a difusão de um discurso culpabilizador. Ele se situa então mais sobre o plano da constatação do que do julgamento, mesmo se é verdade que minha investigação visou reencontrar a mais autêntica mensagem cristã, vítima dos desvios históricos que é preciso explicar e não de condenar. Compartilho inteiramente do que escreveu em 1789 a revista “Trenikan”: “Na história da Igreja, os fatos existem para nos instruir e para que evitemos cair em erros semelhantes. Por outro lado nós não temos nenhum direito de julgar as pessoas e nada prova que no lugar delas nós não teríamos feito melhor do que fizeram”. Com esse estado de espírito, minhas duas obras sobre o medo procuraram fazer aparecer os condicionamentos culturais deste medo durante um certo período e num certo espaço. Esse método pode também nos ajudar a compreender as situações atuais.
Nunca uma civilização concedeu tanto peso à culpa e valor ao arrependimento do que o cristianismo nos séculos XVIII-XIX. Estamos diante de um fato maior que não poderíamos esclarecer inteiramente. Daí meu livro, que pretende ser uma história cultural do pecado na civilização da qual somos herdeiros. Encontrar em um espaço e numa faixa cronológica dados a história do pecado, consequentemente da “má imagem de si”, é se colocar no coração de um universo humano; é extrair um conjunto de relações e atitudes formadoras de uma mentalidade coletiva; é encontrar a reflexão de uma sociedade sobre a liberdade humana, sobre a vida e a morte, sobre o fracasso e o mal; é descobrir sua concepção das relações com Deus e a representação que esta sociedade fazia Dele. É, então, no interior de certos limites de tempo e espaço, empreender conjuntamente uma história de Deus e uma história do homem.
Deus é sobretudo bom ou sobretudo justo? Uma civilização inteira se perguntou incansavelmente durante séculos sobre essa questão. Freud e Jung, que se opuseram um ao outro, estavam no entanto de acordo ao ressaltar o lugar que todo estudo das sociedades deveria conceder ao pecado. Freud apresentava mesmo o sentimento de culpa como o problema capital da civilização. Vocês compreendem imediatamente porque dediquei um livro enorme à culpa na história ocidental.
É o cristianismo que criou os termos peccator e peccatrix, que não existiam no latim clássico. Só que, “nada é mais claro”, escrevia Jung, “para provocar a consciência e o despertar do que um desacordo consigo mesmo”. O convite a um exame de consciência induz na longa duração a um refinamento sem precedente da introspecção. Ela ocasionou um progresso do sentido da responsabilidade individual. Ela desenvolveu uma moral da intenção. Ela fez compreender a gravidade de certas omissões. Ela foi geradora de uma tensão criadora. O homem cristão, submisso à culpabilização intensiva, foi levado a se aprofundar, a conhecer melhor seu passado pessoal, a desenvolver sua memória (nem que fosse pela prática do exame de consciência e da “confissão geral”), e a precisar sua identidade.
A “má consciência” se desenvolveu cronologicamente no Ocidente ao mesmo tempo em que se apurava na pintura a arte do retrato. Além disso, ela conduziu, por uma necessária contrapartida, à elaboração da noção de circunstâncias atenuantes que faz agora parte de nosso equipamento mental. De uma certa maneira pode-se falar em felix culpa. Ao que se deve acrescentar, no plano psicológico, que a confissão -com a condição que ela seja livre e voluntária- quebra a solidão, permita a escuta, propicia compartilhar o sofrimento, e que o perdão traz de volta a alegria e liberdade àqueles que são arrasados pelo peso de sua culpa.
Os clínicos bem sabem que a patologia da falta não é própria dos crentes. Inversamente, e contrariamente a certas generalizações muito em moda hoje em dia, todo sentimento de culpa não é mórbido. Um sentimento normal de culpa me parece como um chamado, não à supressão, mas à transformação das pulsões que estão em desacordo com o ideal de nosso eu. Mais geralmente, e destacando essa observação de Freud do julgamento negativo que ele nutria sobre a religião, “toda civilização se oferece exigências morais e renúncias culturais”.
Meu livro sobre “O Pecado e o medo” e a minha proposta de hoje não devem ser compreendidos como uma recusa e uma rejeição da culpa. Em compensação, é impossível ao historiador do medo, e ao historiador simplesmente, não fazer ressaltar a presença de um verdadeiro excesso de culpa na história ocidental. Entendo por “excesso de culpa” todo discurso que amplia as dimensões do pecado com relação ao perdão. É essa desproporção -e somente ela- que forneceu a matéria-prima de minha pesquisa.
O discurso religioso sobre o pecado no Ocidente cristão se desenvolveu, é verdade, a partir dos textos bíblicos. Mas ele funcionou mais ainda a partir de uma definição de Santo Agostinho cheia de implicações legalistas e jurídicas: “O pecado é toda ação, palavra ou cobiça contra a lei eterna”. O “pecador se desvia então de Deus” e “se converte à criatura”, o arrependimento sendo a conduta inversa. São Tomás de Aquino aprova e endossa o enunciado de Santo Agostinho, mas mostra que essa fórmula inclui também os erros por omissão, pois “é sempre para juntar dinheiro que o avarento… não paga suas dívidas”.
O pecado original constituía para Santo Agostinho e São Tomás o modelo mesmo do pecado, correspondendo exatamente à definição deles: era a desobediência voluntária de Adão e Eva ao preceito divino de não colher o fruto da árvore do bem e do mal. Não se pode compreender a história da cristandade ocidental de antigamente se não lhe dermos o devido lugar -que foi enorme- à doutrina (tradicional) do pecado original. Este era representado como um delito de dimensão verdadeiramente cósmica, cometido por dois seres que haviam recebido dádivas e privilégios que nós nem podemos imaginar. Em plena liberdade, eles desobedeceram à uma ordem do Criador, que lhes havia coberto de favores. Disso resultou para eles e seus descendentes o sofrimento, a morte, a concupiscência, a ignorância e a condenação ao inferno. Este último deveria ser o destino normal de toda a humanidade, se não tivesse havido a Redenção, graças à qual os eleitos escapam dos tormentos eternos. Teologia e pastoral decorrem desta representação do primeiro pecado e, sobretudo, a afirmação de Santo Agostinho de que a humanidade, pecadora desde Adão e Eva, constitui uma “massa de condenação eterna”, os eleitos sendo muito menos numerosos do que os condenados.
Agostinho escrevera a Optatus: “Aqueles os quais ele previa que não corresponderia à sua graça, Deus os criou tão numerosos, que a multidão deles é incomparavelmente maior do que o número dos filhos da promessa que ele predestinou à glória de seu reino”. Lê-se igualmente na “Cidade de Deus”: «Se todos permanecessem nas penas de uma justa condenação (o inferno), em nenhum apareceria a graça misericordiosa, e, por outro lado, se todos fossem transferidos das trevas para a luz (do paraíso), em nenhum apareceria a realidade da vingança. Essa última conserva muito mais homens do que a primeira para que, desta forma, seja mostrado o que era devido a todos”.
Durante muito tempo e até um período bastante recente a doutrina do pequeno número de eleitos fez quase total unanimidade junto aos teólogos católicos e protestantes (incluindo São Francisco de Sales e São Vicente de Paula). São Boaventura escrevera: “Todos pertencendo à massa de condenação eterna deviam ser condenados. Há então mais reprovados do que eleitos para que seja manifesto que a salvação vem de uma graça especial, enquanto que a condenação eterna resulta da justiça ordinária”.
O jesuíta São Roberto Bellarmin (fim do XVI-começo do XVII), retomando uma comparação de São Jerônimo, afirmava: “O número dos reprovados será semelhante à quantidade de azeitonas que caem por terra quando se balança a oliveira; e o pequeno número dos eleitos será comparado a algumas azeitonas que tendo escorregado das mãos dos que sacudiram a árvore, ficaram no cimo dos galhos e serão retiradas à parte”. No início do século XVIII, o pregador São Luis Grignion de Montfort assegurava quanto ao tema do pequeno número dos eleitos: “Ele é tão reduzido, tão reduzido, que, se nós o conhecêssemos, nós desfaleceríamos de dor. Ele é tão pequeno, que apenas, dentre dez mil, existe um, como foi revelado a vários santos”.
Dessa doutrina, verdadeiramente fundamental no passado, decorria uma imagem de Deus que não é mais a nossa: um Deus mais justiceiro do que misericordioso e mesmo sádico e “perverso”. No século XVIII, o autor de uma enciclopédia para pregadores, em um modelo de sermão, evoca Deus “muito ocupado em se vingar” dos condenados, fazendo escorrer sobre eles “fontes inesgotáveis de betume e enxofre”. Um convertido do século XVII, M. De Quériolet, conselheiro no Parlamento da Bretanha, e que se tornou padre, nos é assim descrito por um biógrafo da época: “Ele pensava e pensava novamente e sempre, no seu modo de entender, o que havia lido e compreendido pregar sobre o pequeno número dos eleitos… Ele refletia sem parar sobre o rigor dos julgamentos de Deus, sobre o horror da morte, sobre a fúria dos condenados e as penas inconcebíveis das almas que estão nas chamas do purgatório”.
Do Deus justiceiro passamos ao Deus “perverso”. Um místico alsaciano do século XVII, Tauler, evocando as tentações com as quais Deus se deleita ao vê-las arrasar as almas valorosas, dizia: “O homem é caçado como um animal que se quer oferecer ao imperador. Ele é caçado, esquartejado e mordido pelos cães, e assim é muito mais agradável para o imperador do que se o tivéssemos capturado moderadamente. Deus é o imperador que quer comer a caça capturada pelos caçadores”. Um biógrafo de santa Jeanne de Chantal, cuja obra é publicada em 1653, escreve que “Deus a tratou como trata as grandes almas de feitio celestial, das quais ele recompensa os longos sofrimentos por novos suplícios com o intuito de tornar a fidelidade delas mais purificada, seus serviços mais gloriosos e suas penas mais dignas de coroas”.
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