Autor: Julián Marías
(Conferência proferida em Madrid, em 22-4-98, como parte do curso, no qual o conhecido filósofo analisou a perspectiva cristã, isto é, o modo como, independentemente da fé, o cristianismo informou a visão de mundo característica do Ocidente. Trad. e edição: L. Jean Lauand)
Hoje vamos falar de uma questão, ou melhor, de duas questões interligadas importantes: liberdade e responsabilidade.
Há, no caso, um fato interessante: no cristianismo, a palavra liberdade aparece muitas vezes. E, em muitas ocasiões, aparece unida a outra, que é mais freqüente ainda: a palavra verdade. Aletheia, verdade, no texto grego do Novo Testamento, aparece muitas vezes ligada a eleutheria ou a seus derivados. Há, portanto, uma conexão sumamente importante: recordemos aquele texto capital do Evangelho de São João – “a verdade vos fará livres” – em que “verdade” e “liberdade” aparecem juntas de um modo central.
Penso que o problema da liberdade é absolutamente decisivo: não somente para a filosofia cristã, mas para o cristianismo e em geral. Dentro do cristianismo, é uma clave para muitas questões que, de outro modo, não se tornam claras. Não se esqueçam de que – neste curso – estamos tentando ver até que ponto a chave para a interpretação do cristianismo é a interpretação pessoal: o homem é pessoa!. Esta é a grande descoberta, para a qual tenho empregado uma fórmula: “uma descoberta que não tem sido amplamente pensada, mas que tem sido vivida”. Pois é certo que no pensamento cristão, nem sempre tem aparecido a idéia de pessoa e nem sempre tem recebido o devido relevo, mas o cristão, sim, se entende, plenamente, como pessoa. E é justamente na medida em que se vive como pessoa que se pode entender a visão cristã. Não esqueçamos que o conceito de Trindade, que é essencial no cristianismo, consiste precisamente em uma interpretação pessoal de Deus, tão pessoal que é tri-pessoal; isto é: há relações pessoais até dentro da divindade, há uma vida divina que tem uma característica intrinsecamente pessoal. E isto é de capital importância.
Acontece que o peso de uma tradição intelectual não-cristã – tradição, em boa medida, grega – levou a conceitos que têm mais que ver com natureza, como o próprio conceito de natureza e outros como: substância, essência, acidente…
Há também um outro fator que costuma ser bastante esquecido: o aristotelismo influi, não somente no pensamento medieval cristão, mas também no pensamento judeu e árabe que, por sua vez, influem também no pensamento cristão. A escolástica cristã, por exemplo, foi muito condicionada por influências que procedem de Averroes, de Maimônides… e que são, afinal, elaborações judias ou islâmicas de Aristóteles, principalmente de Aristóteles. E isto faz com que, em alguma medida, esse caráter radical profundamente pessoal que pertence à visão cristã (e pertence também à análise puramente intelectual da realidade humana) fique diluído ou esquecido. Isto é muito importante e deve ser sempre lembrado.
Se vemos a vida humana tal como ela aparece, tal como foi – e continua sendo – explorada em nossa época, que é quando realmente se estabelece uma perspectiva propriamente pessoal (época na qual se transcendem as idéias naturais procedentes do estudo das coisas e se centra a visão na peculiaridade do que é humano), vê-se que o homem não é coisa; sim, ele tem coisas, faz sua vida com coisas, mas em nenhum sentido ele é coisa… Tem, em certo modo – na medida em que é corpóreo, em que é alguém corporal – uma dimensão natural, animal; isto é fundamental, também. Mas, ele não é nenhuma coisa; ele é perspectiva, é projeto, é missão: todos estes conceitos estão precisamente no próprio seio da concepção cristã da Trindade.
Tudo isto é de capital importância e, nesse quadro, aparece no primeiro plano: a liberdade. Os senhores considerem que a vida humana – não a vida biológica, mas a vida biográfica -, a vida propriamente humana nos é dada (o cristianismo, claro, conta com isto: considera o homem uma criatura), nossa realidade é dada: é um dom. Não somos autores de nossas vidas, mas esta vida nos é dada não-feita. Ela não está feita; nós é que a temos que fazer: é um empreendimento, é uma tarefa e nem sequer pode ser entendida como um mero desenvolvimento. Certamente, a vida animal tem todos os seus mecanismos que a regulam; o animal tem um sistema de instintos que é complexo e perfeito, que dirige sua conduta. Já o homem, não. O homem tem poucos instintos, pouco enérgicos, mas, em contrapartida tem um horizonte imaginativo, um horizonte mental, isto é, o homem tem que imaginar sua vida, tem que descobrir o horizonte das posibilidades, de suas circunstâncias ou de suas dificuldades; tem que projetar quem ele vai ser. Tenho insistido muito – ao longo de toda minha obra e também neste curso – na diferença fundamental entre o que o homem é e quem é.
Já consideramos no outro dia o que significa o nascimento de uma pessoa, é evidente que o que a criança que nasce é, procede de seus pais, sem dúvida alguma (de seus pais e de seus avós, de seus antepassados e dos elementos que integram o cosmos: oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, cálcio, fósforo, carbono e todos os elementos que participam da constitução do organismo). O que a criança que nasce é, procede disso, mas quem é, não: não procede de nada, é absolutamente inderivável…
Assim, é evidente o fato da criação, esse fato fundamental. E quando se fala de criação, a teologia fala do Criador. Mas o Criador – sinto muito! – não está disponível, não o tenho aí, não o conheço diretamente, não está presente, é preciso procurá-lo; é um problema… O que, sim, está presente é o fato da criação, da criatura. E não é por acaso que em espanhol ou em português se designe um menino – recém-nascido ou muito pequeno – por “creatura”, uma “criança”.
O Criador não está “ao alcance da mão”, será necessário procurá-lo; podemos inferir do fato da criação que há um Criador, mas que, insisto, não está disponível. No entanto, o fato da criação, como tal, é evidente, porque não deriva de nada: o menino que nasce é absolutamente irredutível ao pai e à mãe, aos antepassados, aos elementos do cosmos e, então, naturalmente, esta realidade nova, estranha, que é o quem (contraposto ao que) encontra-se tendo que viver num mundo, no qual está e não tem, evidentemente, um sistema de instintos que regule sua conduta e tem que escolher, em cada momento, o que pode fazer. Tem que decidir, tem que optar entre possibilidades – muitas possibilidades – que tem diante de si e, portanto, é livre.
Ortega, que foi quem mais penetrou nessa descoberta da realidade da vida humana, dizia: o homem é forçosamente livre; “lo es por fuerza”. Acontece que o homem pode renunciar à sua liberdade. Pode renunciar à sua liberdade em um ato livre. Se eu renuncio à minha liberdade, se, por exemplo, eu digo: “agora vou fazer o que os senhores me digam”, estou decidindo livremente e, no caso, executo também um ato de liberdade, que é renunciar a ela…; por isso, a liberdade é irrenunciável.
No entanto, há muitos graus, claro, há muitos graus de liberdade. O homem pode ter pouca liberdade porque está oprimido pelas circunstâncias. É evidente que o homem pode ter uma circunstância enormemente limitada: pode não ter recursos; pode ter pobreza; pode viver numa situação na qual faltem as coisas mais importantes, pode estar oprimido por outras pessoas, pode viver numa situação política que não lhe permita a liberdade e na qual não possa exercer sua liberdade em muitos aspectos, mas é livre. É livre, sim; a todo momento, ainda que não possa realizar certos atos livres: uma coisa é ter liberdade e outra é ser livre. Pode-se ter a liberdade em redutos e sempre há um reduto. Sempre há a liberdade que uma pessoa pode tomar.
Assim, a liberdade é algo absolutamente constitutivo da vida humana e isso tem uma conseqüência religiosa evidente: que o homem é, ao mesmo tempo, responsável. Porque sou livre, sou responsável. Lembrem-se de que Kant, na Crítica da Razão Pura, teórica, tinha apresentado as dificuldades de provar teoricamente a existência de Deus ou da liberdade, e justamente pela responsabilidade os encontrava como postulados da razão prática: o homem é responsável e, portanto, tem que ser livre. Isto é, a liberdade aparecia como um postulado da razão prática porque há um fato, o fato da responsabilidade: o homem se sente responsável, o homem se sente sujeito a deveres e, portanto, responsável e, por conseguinte, tem que ser livre. Se não fosse livre, não teria sentido ser responsável.
Do ponto de vista cristão, o homem é livre, é dono de seu destino. Para já, é responsável diante de si mesmo e é responsável também diante de Deus. Deus lhe deu os recursos para viver, mas ele tem que decidir sua vida, tem que imaginá-la, tem que projetá-la. Por isso, o conceito de missão é um conceito puramente cristão. Lembro-me de um curso muito importante de Ortega a que assisti em 1933: ele reconhecia precisamente o caráter cristão da noção de missão: ter missão é uma invenção, uma descoberta cristã. O homem tem uma missão, tem algo a fazer e por isso pode orientar sua vida, pode direcioná-la em função da missão. E aí, precisamente, estabelece-se a conexão com a noção de verdade: “a verdade vos fará livres”, isto é, precisamente a verdade, isto é, o reconhecimento da realidade, a aceitação da realidade, o enfrentamento da realidade tal como ela é em seus conteúdos, isto justamente é o que nos põe em liberdade.
É um conceito absolutamente ligado ao outro. E há algo curioso, que eu não sei – e nem tenho meios fáceis para verificar – mas gostaria de saber: a freqüência com que aparecem, por exemplo no Velho Testamento, os dois conceitos: liberdade e verdade. Há o fato de que a idéia de liberdade é diferente no hebraico e, portanto, no Antigo Testamento, mas, seja como for, tenho uma intuição – a partir da leitura normal, habitual – de que a freqüência é muito menor. Já no Novo Testamento, é impressionante a freqüência de aletheia e eleutheria e seus derivados e das passagens em que aparecem conectadas.
Isto nos leva a uma consideração: na maneira habitual de viver o cristianismo houve uma espécie de abandono desse conceito fundamental de liberdade: em boa medida porque na prática do cristianismo e na tradição cristã enfatizou-se, insistiu-se enormemente na palavra “obediência”. A palavra obediência é evidentemente valiosa e importante, mas, claro, a obediência, para ser obediência, deve ser livre.
A obediência livre, não é o mesmo que o conceito de islam: a palavra islam significa submissão. A obediência cristã não é submissão, é aceitação livre. Não esqueçamos, por exemplo, que no momento crucial, no próprio momento em que se vai iniciar o cristianismo, na anunciação, o arcanjo Gabriel aparece diante de Maria e lhe anuncia que vai ter um filho e que esse filho vai ser obra do Espírito Santo. E ela aceita livremente. Há uma livre aceitação de Maria, que é o que faz possível precisamente a Encarnação. Não nos esqueçamos, por exemplo, das palavras de Cristo ante sua Paixão, quando pede ao Pai que se for possível afaste dele o cálice, mas ajunta: “Não se faça a minha vontade, mas a tua”. Isto é, a vontade humana aceita a vontade divina, aceita a dor e o tremendo sofrimento…
São absolutamente inseparáveis as noções de liberdade cristã e de responsabilidade. Acontece que a liberdade tem tido muitos adversários na história, há um verdadeiro temor à liberdade.
Há uma série de conceitos que vêm a ser a negação da liberdade; podemos chamá-los, em conjunto, determinismo. Mas há muitos determinismos: dentro do cristianismo, pensemos em tudo o que se discutiu sobre a predestinação, uma forma de determinismo teológico.
Precisamente ante a situação dramática da vida humana – que, evidentemente, desembocará na salvação ou na condenação -, a idéia de predestinação adquire um papel decisivo: muito mais no protestantismo, mas também no catolicismo: os teólogos dos séculos XVI e XVII imaginaram muitas teorias – algumas muito agudas – para conciliar a onipotência de Deus com a liberdade humana (os dominicanos, tendendo mais a enfatizar a onipotência à custa da liberdade; os jesuítas, mantendo mais vivamente a liberdade – seus adversários pensavam que com isto se prejudicava a onipotência -; a doutrina da scientia media etc.)
O fato é que houve uma tendência a afirmar a predestinação, que no protestantismo tem muito mais força e, especialmente no calvinismo, há uma restrição à liberdade. Especialmente no calvinismo, mas não se esqueçam de que Lutero era um adversário da liberdade e, precisamente por isso, Lutero rompe com Erasmo. Erasmo tinha interesse numa reforma da Igreja e, em princípio, não via com maus olhos o movimento reformista, mas o De servo arbitrio de Lutero lhe pareceu absolutamente intolerável e o ponto de ruptura entre ambos foi justamente o problema da liberdade.
Posteriormente houve diversas de formas – algumas atenuadas – de determinismo. Aparece, em forma bastante complexa, em Spinosa, depois há uma série de determinismos sociais, econômicos etc… Tenho pensado muitas vezes que o liberalismo e a democracia – que são coisas diferentes, que podem e devem enlaçar-se, mas não são idênticos! – não tiveram muita sorte intelectual, porque os fundamentos de ambos – da democracia e do liberalismo – foram estabelecidos muito principalmente por pensadores ingleses, como Locke, que eram pessoas que acreditavam na liberdade política, mas não acreditavam muito na liberdade pessoal… Se o liberalismo e a democracia tivessem recebido seu fundamento intelectual num Leibnitz, as coisas teriam sido bem diferentes, porque aí se trata de liberdade pessoal, Leibnitz acreditava nela profundamente…
Pensemos nas derivações, de enorme influência social, de uma filosofia que não me parece especialmente brilhante, a do empirismo, que, depois, vem sob a forma do utilitarismo de Stuart Mill e outros… Como filosofia, é bem pouco, é relativamente medíocre e, no entanto, sua influência social – sobretudo nos Estados Unidos – tem sido imensa (dela decorrem as concepções dominantes no mundo: o famoso bem-estar, o “welfare state” etc.). São concepções da realidade humana que não partem do núcleo propriamente pessoal e reduzem o homem a um organismo ou identificam felicidade com prazer e infelicidade com dor (que, na verdade, são coisas muito diferentes) e têm uma concepção quantitativa do humano e não da realidade única de cada pessoa, de cada indivíduo…
Há outras formas de determinismo, como o determinismo biológico. Agora, precisamente, o homem é considerado como um organismo e, portanto, introduzido no reino animal (e o homem, claro, é um animal, animal racional, mas digo que é muito mais do que isso: é uma criatura amorosa, o que é muito diferente: rigorosamente pessoal, uma animalidade transformada precisamente por sua condição humana). Hoje em dia fala-se muito e lança-se mão da genética – que, sem dúvida, é um fator – que modifica o que se é, não quem se é.
As pessoas andam, hoje, preocupadas e assustadas (e com fundamento…) com isto que se chama clonagem. É evidente que se poderia – em princípio; não sei se é possível tecnicamente, mas é pensável – reproduzir um organismo humano idêntico. Há o caso dos gêmeos, de gêmeos univitelinos, que são praticamente idênticos, quanto aos organismos, mas as pessoas são radicalmente únicas, absolutamente diferentes, cada um é cada um. Agora se o homem é reduzido a seu organismo, ao que é e se se esquece de quem é, então perde-se a liberdade.
Há outros determinismos que têm tido muito sucesso em nossa época e que são os determinismos econômico e social. Certamente, são ingredientes da vida humana na medida em que afetam a circunstância e não o eu, o quem que sou eu. Um eu que se defronta com outros eus, para quem são um “tu” e com um Deus a quem chama de Tu também, Pai… Quer dizer, trata-se de uma relação de essencial liberdade, liberdade do homem diante de Deus; não é que Deus nos permita ser livres; Ele nos força, nos obriga a ser livres, nos põe em liberdade – esta fórmula me parece adequada – e liberdade dos homens uns diante dos outros, uns em relação aos outros, justamente enquanto são pessoas.
O que acontece é que essa liberdade pode ser abandonada; pode-se renunciar a ela, livremente… só que, naturalmente, neste caso, há uma abdicação da condição propriamente humana. Os senhores pensem, por exemplo, no fato do fanatismo. O fanatismo, que é um fato – um fato que explica boa parte da História -, consiste precisamente numa abdicação da liberdade: há um momento em que uma pessoa faz um ato de abdicação de sua liberdade e decide agir tal como lhe é ditado. Esse que dita pode ser uma pessoa singular, pode ser um grupo, um slogan, uma raça, uma classe ou o que for… O fato é que o homem se funde nessa realidade alheia a ele e renuncia a ser ele mesmo, renuncia a sua “mismidad”, a sua autenticidade e atua como um elemento, como diria isso… Vejamos, lembro-me de ter visto uma vez na televisão umas cenas de um país islâmico (naturalmente, não é exclusividade deles…) em que as pessoas pareciam formigas enlouquecidas e fiquei apreensivo vendo aquilo: como se havia produzido uma anulação do que é propriamente humano: pessoas que se comportavam não como pessoas, mas como coisas, coisas animadas… Isto é possível, isto pode ocorrer. Por que? Porque a vida humana é essencial liberdade. O homem pode chegar a uma desumanização; falamos de desumanização, dizemos que é algo inumano, infra-humano… Ortega deu um passo a mais e falou de “deshominização”, pode haver uma renúncia à própria condição humana.
Eu penso que todo estado de abandono da liberdade, que todo estado de desumanização ou, mais ainda, de deshominização é transitório. É a forma radical de alienar-se, é o abandono da mesmidade, de ser “si mesmo”. Então, evidentemente, a condição humana não fica abolida, mas fica em suspenso, fica sufocada por uma pressão originariamente aceita, insisto, por um ato de liberdade. Por isso, o fanático é responsável. Não se pode eximir o fanático de responsabilidade. Sim ele pode atuar em um momento de alienação, mas é responsável porque a aceitação do fanatismo foi livre.
Se consideramos as atrocidades que ocorreram – e continuam ocorrendo – na História, que não se compreendem bem… é um grave problema religioso. Há uma frase popular, coloquial espanhola: “está dejado de la mano de Dios”. Algo que se solta da mão de Deus, que se desprende dela e há um ato de aceitação do fanatismo e, então, se produz uma espécie de mecanização: o indivíduo já não atua propriamente a partir de si mesmo, age segundo impulsos recebidos, atua freqüentemente em massa, como um peão movido, por exemplo, um terrorista. Tudo isto é suspensão da condição humana e, portanto, da liberdade. Mas há uma aceitação prévia e, por isso, penso que não se destrói a responsabilidade. Não talvez a responsabilidade de um ato concreto, mas justamente a de ter aceitado a abolição pessoal da liberdade.
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