Deus e o Diabo

Autor: Carl Gustav Jung
A cada guerra que se deflagra, torna-se mais aparente que nós e o Diabo temos inúmeras características em comum. Dizem alguns que é função da guerra revelar à espécie humana sua enorme capacidade para o mal de forma tão inesquecível que cada um de nós acabará reconhecendo a própria sombra negra e se atracará com as forças inconscientes de sua natureza interior. As execráveis forças instintuais do homem civilizado são imensamente mais destrutivas e, portanto, mais perigosas do que os instintos do homem primitivo, o qual, num grau modesto, vive constantemente instintos negativos. Por conseguinte, nenhuma guerra do passado histórico poderá rivalizar com uma guerra entre nações civilizadas em sua escala colossal de horror.

Depois de termos provado do conhecimento do bem e do mal, enfrentamos, para todo o sempre, a responsabilidade da escolha moral. Já não somos capazes, como crianças obedientes, de permanecer seguramente dentro dos limites de um código superposto de ética. Estamos, segundo Sartre, “condenados a ser livres”. Sem liberdade para escolher, não pode haver moral verdadeira. O fato é que a maioria dentre nós tem hoje mais escolha livre do que supomos; muitos, porém, ainda inconscientemente aprisionados dentro de mores culturais, recusam-se a aceitar a responsabilidade da escolha moral. A maioria simplesmente não faz idéia do que poderíamos ser capazes se fôssemos libertados de todas as restrições superpostas, assim reais como imaginárias.

Enquanto a nossa obediência a um código moral for automática, não seremos livres. Enquanto nos recusarmos a virar-nos e a enfrentar nossos próprios diabos interiores – seja qual for a forma que possam assumir – não seremos humanos.

No Antigo Testamento, o mal era visto também como um aspecto de Deus. Para citarmos o próprio Jeová: “Eu sou o Senhor e não há mais ninguém. Formo a luz e crio a escuridão. Faço a paz e crio o mal. Eu, o Senhor, faço todas as coisas.” (Isaías)

Muitos psicólogos concordam que o descaso com nosso lado diabólico é a causa principal de grande parte do pandemônio solto no mundo de hoje. Nosso emocionalismo, fanatismo, caráter vingativo, violência e confusão individuais (não reconhecidos nem manipulados em nossa vida pessoal) agora explodiram em escala maciça, em forma de guerras, tumultos, destruição.

Quando os aspectos negativos de nós mesmos não são reconhecidos como nossos no interior, parecem agir contra nós no exterior. Em face dos acontecimentos mundiais contemporâneos, torna-se cada vez mais imperativo que cheguemos a um acordo com essa força satânica.

O Diabo é personagem de caráter muito duvidoso, ambivalente. De um lado é hostil a Deus mas, de outro, está sujeito à Sua autoridade e só age com a tácita permissão da Divindade. Esta parece ser a essência do conflito com que as gerações têm lutado. Ou o Senhor não é onipotente, ou o Diabo pertence à sua criação. Ou uma coisa ou outra. Se adotarmos o conceito de monoteísmo, é evidente que Deus deve ter criado o Diabo como parte do seu plano divino. Podemos achar o conceito difícil de aceitar conscientemente mas, inconscientemente, todos temos vivido com ele, toda a vida. Ele nos penetrou a corrente sangüínea como parte da herança cultural. “Não nos deixeis cair em tentação”, rezamos. A quem oferecemos a oração? Ao Diabo? O fato de dirigirmos a súplica a Deus só pode significar que, inconscientemente, experimentamos a tentação da desobediência como parte da divindade.

É muito difícil aceitarmos a sombra pessoal em nós mesmos e em nossos amigos, mas a idéia de que o próprio Deus pode ter também um aspecto de sombra, parece, a princípio, opor-se aos ensinamentos básicos da nossa cultura cristã. Muitos de nós fomos embebidos inconscientemente no cristianismo do calendário litúrgico, em que um benévolo Deus-Pai, envolto em algodão cor-de-rosa, sorri protetoramente para Seus filhos, pondo para correr o malvado Demônio Negro. A idéia de que a divindade pode abranger todos os opostos, incluindo uma área de escura inconsciência e de que o Diabo pode possuir algumas qualidades brilhantes e redentoras, nos é chocante.

O fato é que a aquiescência passiva e a ingenuidade cega podem ser diabólicas. Quanto mais brilhante for a luz, tanto mais negra será a sombra.

Quanto mais conscientes nos tornamos do nosso potencial criativo, tanto mais alertas devemos estar para os truques do nosso lado sombroso e tanto mais responsáveis devemos ser em relação à ele. À medida que se expande, a consciência se torna mais refinada, de modo que ficamos cada vez mais a par da nocividade potencial de qualquer palavra ou ato. Visto que todo impulso humano é essencialmente amoral, o que torna imoral uma ação instintual é a sua consciência. O aumento da percepção, longe de transformar-nos em plácidos vegetais, mergulha-nos mais e mais profundamente no conflito moral, exigindo até uma penetração mais incisiva nos mistérios do bem e do mal.

Cristo disse: “Não trago a paz, senão a espada”. Empunhar a espada da discriminação moral perturba a nossa pacífica inocência e impõe inevitavelmente sentimentos de transgressão e culpa. Sentimentos de transgressão, culpa e punição ligam-se à busca da consciência. Qualquer rompimento com os costumes predominantes do meio social externo pode ser experimentado como ofensa contra o todo e é, não raro, acompanhado de sentimentos de culpa. Mas se todo o mundo o estiver fazendo, podemos usar, dizer, ou fazer as coisas mais esquisitas, praticar atos ilegais e até criminosos sem experimentarmos culpa. Qualquer afastamento da identidade inconsciente original com o eu envolve sentimentos de culpa. Mas para nos mover na direção de uma relação consciente com o eu, precisamos levar a cabo esse rompimento e absorver a culpa.

O peso da culpa não é apenas pessoal, pois cada um carrega alguma culpa pela criminalidade e desumanidade gerais. Ainda que, juridicamente falando, não tenhamos sido cúmplices do crime, somos sempre mercê da nossa natureza humana, criminosos em potencial. Na realidade, apenas nos faltou a oportunidade apropriada para sermos arrastados à melée infernal. Nenhum de nós fica fora da sombra negra coletiva da humanidade. Por essa razão, muitas vezes, não nos sentimos bem quando nos comportamos perfeitamente; sentimo-nos muito melhor quando estamos fazendo alguma coisa errada. Isso acontece porque não somos perfeitos. Os hindus, quando constróem um templo, deixam um canto por acabar; só os Deuses podem fazer coisas perfeitas, o homem nunca poderá fazê-las. É preferível sabermos que não somos perfeitos porque assim nos sentimos muito melhor. Não obstante, a imagem da perfeição está tão entranhada em nossa cultura que nos sentimos culpados quando não podemos atingi-la. Precisamos, às vezes, de um bode expiatório que nos ajude a suportar o peso das nossas imperfeições demasiado humanas. Ou projetamos em nossos amigos, parentes, governo, ou somos esmagados por seu peso. O Diabo é um ótimo bode expiatório. Mas é ele que, como Lúcifer, o anjo, pode oferecer-nos o fogo do céu para nossa salvação ou o fogo do inferno para nossa destruição. E durante todo o tempo, nos passa a perna, aparecendo em tantas formas que o perdemos de vista.

As máscaras usadas pelo Diabo e as tentações que o vemos oferecer variam com a cultura. Para os nossos antepassados, o Diabo era a carne sintetizada como paixão sexual. Hoje, o sexo e o corpo já não são considerados pecaminosos.

Na verdade, a liberdade sexual tornou-se agora de rigueur (obrigatória), de modo que é a restrição pudica que usa chifres. Hoje, a Grande Besta é de novo despertada para a histeria em massa pela crescente coletividade da nossa cultura contemporânea.

Uma grande companhia composta de pessoas totalmente admiráveis tem a moral e a inteligência de um animal pesado, estúpido e violento. Quanto maior é a organização, tanto mais inevitável é a sua imoralidade e estupidez. Ao acentuar automaticamente todas as qualidades coletivas de seus representantes individuais, a sociedade concede um prêmio à mediocridade, a tudo que se estabelece para vegetar de modo fácil, irresponsável. A individualidade será, inevitavelmente, encostada na parede.

Carl Gustav Jung foi um revolucionário pesquisador da psique humana

1 Comentário

  1. O artigo em questão não é do Carl Gustav Jung. É recortado de “Jung e o Tarô”, de Sallie Nichols, da Editora Cultrix, 1980. Página 259.

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