Autor: Ricardo Mariano
Apesar do título, o trabalho não tem qualquer pretensão profética. Pretende, tomando como referência o caso brasileiro, país que abriga cerca de metade dos evangélicos abaixo do Rio Grande, discutir a idéia, aventada a partir do início dos anos 90, de que a América Latina está se tornando protestante (Stoll, 1990), ou até de que está havendo uma “nova Reforma Protestante” nesse continente (Dixon & Pereira (1997: 49). Tendo em conta a estagnação numérica do protestantismo histórico, a perda de seu caráter modernizador e as profundas mudanças em curso no pentecostalismo, em especial a dessectarização e o abandono da rejeição ascética do mundo, questiono que tal “explosão protestante” (Martin, 1990) seja portadora de um conjunto de implicações modernizantes, similares às que teve a expansão protestante a partir do século XVI na Europa e, posteriormente, nos EUA, com potencial para transformar os valores, a cultura e a economia latino-americanos.
Procuro mostrar que o pentecostalismo, o responsável pela “explosão protestante”, à medida que passa a formar sincretismos, a se autonomizar em relação à influência das matrizes religiosas norte-americanas, a promover sucessivas acomodações sociais, a abandonar práticas ascéticas e sectárias, a penetrar em novos e inusitados espaços sociais e a assumir o status de uma grande minoria religiosa, cada vez menos tende a representar uma ruptura com a cultura ambiente. Tende, pelo contrário, a mostrar-se menos distintivo, mais aculturado, mais vulnerável à antropofagia brasileira e, portanto, cada vez menos capaz de modificar a cultura que o acolheu e na qual vem se acomodando.
Estagnação do protestantismo histórico
Entre 1980 e 1991, o conjunto dos evangélicos cresceu 67,3% no Brasil, atingindo 13.189.282 fiéis, 9% da população. O crescimento evangélico foi 2,8 vezes maior do que o da população brasileira. O principal responsável pela expansão evangélica no período foi o pentecostalismo, enquanto o protestantismo histórico, praticamente estagnado, mas não em todos os ramos denominacionais, puxou a taxa de crescimento do cristianismo reformado para baixo. Os pentecostais cresceram 111,7%, 12 vezes mais que os protestantes tradicionais, cujo crescimento não passou de meros 9,1%, cifra quase três vezes menor do que a da população (23,4%) e menor até mesmo que a de 15,1% obtida pela Igreja Católica. Com isso, os pentecostais, que em 1980 ainda eram minoria no campo evangélico, representando 49% do total dos crentes, onze anos depois tornaram-se majoritários, com 8.179.666 adeptos, perfazendo 65% dos cristãos evangélicos, enquanto os tradicionais caíram para 35%, com 4.388.310 membros.
Em 1991, os pentecostais só não lideravam na região Sul. Mas se no Censo de 1980 os históricos eram quase o dobro dos pentecostais no Sul, em 1991, a diferença de tamanho entre eles diminuiu muito, passando de 93,4% para apenas 7,8%. No restante da federação, o pentecostalismo tornou-se hegemônico no campo evangélico.
Crescendo menos que a população de quatro regiões, o protestantismo histórico teve reduzida sua participação na população de 15 Estados. No Sul, decresceu em números absolutos . No Sudeste, cresceu pífios 4,8%, no Centro-Oeste, apenas 17,2%. Na região Norte, cresceu 57,8%, cifra três vezes menor que a obtida pelos pentecostais. O Nordeste foi a única região em que os históricos cresceram acima da população: 34,1%.
Frente ao declínio do luteranismo e da aparente estagnação conversionista das igrejas metodista, congregacional, episcopal e presbiteriana, parece haver apenas duas igrejas de grande porte crescendo atualmente no campo protestante histórico: a Batista e a Adventista do 7º Dia. E há de se considerar que, embora o IBGE a tenha arrolado junto às protestantes tradicionais, a Igreja Adventista, por seu exclusivismo e sobretudo por suas doutrinas distintivas, entre elas a guarda do sábado, não é reconhecida como evangélica por muitos protestantes. Pelo contrário, muitas vezes é até combatida.
Mais dramático que a estagnação numérica do protestantismo histórico, que vem sendo notada há pelo menos três décadas, é a derrocada de seu decantado prestígio de agente modernizador na América Latina, reputação que perdurou até meados desse século. Tanto que, segundo Rubem César Fernandes (1977: 54), os pesquisadores Emílio Willems e Lalive D’Epinay, cujas pesquisas foram feitas na segunda metade dos anos 60, “aceitaram sem reservas a equação Catolicismo = tradição, propriedade senhorial, patriarcalismo, sacralização da sociedade / Protestantismo = modernidade, capitalismo, democracia, secularização.” Concepção semelhante à encerrada no livro do historiador francês Émile Léonard (1963) sobre o protestantismo brasileiro. Willems (1967) a segue, concebendo o protestantismo histórico como agente de mudança modernizante na transição da sociedade rural e patriarcal para a urbana e industrial. Destaca sua ética puritana, sua contribuição para a redefinição dos princípios, métodos e objetivos educacionais, sua difusão de noções de higiene, boa alimentação e de modernas técnicas agrícolas.
Tal perspectiva, que associa o protestantismo ao progresso cultural e econômico, estava em consonância com o fato de que esse grupo religioso, desde sua implantação no país, foi largamente propagandeado pelos missionários e visto por intelectuais brasileiros como agente modernizador, portador de uma educação inovadora e até como resposta para os tradicionais males do Brasil, parte dos quais atribuída à nefasta influência do catolicismo, tido então como símbolo e fonte do atraso social e econômico da região. O que nos interessa é a segunda parte da equação, a que se refere ao caráter modernizador do protestantismo. Não pretendo discutir se, no passado, ele foi ou não mais um fator de modernização no Brasil, mas mostrar que atualmente os pesquisadores, em especial os ex-protestantes e os de filiação evangélica, nada mais vêem de modernizador no protestantismo histórico. Pelo contrário, os poucos que ainda se aventuram a estudá-lo, costumam criticá-lo severamente por seu atual conservadorismo.
Observação de Rubem Alves, feita há 20 anos, revela uma das principais razões disso. Ele salienta que “os cientistas que se dedicaram a fazer uma análise crítica do Protestantismo são, todos eles (na medida em que conheço), ex-pastores, ex-seminaristas, ex-líderes leigos forçados a deixar suas funções. Não se encontra em seus trabalhos a atitude amorosa que marca, por exemplo, os relatos de E. Léonard. Os trabalhos, sem exceção, procuram as relações do Protestantismo com os processos de invasão cultural e ideológica que marcaram a expansão colonial norte-americana. O protestantismo é analisado como uma ideologia repressora, totalitária, capitalista, que se encontra em casa num Estado capitalista e totalitário” (1978: 134, 135). Trabalhos do próprio Rubem Alves são exemplares nesse sentido, verdadeiros “acertos de contas” com o passado religioso .
Apesar de passada a ditadura militar, a qual diversas lideranças denominacionais evangélicas apoiaram, e superada a influência do ideário marxista, a partir do qual vários autores sacaram armas para condenar a teologia, as práticas e orientações políticas das igrejas protestantes entre os anos 60 e 80, o protestantismo histórico permanece sendo duramente criticado nos trabalhos acadêmicos. Agora, porém, as críticas recaem sobre seu conservadorismo teológico e sua ética pietista. Vejamos, sumariamente, as críticas formuladas por alguns dos principais pesquisadores atuais do protestantismo brasileiro.
Antônio Gouvêa Mendonça (& Velasques, 1990: 142-144, 275) afirma que “a mentalidade típica do protestante de hoje” é fundamentalista, conservadora, dogmática, isolacionista, autoritária, anticultural, antipolítica, passiva. Assevera que a mensagem teológica protestante encontra-se em crise e à beira da indigência. A partir disso, conclui que o protestantismo tradicional não tem alternativa senão voltar à Reforma iniciada por Lutero. Prócoro Velasques (Mendonça & Velasques, 1990: 168, 205, 262) endossa as críticas de Mendonça ao conservadorismo teológico e à vocação fundamentalista do protestantismo brasileiro. Enfatiza que tais perspectivas teológicas a-históricas produzem alienação social e geram disciplinas de auto-repressão.
Paul Freston (1993: 46-53) afirma que, no contexto brasileiro, as denominações protestantes tornaram-se sectárias e adotaram a ética pietista, baseada na fuga ascética do mundo e geradora de conformismo. Diante do predomínio desta ética pietista e de seus efeitos deletérios no protestantismo histórico, o autor (1996: 272), num texto de teor mais militante, propõe que “a recuperação do que podemos chamar, lato sensu, de ‘ética protestante’ é vital neste momento da igreja evangélica brasileira.” Defende, para tanto, uma ética que seja transformadora da cultura, promova a diligência e a frugalidade, apresente visão dessacralizada do mundo natural e seja menos ritualista. Ética que, hoje, acredita “perdida ou seriamente atenuada”. Pois, constata ele: “Em vez da ética ativa de transformação social, temos, de um lado, a ética passiva e legalista do bom funcionário e, de outro, o triunfalismo da ‘teologia do domínio’, que sonha com um direito divino dos evangélicos ao poder temporal. Em vez da ética do trabalho diligente e consumo frugal, temos a ‘teologia da prosperidade’ e seu ideal de enriquecimento rápido por meios rituais. E, em vez da cosmovisão dessacralizada, que contribuiu para a ciência e para a abordagem ética dos problemas, temos a versão moderna da ‘guerra espiritual’, com sua volta à visão pagã do mundo”. A proposta, portanto, visa resgatar a ética do ascetismo intramundano calvinista.
As características do protestantismo histórico acima criticadas tendem a ser ainda mais acentuadas no campo pentecostal. Por isso, quando se sabe que é justamente o pentecostalismo que avança acelerado, conquistando terreno e visibilidade, chamando a atenção da imprensa e dos pesquisadores, torna-se inevitável avaliar como, no mínimo, imprecisa a afirmação de que a América Latina está se tornando “protestante”. Pois, de um lado, o velho protestantismo erudito, secularizado e ascético já não mais existe , de outro, as denominações protestantes históricas, salvo uma ou outra, ou estão estagnadas ou em franco processo de “pentecostalização”. Além de que o pentecostalismo não possui identidade alguma com a Reforma Protestante e dista muito até do protestantismo que aqui chegou.
Não se trata de alegar que a atribuição da designação protestante ao pentecostalismo é imprópria e ponto final. Não é esse o caso. Trata-se antes de distinguir o velho protestantismo do pentecostalismo, que vem crescendo “de vento em popa”. E, por outro lado, considerar que a expansão do movimento pentecostal possui, por seu desprivilegiado status social, tanto aqui como no seu país de origem, pouquíssimo apelo comparado ao forte impacto da idéia de que a América Latina possa estar se tornando protestante. Pois, falar em protestantismo e Reforma Protestante, de imediato, faz saltar à mente, e não só à nossa, a equação citada por Rubem César que os associa à modernidade, à ciência, à secularização, ao capitalismo, à democracia, ao progresso, a virtudes éticas. O problema é que há quem, ao pesquisar os grupos evangélicos no continente sul-americano, embora praticamente só tenha diante de si o pentecostalismo, associe este diretamente ao protestantismo da Reforma (cuja ética parece não ter aportado na América Latina), para fazer prognósticos acerca de suas potencialidades redentoras do nosso subdesenvolvimento.
Visões do pentecostalismo
O vertiginoso crescimento pentecostal em múltiplas frentes denominacionais representa, sem dúvida, considerável mudança no cenário religioso brasileiro. Além de ampliar e diversificar as religiões de matriz cristã em solo nacional, vem influenciando, desde os anos 60, a formação de cismas denominacionais no protestantismo histórico, “pentecostalizando” parte dele e, mais recentemente, concorrendo com a versão pentecostal do catolicismo, a Renovação Carismática Católica. A expansão do pluralismo religioso, frise-se, significa igualmente a dessacralização da cultura através do desenraizamento dos brasileiros da “religião tradicional e da tradição religiosa”, desenraizamento que os abre para a apostasia, para a quebra da lealdade religiosa, para a livre escolha religiosa (Pierucci, 1997b: 258) e para a desfiliação religiosa. Isto é, a pluralização do espectro cristão, ao expandir o mercado religioso, contexto no qual as religiões não podem contar a priori com a submissão nem com a lealdade dos fiéis, implica secularização (Berger, 1985; Pierucci, 1997a), racionalização das instituições religiosas e declínio do compromisso religioso.
Embora o pentecostalismo seja o grupo religioso que mais cresce na América Latina e constitua a maior minoria religiosa da região, há vários outros sendo implantados e em processo de difusão e crescimento: religiões orientais, kardecismo, cultos e práticas esotéricos, afro-brasileiros, Testemunhas de Jeová, Mórmons etc. Em sentido oposto a esse movimento de incremento do pluralismo religioso, cresce aceleradamente também o grupo dos sem religião . Além de enfrentar a concorrência da religião dominante e tradicional e de toda a diversidade religiosa no já vigoroso mercado religioso local, o pentecostalismo tem de enfrentar a resistência da maioria da população brasileira a possuir e honrar compromissos religiosos duradouros junto a uma instituição religiosa, tradicional ou não . Quer dizer, tem de remar contra a crescente maré de secularização da sociedade, do comportamento e das consciências individuais. De modo que os limites para seu crescimento ultrapassam, e muito, a fronteira intra-religiosa. O que o obriga a competir numa luta inglória e acirrada pelo tempo, dinheiro, lealdade, participação e trabalho voluntário dos indivíduos com a esfera do lazer e do sexo, a indústria cultural, as associações civis não-religiosas, a militância sindical e em ONGs, a carreira profissional, os discursos científico e anticlerical, as ideologias políticas, as filosofias de vida alternativas, os sistemas de valores seculares, o consumismo, o hedonismo, o ceticismo, o ateísmo, além de todo o desinteresse e indiferença religiosos.
Para além destes obstáculos à sua expansão numérica, ressalte-se que a América Latina não está se tornando “protestante” também em razão de que o pentecostalismo, como dissemos, não pode ser tomado sem mais como sinônimo de protestantismo, principalmente do protestantismo da Reforma. Pois, conquanto ambos sejam evangélicos, o primeiro herdeiro tardio do último, o protestantismo é um termo historicamente carregado de sentidos vinculados à modernidade que pouco têm a ver com o movimento pentecostal, em geral anti-intelectualista, taumatúrgico, emocionalista, contrário à erudição teológica. E este não só apresenta inúmeras distinções em relação ao protestantismo como, salientam pesquisadores de peso (Willems, 1967; D’Epinay, 1970; Rolim, 1985; Bastian, 1994), possui diversos traços de continuidade cultural com o catolicismo popular latino-americano. Continuidade, aliás, considerada uma das razões de seu sucesso evangelístico.
Para Willems (1967: 36, 133-136, 217, 218, 250, 256), o pentecostalismo desempenha função de adaptação dos estratos sociais desfavorecidos, desenraizados dos tradicionais modos de vida rural, às mudanças socioculturais associadas à industrialização, urbanização e migração, fornecendo-lhes novas comunidades, disciplina, valores adequados à vida nos centros urbanos, segurança psicológica e econômica. Contudo, ele não vê o movimento pentecostal como agente efetivo de modernização social. Enfatiza, ao contrário, que os pentecostais têm orgulho de serem incultos e despreparados para qualquer tarefa intelectual, não cultivam ideais de avanço econômico e profissional, são indiferentes ou antagônicos aos progressos educacionais e contentam-se meramente com a capacidade de ler a Bíblia. Willems defende a idéia de que as crenças do catolicismo popular em experiências místicas, possessões, milagres, espíritos do mal, feiticeiras e demônios facilitaram a expansão do pentecostalismo, que, tal como o espiritismo e a umbanda, contribui para a preservação cultural de tais crenças.
Léonard (1988: 8, 106) refere-se ao pentecostalismo como um protestantismo do Espírito em que a “Bíblia tem apenas um lugar diminuído, ao mesmo tempo em que não é mais livresco, mas radiofônico e em que os hábitos gerais levam menos a meditar sobre uma revelação escrita que ‘a dar uma telefonada para Deus’ e a esperar uma resposta que não esteja mais ligada a uma mediação fora de moda, do papel impresso.” Quanto às perspectivas educacional e cultural da membresia da Congregação Cristã no Brasil, assevera: “O fato é que os ‘glórias’ julgam estudo e cultura inúteis à vida espiritual”.
Certas afirmações de Willems e Léonard merecem reparo por conterem pouca validade atualmente, em especial às referentes aos anseios educacionais, culturais, profissionais e financeiros dos pentecostais, uma vez que hoje, em razão da democratização do acesso ao ensino básico e da própria disseminação de seminários teológicos nos meios pentecostais a partir dos anos 70, o velho ditado pentecostal de que “a letra mata o Espírito” encontra bem menor aceitação nesse meio religioso, sobretudo entre os jovens. Acrescente-se a isso o surgimento da Teologia da Prosperidade, que, em vez de renegar o interesse material associando-o ao interesse impróprio pelas “coisas do mundo”, só fez justificá-lo e incentivá-lo, a partir de reinterpretações bíblicas que minimizam as velhas ênfases apocalípticas e prometem aos cristãos glorioso destino nesta vida e neste mundo.
D’Epinay (1970: 205-246) admite que o pentecostalismo livra o converso de vícios, sobretudo do alcoolismo, restaura a família e ensina uma forma de ascetismo. Afirma, porém, que o protestantismo não introduz uma ética do trabalho, nem proporciona êxito sócio-econômico a seus adeptos superior ao conjunto da população. Nega que o ascetismo pentecostal propicie poupança e valorização da atividade econômica. Recusa a extrapolação da tese weberiana (sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo) para a América Latina. Rejeita a idéia de que a mobilidade econômica individual possa aumentar a riqueza ou transformar o desenvolvimento nacional. Acusa o pentecostalismo de omissão social e de alienação. Destaca sua aculturação à religiosidade popular e adaptação à mentalidade dos pobres. E assegura (1977: 10) que o pentecostalismo preserva o tradicional “exercício de poder autocrático” do sistema oligárquico latino-americano, criando a figura do “pastor-patrão”.
Jean-Pierre Bastian (1994: 123-130), por sua vez, afirma que “os protestantismos do século XIX surgiram da cultura política do liberalismo radical, democrático e promotor de uma pedagogia da vontade individual, os protestantismos populares atuais [pentecostalismo] provêm, pelo contrário, da cultura religiosa do catolicismo popular, corporativista e autoritário. Enquanto os primeiros eram uma religião da escrita, da educação cívica e racional; os segundos são uma religião da lábia, analfabeta e efervescente. Enquanto alguns eram portadores das práticas de inculcar os valores democráticos liberais, os outros eram veículos dos modelos de caciquismo e caudilhismo de controle do religioso e do social.” Para Bastian, “hoje há uma tendência mais de continuidade que de ruptura com o universo religioso e cultural das sociedades onde prosperam”. Continuidade que muitas vezes desemboca em sincretismo e no reforço de práticas e concepções corporativistas. Resulta disso que os “protestantismos latino-americanos não são mais portadores de uma cultura religiosa e política democrática”. Pelo contrário, tal cultura teria se tornado autoritária e vertical. A ponto de estar ocorrendo a “episcopalização” até de quadros eclesiásticos de denominações tradicionalmente congregacionais, como a Batista.
Fenômeno que nos remete ao aparecimento cada vez mais freqüente de igrejas dotadas de estrutura empresarial e de governos eclesiásticos centralizados, comandados por bispos, apóstolos e profetas. Tal centralização, nada democrática, não é recente. O próprio Willems (1967: 119) já se referia a lideranças ministeriais da Assembléia de Deus, cujos cargos pastorais concentram grande poder, como “bispos e pequenos papas”. Concentração e verticalização de poder verificada igualmente na Brasil Para Cristo, na Deus é Amor, na Casa da Bênção, na Nova Vida, na Igreja Universal, na Renascer em Cristo etc. Como diz Bastian (1994: 126), “a maior parte das igrejas pentecostais tem dirigentes que são chefes, proprietários, caciques e caudilhos de um movimento religioso criado por eles mesmos e transmitido de pai para filho de acordo com o modelo patrimonial e/ou por nepotismo de reprodução”. E até a Congregação Cristã, vale lembrar, embora seu governo eclesiástico aparente ser pouco centralizador e personalista, foi comandada por integrantes da família Spina durante décadas.
Tradicionalmente, como se vê, os pesquisadores observam pouca inovação social no pentecostalismo e o associam a aspectos negativos: alienação, conservadorismo, anti-intelectualismo, emocionalismo, sectarismo, caciquismo, caudilhismo. Eles, porém, não estão só. Dois destacados pastores, conferencistas e escritores pentecostais brasileiros, cada qual a seu modo e a partir de seus valores e experiências religiosos, é bom que se frise, também não deixam por menos. Inconformados, rigorosos e exigentes, “descem o pau” nos rumos tomados pela religião que abraçaram. Ricardo Gondin, líder da Assembléia de Deus Betesda, lista dez “patologias” do movimento pentecostal. Critica-o por: possuir “cosmologia simplista”, adotar “inovações cúlticas e teológicas” acriticamente, ser “vulnerável ao sincretismo”, evangelizar com “obsessão mercadológica” e a partir de uma “didática consumista”, pregar um “evangelho muito na base do mercantilismo”, “tender a ser exageradamente legalista”, favorecer o “culto à personalidade” e o “triunfalismo” (1996: 81-83). Já para Paulo Romeiro, diretor da Agência de Informações Religiosas (Agir) e pastor da Igreja Evangélica de Vila Mariana, a “igreja evangélica brasileira passa por duas crises muito sérias, a da ética e da doutrina.” Situação que decorre, segundo ele, do fato de que “uma das grandes falhas do pentecostalismo brasileiro foi enfatizar ao longo das décadas mais o carisma do que o caráter.” Resultado: “há uma epidemia de pastores que mentem, compram diplomas, fazem falcatruas, falsificam documentos, dão cheques sem fundo.”
Não obstante as críticas feitas pelos pesquisadores e pastores ao pentecostalismo, hoje, constitui quase uma desonestidade intelectual não perceber que a conversão pentecostal pode ajudar os pobres a enfrentarem a pobreza (Mariz, 1994) e a organizarem a vida (Pierucci & Prandi, 1996: 219). Não há como negar que o pentecostalismo, tão bem-sucedido entre os pobres, pode servir como estratégia de sobrevivência (Stoll, 1990: 331) e espaço terapêutico. Da mesma forma, nota-se que ele pode fortalecer os laços familiares (D’Epinay, 1970), auxiliar na libertação do alcoolismo (Mariz, 1994a), de drogas ilegais e na renúncia de condutas anti-sociais, melhorar a auto-estima dos conversos, estimular o apoio mútuo, dar-lhes esperança no futuro e até uma nova identidade subjetiva. Tais funções e papéis religiosos, aliás, são desempenhados, em maior ou menor grau, por várias agências de bens de salvação, sejam elas cristãs ou não. Crescente número de pesquisadores excede tais observações de natureza mais consensual, ingressando num campo de reflexão bem mais polêmico, ao assegurar que este movimento religioso reforma o machismo (Brusco in: Garrard-Burnett & Stoll, 1993), domestica os cônjuges masculinos, proibindo e limitando suas condutas nocivas aos interesses familiares (Tarducci, 1993), apesar de reforçar as normas patriarcais, disciplina o comportamento do marido, favorecendo a esposa e sua auto-estima (Burdick, 1993), redefine as relações de gênero, solapando o machismo ibero-americano e incentivando a autonomia feminina (Mariz & Machado, 1996). E há até mesmo quem defenda, como já foi dito, a tese de que as conseqüências moral e social da conversão pentecostal na América Latina são similares às conseqüências descritas por Weber da “ética protestante” e correlacione pentecostalismo com mobilidade social (Martin, 1990). Tese e correlação as quais me oponho (Mariano, 1996).
Os eventuais benefícios que o pentecostalismo pode propiciar aos fiéis, porém, não possuem potencial para transformar as culturas, as economias e as estruturas sociais e políticas dos países latino-americanos. Até porque este movimento religioso, especialmente a vertente neopentecostal, mostra-se cada vez mais domesticado e aculturado. Pois, para conquistar as massas, as igrejas neopentecostais, cujos projetos têm se tornado cada vez mais ambiciosos, optaram por funcionar e se organizar como verdadeiras empresas, por invadir novos e inusitados espaços sociais, por adaptar sua mensagem às demandas religiosas e mágicas dos estratos populares, por se dessectarizar, por romper com o ascetismo contracultural e se acomodar progressivamente à sociedade e à cultura de consumo. Mudanças consideráveis, todas de caráter secularizante, cujos efeitos mais visíveis têm consistido em torná-las, sem que se dêem conta disso, cada vez menos distintas, cada vez menos um retrato negativo dos símbolos de nossa brasilidade. Tais transformações, como se verá, são mais evidentes no segmento neopentecostal. (continua…)
Faça um comentário