Entendendo o protestantismo – A religião na cidade

Autor: Ronaldo Cavalcante




“Diferentemente do catolicismo, o protestantismo opta pelo kerigma, colocando o púlpito com a Bíblia aberta no lugar do altar sacramental”
As atividades profissionais são, aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao oposto do que sucede entre outros povos, onde as próprias palavras que indicam semelhantes atividades podem adquirir acento quase religioso. Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
É sabido que o protestantismo, entre outras coisas, liberou o homem de impedimentos teológicos medievais, dando respeitabilidade à burguesia. O estudo clássico de Weber revelou como a ética, a ascese e a doutrina da salvação calvinista, embora não causassem, privilegiaram sobremaneira o “espírito do capitalismo”, criando uma base teológico-filosófica para a grande transformação que ocorreria nos séculos seguintes, inspirada no utilitarismo. A doutrina calvinista legitimava o juro e o lucro razoáveis, que deixavam de ser condenáveis em si, tornando-se santificados; o que era vício foi canonizado pelo calvinismo individualista.
Assim, como explicou muito bem L. Dumont contra o ascetismo medieval contemplativo, Calvino propugna o ascetismo intra-mundano do trabalho: a ética da vocação condena o ócio e o consumo supérfluo. Ao homem consumidor medieval substitui-se o homem produtor. A glorificação medieval da pobreza é substituída pela doutrina da predestinação, na qual o êxito terreno é sinal de eleição, enquanto a pobreza é moralmente condenada. Sinal era, também, o êxito na persecução da investigação científica da natureza, dada a relação entre talento e vocação.
Lutero e Calvino atacam a Igreja medieval, sobretudo, como instituição de salvação em nome da auto-suficiência do indivíduo-em-relação-a-Deus (coram Deo), e com isso inauguram um novo tempo – ou, como disse E. Fromm, “o protestantismo foi a resposta às necessidades humanas do indivíduo assustado, desarraigado e isolado que tinha de orientar-se e relacionar-se com um novo mundo”. Segundo ele, há nessa postura uma satisfação psicológica, visto que só uma ação assim atendia às necessidades e ansiedades deste novo tipo de personalidade.
Que espécie de mundanização religiosa se esconde e insinua no discurso protestante e se evidencia em seu modus vivendi, ensejando e possibilitando a grande articulação entre as máximas cristãs da nascente Igreja do Novo Testamento e do patrimônio bíblico e as novíssimas condições urbanas comerciais e industriais na alvorada da modernidade ocidental? Como se poderá reler a fenomenologia religiosa protestante sob o prisma da descoberta do sujeito livre indivíduo-pessoa, não apenas capax Dei, mas também agora capax mundi; não apenas coram Deo, mas também agora coram hominibus? Que analogia se poderá elaborar entre o germe de liberdade intrínseco ao protestantismo e o processo de secularização como proscrição do sagrado na modernidade, ou mesmo entre o entzauberung weberiano e a ressacralização descontrolada do Ocidente? Afinal de contas, desde a sua gênese e em seu determinismo genético, o protestantismo não estava já entesourado e destinado a um pragmatismo religioso de experiência do divino como “sacré sauvage”? (Roger Bastide).
Diferentemente do catolicismo – que, do patrimônio bíblico do Antigo Testamento, herda do judaísmo, por um lado, essencialmente o fenômeno cúltico da liturgia, portanto, uma estética sagrada sacrificial maximizada, e, por outro, do mundo romano, o corpus de leis, como produto para o futuro direito canônico legitimador do legalismo –, o protestantismo opta pelo kerigma, a Palavra que traz ao indivíduo o oráculo de Deus (fides ex auditu) e, por isso mesmo, desloca na igreja o altar sacramental do centro para o lado, marginalizando-o, e coloca no lugar o púlpito com a Bíblia aberta, centralizando-o. À priorização da Palavra corresponde uma necessária inteligibilidade da mensagem e a criação de um ambiente racional cada vez mais moderno e, por conseguinte, mais secularizado, presente na urbanidade dinâmica dos novos burgos-cidades.
Assim, o sujeito da religião protestante descobre não apenas o Deus absconditus que o seduz pela revelação de sua graça, soberania e providência, virtudes essas estampadas na doutrina da predestinação, mas também um novo locus religiosus. A puritas evangelica doravante se expressará não mais no silêncio daquele lúgubre ambiente monástico do claustro católico, nem tampouco na sobriedade rural dos feudos medievais, mas no frenesi das cidades abarrotadas e sob o ruído das fábricas têxteis; em meio aos artesãos, marinheiros, comerciantes, banqueiros, agiotas etc; transeuntes de um novo mundo, no torvelinho, pois, da florescente burguesia comercial.
Nesse novo habitat, o protestantismo articulará, com base tanto na liberdade de consciência quanto no livre exame, uma nova estética religiosa, oferecendo-a ao homem ocidental como alternativa. Assim, a religião protestante, mutatis mutandis, seguirá o exemplo bíblico de Israel em seu processo de sedentarização rumo a Canaã, e, por assim dizer, pagará o preço do seu brado de liberdade. Ecoará na desintegração das idéias religiosas tradicionais do Ocidente e preparará o caminho para a crítica e a negação da religião na modernidade.
A experiência da “verdade última” e a “coragem de ser”, marcantes da “era protestante” (P. Tillich), conduzem o protestantismo a adotar ou simpatizar com as novas rotas epistemológicas: racionalismo, iluminismo, empirismo, utilitarismo, pragmatismo etc; e, nesse campo, qualquer tipo de estabilidade relacional torna-se imprevisível, inclusive a relação com Deus. Talvez esteja aí a principal novidade ou contribuição do protestantismo: submeter-se ao caráter surpreendente do Sagrado, e no interior dessa insegurança encarar a angústia existencial detectada por Heidegger, Sartre e outros naqueles indivíduos e movimentos que, optando pela liberdade, tiveram que assumir o risco da improbabilidade. Ou. como disse protestantemente Soeren Kierkegaard: “Mas o risco é a verdade que confere peso e sentido à existência humana”.

*Ronaldo Cavalcante é pastor presbiteriano e doutor em Teologia Dogmática pela Universidad Pontifícia de Salamanca, na Espanha. Atualmente é professor de mestrado em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também leciona na Escola Superior de Teologia. Membro da Fraternidade Teológica Latino-americana e da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, faz parte da diretoria do Instituto Mysterium e trabalha com História da Teologia e do Pensamento Cristão e cursos na área de Teologia da Espiritualidade. Colabora com entidades dedicadas ao diálogo ecumênico.

www.sermao.com.br


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