Autor: Maria Clara Lucchetti Bingemer
Há vários paradigmas e modelos de missão ao longo da história. O momento histórico e a diversidade geográfica, de um lado, e a teologia subjacente, do outro, são variáveis fundamentais para entendermos as convergências ou as continuidades e, também, as diversidades e as descontinuidades. Há algumas constantes que perpassam a espiritualidade missionária, como podem ser vistas a partir da vida de muitos missionários e missionárias. Uma característica da espiritualidade missionária, e certamente ocupando o lugar central, é a paixão pelo Cristo vivo e pelo Reino.
A pessoa de Cristo inspirou e continua motivando a opção profunda dos missionários e das missionárias. Não é possível que alguém trilhe este caminho sem ter sido arrebatado pelo Cristo Pascal. Somente quem tem um vínculo e uma intimidade excepcional com o Mestre pode percorrer o caminho da missão sem retorno. A busca e a construção desta intimidade podem ser diferenciadas. Os caminhos da proximidade com o Mestre podem seguir diferentes métodos, mas ninguém pode se aventurar no empreendimento da missão sem ter sido arrebatado pelo amor do Senhor. Cada vocação, e especialmente a missionária, pressupõe um chamado íntimo e radical por parte do Mestre. Este chamado decorre de uma experiência e de um encontro transformador da vida. É este o ponto de partida para o caminho da missão e que explica a adesão radical do discípulo. Em todas as figuras e as testemunhas que vemos ao longo da história, a paixão pelo Cristo missionário é o eixo motivador da própria espiritualidade.
É um Cristo, no entanto que está situado e caminha junto com os pobres deste mundo. Os deserdados, os danados da terra, os sem esperança, os feridos no caminho revelam o rosto sofrido de Cristo. Qualquer experiência de Jesus que não passa através da solidariedade com os abandonados, faz da experiência religiosa uma aventura romântica e intimista, mas não atinge o núcleo da experiência religiosa cristã. Dar a vida, como Jesus, é preciso, fazendo-se companheiro dos despossuídos. A ótica do Reino e a paixão pelo sonho de Jesus fazem da espiritualidade missionária um caminho sem retorno. Historicamente, a aventura missionária nem sempre teve uma perspectiva reino-cêntrica. Hoje, após o Concílio Vaticano II, ficou clara a origem trinitária da missão, como fonte, método e fim, e, também, o serviço aos valores do Reino. Na história da missão, no entanto, vários modelos focalizaram diferentemente o objetivo da missão. É conhecido o modelo da “salvação das almas”, a qualquer custo. Várias testemunhas, inseridas nesta teologia da missão, sonhavam “salvar uma alma e depois morrer”. Pouco atentos ao contexto histórico que era o seu, transplantavam um modelo de evangelização e fundamentavam-se na exclusividade do batismo, como horizonte primeiro. Muitas vezes, ingenuamente, os missionários andavam de mãos dadas com os vários processos de colonização.
Mais tarde, a perspectiva da implantação da Igreja (plantatio Ecclesiae) absorveu toda a ação missionária. Formaram-se, assim, muitas comunidade cristãs espalhadas no mundo todo. No fundo, este modelo continuava sendo muito eclesiocêntrico. A perspectiva do Reino, com toda sua aproximação metodológica, é algo de muito recente e está re-focalizando o caminho da missão. O profetismo também nunca esteve ausente do caminho da missão, sendo mesmo seu núcleo central . Há, também, o sentido do envio e da saída, sobretudo física, da própria terra de origem. A missão é um longo caminho que não tem mais retorno. O sentido do “sair da própria terra” significa a radicalidade de pertencer somente a Deus e ao seu projeto. Quem conduz a missão é Deus . Não há outro projeto a ser implementado se não o Reino de Deus. É ele que toma conta completamente da vida dos missionários e das missionárias para conduzi-los aonde ele quer e segundo a maneira que ele quer.
Esta radicalidade é revelada através do ato de entrega e do fato de não pertencer mais a si mesmo. Concretamente, traduz-se no processo de deixar tudo, a pátria, os amigos, os pais, as pessoas mais queridas e os lugares mais familiares para ser conduzidos pelo Mestre. Em época de “globalização, quando parece que as distâncias se encurtam e as divisões territoriais não são tão rígidas como aos tempos do surgimento dos Estados Nacionais, há a necessidade de manter vivo o sentido do “além fronteiras”, também geográficas, para significar a entrega total ao projeto do mestre. A exemplo de Abraão, o pai da fé de algumas grandes religiões, continua explicito o sentido da saída, sem saber aonde se vai e sem conhecer tudo sobre o que fazer.
Confia-se somente na promessa de Deus. O mesmo Jesus, movimentando-se ao interior da Palestina e sem ter saído fisicamente de seu contexto cultural, indica a categoria do deslocamento e o abandono nas mãos de Deus como processo radical do seguimento. O sentido do caminho de Jesus, como enviado e primeiro grande missionário, começa quando deixou o lugar que lhe pertencia, como Deus, e se encarnou no meio de nós, pondo sua tenda no meio dos seres humanos. Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte.” (Fil. 2, 6-8).
A primeira grande epopéia missionária começou com a Igreja primitiva. Em poucos anos houve cristãos que se espalharam para todo o mundo conhecido, testemunhando a universalidade da mensagem de Jesus. Os Atos dos Apóstolos representam a atividade e a consciência missionária das primeiras comunidades cristãs.Sem saída, portanto, não há missão. Quem retiver a própria vida vai perde-la, mas que a oferecer, irá ganha-la para sempre.
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