Evangélicos e participação na sociedade brasileira

Autor: Flávio Conrado
Segundo Juarez Guimarães, professor de Ciência Política da UFMG, estaríamos vivendo um segundo grande ascenso no processo de auto-formação do povo brasileiro traduzido no esforço participativo e organização da sociedade em torno de um projeto de construção da nação brasileira. O primeiro teria começado nos anos 1950 e foi abruptamente interrompido no golpe militar de 1964. O segundo corresponderia ao período iniciado na segunda metade da década de 1970 e continuaria até os nossos dias.

O tema que vinculava os movimentos sociais no primeiro período era o tema nacional: os interesses da soberania nacional em relação aos interesses externos. E devemos a esse ciclo as primeiras campanhas nacionais como a Reforma Agrária, liderada pelas Ligas Camponesas, e a formação da primeira central sindical, a CGT. O movimento estudantil e sua tradição contestatória adquirem importância também nesse contexto com a UNE. São elaborados os primeiro projetos de urbanização de favelas em Recife e Paulo Freire ensaia seu trabalho de educação popular numa aliança entre cristão e marxistas. A construção de Brasília e a Petrobrás surgem nesse período como símbolos nacionais, e projetos culturais amplos como o Cinema Novo e a Bossa Nova assim como uma nova geração de poetas vão alargar a imaginação criadora e expandem o patrimônio cultural no país.

Em meados da década de 1970, ressurgem os movimentos sociais e democratizadores do país num novo ascenso no processo de auto-formação do povo brasileiro cuja gramática é a da cidadania ativa. Forma-se o MST, herdeiro das Ligas Camponesas. Surge o novo sindicalismo com a CUT. A Teologia da Libertação aparece nesse momento. A agenda dos movimentos sociais brasileiro incorpora o ecologismo, a expansão da identidade feminina e a luta pelos direitos dos homossexuais. As experiências inovadoras do orçamento participativo e uma nova agenda internacional emancipatória é expressada no Fórum Social Mundial (nascido em Porto Alegre, por iniciativa de lideranças da sociedade civil brasileira) e na proposta de integração latino-americana. Quatro momentos institucionais marcam esse novo período: a Campanha pelas Diretas, a Constituinte, o Movimento pela Ética na Política (seguido do Impeachment do presidente Collor) e a primeira eleição do Lula.

Que tradições animam esse segundo ascenso do processo de auto-formaçao do povo brasileiro que é essencialmente um esforço participativo democrático? Segundo Juarez Guimarães, seriam cinco: i) A primeira tradição seria a do cristianismo popular, da qual a Teologia da Libertação representa sua expressão mais acabada contribuindo para a organização nas bases; ii) A segunda seria o nacional-desenvolvimentismo democrático que traz a questão do desenvolvimento do Nordeste e a idéia de nacionalidade compondo uma unidade entre democracia, justiça social e soberania; iii) A terceira é a do socialismo democrático que é forjada na luta contra a ditadura e na reelaboração das tradições européias e busca a democratização radical; iv) A quarta é a do liberalismo social, republicana, que incorpora também os direitos sociais na sua juridificação (a criminalização do racismo, da violência contra as mulheres, etc); v) E a quinta tradição, a mais larga, é a cultura popular brasileira que organiza dois exercícios permanentes: recriação da identidade brasileira e desfazimento da separação entre elite e massa redefinindo-a como popular/erudito.

Dentro dessa perspectiva que Juarez Guimarães nos apresenta, onde estaria a contribuição dos evangélicos? A resposta óbvia e imediata é: ficamos de fora! Ainda somos devedores desse movimento de construção da cidadania ativa e participativa no Brasil. Creio que ela vem rápida como um tiro, e tem lá sua razão de ser. Ao contrário dos católicos que deram origem a um amplo movimento de conscientização popular e formação de lideranças sociais e políticas através das Comunidades Eclesiais de Base e das Pastorais Sociais, os evangélicos se tornaram mais conhecidos pelos seus parlamentares pentecostais afeitos ao corporativismo e clientelismo político. Enquanto os católicos da chamada Igreja Popular redescobriram a atividade política através do Evangelho de Libertação, os evangélicos encontraram a política no evangelho do “irmão vota em irmão”. Mas distinções precisam ser feitas.

O que não é muito conhecido, sobretudo da mídia, é o engajamento dos setores evangélicos ecumênicos e também daqueles que se engajaram sócio-politicamente através da Teologia de Missão Integral, ambos minoritários por supuesto. Meu trabalho de doutorado procurou dar visibilidade ao último segmento que a partir dos anos 1980, oriundos sobretudo de igrejas históricas mas também de algumas pentecostais, buscaram se inserir e participar das frentes de luta do povo brasileiro: pela redemocratização, pela reforma agrária, pela justiça econômica, pelos direitos da criança e do adolescente, pelo combate à miséria e à fome, pela educação, e mais recentemente, pela pacificação das cidades, entre outros.

Enquanto os setores ecumênicos (algumas igrejas como a Anglicana, Luterana, Presbiteriana Unida, Metodista e entidades de serviço) se destacaram desde a década de 1960 em refletir a realidade brasileira e criar mecanismos de participação nas lutas do povo, os evangélicos da missão integral foram timidamente se articulando e se inserindo nos processos em curso. É bem verdade que os evangélicos da missão integral ainda estamos longe de construir um movimento realmente orgânico que possa influenciar a vida eclesial de grande parte das igrejas evangélicas. Mas alguns passos foram dados recentemente como a criação de redes e um novo revigoramento da reflexão sobre a missão integral em diálogo com a teologia da libertação.

Os ecumênicos, pertencentes às igrejas Episcopal Anglicana, Evangélica de Confissão Luterana, Presbiteriana Unida, Presbiteriana Independente têm percorrido sua jornada em solidariedade ao povo brasileiro especialmente através do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – CONIC, do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI Brasil, da Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE, Diaconia, Fundação Luterana de Diaconia – FLD, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular – CESEP, Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria – CECA, Comissão Ecumênica dos Direitos da Terra – CEDITER, Grupo de Trabalho Missionário Evangélico – GTME e Universidade Popular – Unipop.

Já os evangélicos da missão integral, provenientes de variadas igrejas, históricas e pentecostais, desenvolvem sua reflexão e atuação social através de uma multiplicidade de organizações, dentre elas se destacam a Visão Mundial, a Fraternidade Teológica Latino-Americana – Brasil, a Aliança Bíblica Universitária do Brasil, o Movimento Evangélico Progressista, a Editora Ultimato, o Exército de Salvação, Movimento Encontrão, e mais recentemente, a Rede FALE, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social, a Rede Mãos Dadas, a Aliança de Batistas do Brasil, o Centro de Ética Social Martin Luther King Jr, o Movimento Evangélicos pela Justiça, o Movimento Negro Evangélico, A Rocha Brasil e o Fórum Jovem de Missão Integral.

O desafio atual para esse protestantismo consciente de seu caráter emancipador é o de criar condições para que as novas demandas de democratização e adensamento da participação cidadã encontrem espaço e sejam agenciados no seu conjunto de movimentos, redes, fóruns, organizações, igrejas, entidades, agências missionárias, etc. Talvez esteja na hora de reconstruir um novo consenso que ultrapasse diferenças teológicas e eclesiológicas expressadas pelos movimentos acima.

Considero a experiência do Setor de Responsabilidade Social da Igreja da Confederação Evangélica do Brasil, criada em 1955, como um momento de construção de consenso mais ou menos bem sucedido em relação ao papel da Igreja evangélica na sociedade brasileira. Suas quatro conferências — “A Responsabilidade Social da Igreja”, em 1955; “A Igreja e as Rápidas Transformações Sociais do Brasil”, em 1957; “A presença da Igreja na Evolução da Nacionalidade”, em 1960; e a mais significativa e representativa “Conferência do Nordeste”, cujo tema foi “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” e contou com a participação de Gilberto Freyre, Paul Singer, Juarez Brandão Lopez e Celso Furtado — elevou a capacidade dos evangélicos para dar respostas conseqüentes ao problema da construção da nação.

Faríamos bem em buscar dar passos para a construção desse novo consenso capaz de mobilizar a força moral e social dos evangélicos brasileiros na direção de um país onde justiça e paz se beijem.

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