Autor: Uwe Wegner
Resumo: O amor de Deus em Jesus valorizou e dignificou todas as pessoas, em especial aquelas que, por condição social ou estigma moral, eram marginalizadas e afastadas do convívio social e religioso. Após a ressurreição, o derramamento do Espírito, com a infusão dos seus dons nos cristãos, representou o sinal de que Deus quer que participação de todas as pessoas no processo de construção de uma igreja e sociedade fraternas. A opção pela participação na construção de novos espaços de vida requer formação/informação, consciência crítica, uma nova mentalidade, abertura para renúncias e o rompimento com velhas ordens e valores.
(The love of God, in Jesus Christ, value and dignified all persons, especially those who, because os their social condition ans moral stigma, were marginalized and withdrawn from the social and religious fellowship. After his ressurrection, the pouring of the Holy Spirit, with its gifts to the Christians, represented a sign that God wants the participation of all people in the process of construcion of a fraternal Church and society. The option for the participation in the construcion of new spaces of life requires formation/information, critical consciousness, a new mentality, and openness to relinquish and break away from old orders and values.)
Introdução
No livro de Pedro Demo, “Cidadania tutelada e cidadania assistida”, lemos sobre a nossa temática: “a cidadania, definida como competência humana de fazer-se sujeito, para fazer história própria e coletivamente organizada. Para o processo de formação dessa competência alguns componentes são cruciais, como educação, organização política, identidade cultural, informação e comunicação, destacando, acima de tudo, o processo emancipatório. Este funda-se, de partida, na capacidade crítica, para, com base nesta, intervir na realidade de modo alternativo. O desafio maior da cidadania está na pobreza política, que está na raiz da ignorância acerca da condição de massa de manobra. Não cidadão é sobretudo quem, por estar coibido de tomar consciência crítica da marginalização que lhe é imposta, não atinge a oportunidade de conceber uma história alternativa e de organizar-se politicamente para tanto. Entende injustiça como destino. Faz a riqueza do outro, sem dela participar”i.
Demo chama a nossa atenção para o fato de que “cidadania”, por si só, ainda não representa uma solução efetiva para a construção de uma democracia livre e soberana. É necessário, muito mais, que se perceba e aprenda a distinguir as distintas roupagens dentro das quais a cidadania se apresenta na prática, a fim de que se possa optar pelo modelo mais efetivo e libertador. Sintetizadas, são as seguintes as três roupagens com as quais se experimenta cidadania segundo este autor:
a)Cidadania tutelada – cultivada entre os círculos da direita, é “aquela que se tem por dádiva ou concessão de cima. Por conta da reprodução da pobreza política das maiorias, não ocorre suficiente crítica e competência política para sacudir a tutela. A direita apela para o clientelismo e paternalismo… O resultado mais típico da cidadania tutelada… é a reprodução indefinida da sempre mesma elite histórica”ii. Esta cidadania é própria de uma ideologia liberal que propõe um Estado subserviente e privatização pelas oligarquias, com políticas sociais residualistas-setoriais.
b)Cidadania assistida – cultivada, segundo o autor, em certos círculos da esquerda, representa um grau um pouco mais elevado de consciência política, caracterizando-se pela reivindicação do direito à assistência, um direito reconhecido como legítimo em qualquer democracia. “Entretanto, ao preferir assistência à emancipação, labora também na reprodução da pobreza política à medida que, mantendo intocado o sistema produtivo e passando ao largo das relações de mercado, não se compromete com a necessária equalização de oportunidades. Entrelamento da população a um sistema sempre fajuto de benefícios estatais é seu engodo principal. Maquia a marginalização social. Não se confronta com ela.” Esta é a cidadania própria de uma ideologia neoliberal, com um estado “protetor” e políticas sociais setorialistas-assistenciaisiii;
c)Cidadania emancipada – esta visa a construção de uma sociedade alternativa, com base de sustentação na organização popular, na competência para o trabalho e no princípio da equalização de oportunidades, tendo no Estado um legítimo órgão de prestação de serviços públicos, devidamente controlado pela sociedade, e como alvo a conquista plena dos direitos humanos; sua preferência é por uma política social do desenvolvimento humano sustentadoiv.
Na prática, estes três tipos diferenciáveis de cidadania não podem ser tão claramente separados como é possível fazê-lo na reflexão teórica. A cidadania emancipada como conquista real só é perceptível em poucos setores da vida pública e, mesmo assim, muitas vezes ainda mesclada com boas doses de cidadania tutelada ou assistida. Ela permanece, por essa razão, realidade parcial, cuja plenitude representa um contínuo desafio.
Na Bíblia a questão da cidadania é de suma importância. A história que apresenta o Antigo Testamento pode ser descrita como a história de um povo que busca e luta teimosamente por cidadania, por direitos e espaços para uma vida digna, fraterna e justa. O Novo Testamento nos narra a continuidade desta história e luta, sobretudo sua ampliação para o âmbito de todos os povos, ou seja, do povo universal de Deus. Nas páginas que seguem, procuraremos esboçar alguns reclames de cidadania encontrados no Novo testamento, com destaque para os sinóticos e as cartas paulinas. Nosso pressuposto é triplo: Em primeiro lugar, entendemos que a maneira de se conceber Deus, fé e responsabilidades cristãs pode determinar profundamente se o cristianismo se torna um aliado ou um inimigo da construção de uma cidadania democrática e participativa. Além disso, as igrejas, longe de representar clausuras religiosas que nada têm a ver com as questões de cidadania, são, em verdade, setores privilegiados, no seio de cujas comunidades o exercício de cidadania ou alienação pode ser testado de maneira muito singular. E, por último, não há, na Bíblia, uma separação entre o religioso e o profano. Se a sua mensagem for a favor da cidadania, ela o será tanto em relação à esfera do religioso, como também em relação às demais esferas da vida, como a social, cultural ou econômica e política.
1.O amor gracioso de Deus como fundamento para uma cidadania que não exclui ninguém
1.1 Jesus proclama um Deus amoroso para com todas as suas criaturas
Jesus e o movimento por ele deflagrado apresentam uma tendência fortemente contrária a mecanismos de seleção e segregação existentes nos mais diversos setores da sociedade do seu tempo. Isto implica em que Jesus se torne advogado, defensor e animador de pessoas ou grupos marginalizados. Seu movimento é essencialmente inclusivo, o que explica que abrange também e especialmente os superlativos da miséria como os mais pequeninos irmãos de Mt 25,31-46 (v. 40.45), os “últimos” das filas à procura de empregos em Mt 20,1-15 (v.8.12.14) ou os incultos e sem formação de Mt 11,2. Alguns exemplos podem ilustrá-lo:
a)Os pobres – Estes são os economicamente descartáveis, desinteressantes para a produção e o consumo. Na época de Jesus eram pessoas como os indigentes, desempregados e mendicantes, cuja maior característica residia em que não tinham mais condições (saúde, emprego) ou recursos (bens, dinheiro, terras) para poderem sobreviver às próprias custas. Pessoas mal remuneradas, com baixa renda ou pouca terra para trabalhar não se denominavam “pobres”(ptochoi), mas “necessitados” (pénetoi). Estes últimos (cf. Lc 21,2; 2Co 9,9) precisavam de trabalho árduo e poupança constante para sobreviver, mas não deixavam de possuir o mínimo indispensável para as necessidades básicas. Os “pobres” (ptochoi), aos quais se refere Jesus, ao contrário, eram indigentes: encontravam-se totalmente a mercê de ajuda ou caridade de terceiros (cf. Lc 4:18, 6:20; 7:22; 11:5; 18:22; 21:3 e outros)v.
b)As prostitutas e adúlteras – Eram duplamente marginalizadas como mulheres (social) e como prostitutas e adúlteras (moral e religiosamente). Jesus defende uma adúltera em Jo 8,1s e exalta as meretrizes em Mt 21,31-32 pela disposição que apresentaram ao arrependimento e fé.
c)Os pecadores e publicanos – Eram pessoas especialmente estigmatizadas na sociedade, sobretudo pelas suas infrações morais notórias. Jesus partilha refeições com as mesmas e é conhecido como “amigo de publicanos e pecadores” (Mt 2,15-17; Lc 7,34; 15,1-2).
d)Os possessos – Estes detinham um estigma social (incomunicabilidade) e religioso (possuídos pelo diabo/demônios). Jesus pratica exorcismos e devolve aos possessos a razão e a capacidade de comunicação social (Mc 5,15; 7,35; Lc 11,20)
e)Os samaritanos – Seu estigma religioso fazia com que fossem considerados como semijudeus ou mesmo gentios, pelos judeus. Jesus os coloca como exemplos de gratidão e amor ao próximo (Lc 17,11s; 10,25s).
Estes exemplos bastam para comprovar que o movimento de Jesus é essencialmente includente, com uma forte propensão para amparar, defender e mesmo enaltecer aquelas pessoas e grupos de pessoas que corriam o maior perigo de rejeição, discriminação e exploração social e religiosa. Aos exemplos citados poderíamos incluir os perseguidos (Mt 5,10-12), os que choram e passam fome (Mt 5,4.6), os forasteiros e nus (Mt 25,38), os enfermos de todos os tipos (Mt 25,39; Mc 1,32-34), as crianças (Mc 9,33-37; 10,13-16), as mulheres em geral, os leprosos (Mc 1,41s), os gentios (Mt 8,11-12).
Jesus justifica seu procedimento acolhedor com palavras como as de Mc 2,17: “os sãos não precisam de médico, mas os doentes; não vim para chamar os justos, mas os pecadores”, ou Mt 10,6: “procurai, preferencialmente, as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Palavras como estas explicam a prática de Jesus, embora lhes falte a razão maior que justifique esta prática.
Para isso, somos remetidos à sua concepção sobre Deus. Num primeiro texto (Mt 5,45) Jesus nos apresenta um Deus que ama, indistintamente, todas as suas criaturas, pois “faz nascer o sol sobre bons e maus e vir chuva sobre justos e injustos”. Assim já se expressava a sabedoria no AT: “Iahweh é bom para todos, compassivo com todas as suas obras”(Sl 145,9). Esta justificativa é complementada com uma segunda, oferecida, sobretudo, pela tradição das parábolas, em especial, aquelas que tratam da aceitação e acolhimento dos perdidos por parte de Deus: as parábolas da ovelha perdida, da dracma perdida e do filho que se perdeu (Lc 15,3-7.8,10.11-32), mas também parábolas como as do fariseu e publicano (Lc 18,9-14) e dos trabalhadores na vinha (Mt 20,1-15). Todas elas mostram um Deus que, curiosamente, vai em busca de, aceita e acolhe pecadores e perdidos, ao invés de condená-los e rejeitá-los. Assim sendo, Jesus necessita defender a inclusão de todos e todas como receptores e receptoras do amor gracioso de Deus porque sua concepção de Deus trabalha com um Criador que é misericordioso e bom para com todas as suas criaturas (Mt 5,45; Mc 10,18)
Esta posição de Jesus implicou a necessidade de realizar três correções nas concepções da sua época. A primeira foi em relação ao mandamento do amor ao próximovi. Na época do NT este mandamento, testemunhado já em Lv 19,18, era interpretado quase que exclusivamente de forma restrita e aplicado unicamente para pessoas do próprio povo judeu (apesar de Lv 19,34). Para Jesus, o próximo não é só o conterrâneo e compatriota judeu, mas pode tornar-se, em tese, qualquer pessoa, não importando sua etnia, classe, cor, grupo ou credo religioso. Ou seja, em Jesus o mandamento do amor ao próximo tem função de permitir o rompimento de barreiras comumente impostas pela sociedade, possibilitando relações igualitárias e fraternas entre opostos aparentemente difíceis ou impossíveis de conciliar, como brancos e negros, pobres e ricos, gentios e judeus, justos e pecadores. Daí as palavras: “com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensas tendes?… E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais?… Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito”(Mt 5,46-48).
Paralelamente a esta ampliação do conceito de “próximo” ocorre uma segunda correção efetuada por Jesus. Esta diz respeito ao espaço reservado aos gentios dentro da nova realidade do reino de Deus. Jesus, é verdade, não advogou uma missão direta aos mesmos (Mt 10,5s). por outro lado, também se distancia claramente de colocá-los como inimigos de Deus, que necessitam ser exterminados, como era usual em sua época. Positivamente, não se nega a contemplá-los com seus milagres (Lc 7,1-10; Mc 7,24-30) ou a exaltá-los pelo seu exemplo e fé (Lc 4,25-27; 10,13-14; 13,28-29).
Ou seja, a concepção de um Deu amoroso para com todos e todas, necessariamente levou a corrigir também a concepção dos gentios como os mais detestados e – na concepção da época – distantes do Deus de Israel. Isto traria enormes conseqüências para as comunidades da primeira cristandade.
Por último, cabe destacar ainda a ampliação efetuada no conceito da família dei. Para Jesus, a radicalidade do amor de Deus estava a exigir uma ruptura com todos os exclusivismos tão característicos das solidariedades grupais, hoje cunhadas pelo que se costumou denominar de males do corporativismo. Ele faz prevalecer os laços para com Deus acima dos laços naturais como, por exemplo, os de sangue (Mc 3,20-21.31-35; Lc 12,51-53; Mt10,34-36), tornando possível a formação de uma família universal e sem fronteiras, caracterizada pela solidariedade de todos os que aceitam e procuram orientar-se pelo amor e a vontade de Deus (Mc 10,28-30; Rm 8,12-17; Gl 3,23-29).
Todas estas três correções efetuadas por Jesus são uma implicação natural da maneira de agir de Deus por ele concebida: um Deus que acolhe pecadores, busca o perdido, prefere a misericórdia aos sacrifícios! O reino de Deus é a soberania deste acolhimento e amor que não exclui ninguém. Cidadania é, segundo os evangelhos, primariamente a proclamação e a defesa desta lógica do agir de Deus nas igrejas e sociedades. Jesus revelou todos os excluídos e oprimidos como criaturas que, aos olhos de Deus, possuem um valor inestimável e inalienável. Esta é a razão última pela qual exercer cidadania dentro de uma ótica cristã significa respeitar e advogar a todas as pessoas o direito à aceitação e respeito por parte de seus seme
lhantes, grupos e autoridades.
1.2 O Deus amoroso e includente em Paulo
Nas comunidades paulinas é defendida a mesma lógica includente do amor de Deus, embora, na nova situação pós-pascal, com atualizações diferenciadas. A maior novidade consistiu em que Paulo lançaria as bases definitivas para a superação da mais notória exclusão religiosa da sua época, a saber, a exclusão dos gentios do povo eleito e querido por Deusvii: “Acaso é Deus só dos judeus? Não é também dos gentios? É certo que também dos gentios, pois há um só Deus, que justifica os circuncisos pela fé e também os incircuncisos através da fé” (Rm 3,29-30)! O reconhecimento da aceitação de pecadores por parte de Deus abriu a Paulo a percepção da estima divina por todas as demais categorias sem valor, honra ou status. Isto se tornava mais evidente ainda a partir do próprio Cristo, Salvador, crucificado em desonra e abandono (1Co 1-4). Diante do fato da cruz, Paulo conclui, bem à semelhança de Jesus, que Deus escolhe justamente aquilo que representa loucura e fraqueza no mundo, o que no mundo é vil e desprezado, o que dentro dele nada significa (1Co 1,26-29).
Na prática, esta convicção fez de Paulo um defensor de várias categorias marginalizadas, além dos já mencionados gentios, como
os pobres: confira seu trabalho em prol dos pobres em Jerusalém (2Co 8-9) e em defesa dos de Corinto (1Co 11,21-22);
pessoas de pouco saber: Rm 12,16; 1Co 8,1-2;
pessoas de dons pouco prestigiados: Rm 12,3; 1Co 12,12-27;
pessoas de fé fraca: Rm 14,1-2; 1Co 8,7-13;
pessoas artesãs: 1Ts 4,9-12 etc.
É justamente na fraqueza que, para o apóstolo, se revela Deus (2Co 12,7-10). Por isto, o elemento fundamental da cidadania, a aceitação e valorização de todas as pessoas e grupos de pessoas sem exceção, está presente também na teologia paulina com rigor indiscutível. O amor e a graça de Cristo representam a dignificação de todos como filhos e filhas de um mesmo pai e mãe celestes e, por conseqüência, como irmãos e irmãs entre si. A cidadania inclusiva outorgada por Deus reclama a fraternidade entre os seres humanos: “nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16).
2. Aspectos de cidadania no movimento de Jesus e nas comunidades paulinas
2.1 Formação – informação
Para um bom exercício de cidadania é necessário formação e informação. A informação ajuda a qualificar a formação no sentido de fornecer-lhe subsídios e argumentos para um discernimento mais abalizado dos diversos assuntos. A formação é essencial para a emissão de juízos próprios.
Embora não saibamos detalhes sobre o processo de formação de Jesus, podemos depreender dos evangelhos que ele tinha amplos conhecimentos das Escrituras Sagradas, bem como das tradições dos anciãos. Disto dão prova sua participação nas sinagogas (Mc 1,21-28; 6,1-6; Lc 4,16-30) e suas controvérsias com escribas fariseus sobre questões relacionadas com a lei e costumes (Mc 2,18-22.23-28; 7,1-23; Mt 5,17-48; 23; Lc 11,37-38, etc.). Jesus fez uma leitura muito crítica do saber dos escribas: “atam fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto eles mesmos nem com o dedo querem removê-los”(Mt 23,3). A isto contrapõe um saber próprio, que representa um jugo suave e um fardo leve, não destinado a uma sobrecarga, mas ao alívio (Mt 11,28-30). Seu grau de informação não era unicamente grande na área das Escrituras Sagradas, mas também naquela concernente aos usos e costumes do seu mundo circundante, o que se evidencia, sobretudo, por suas parábolas. Também em outras áreas Jesus procurava manter-se informado e atualizado: ele informa-se sobre as ações e o ensino realizado pelos seus discípulos (Mc 6,30), solicita que estes procurem examinar com os próprios olhos o que há de disponibilidade em comida (Mc 6,38: “Ide ver!”), observa atentamente toda a situação no templo antes de expulsar os seus vendilhões (Mc 11,11.15-19) etc.
A importância atribuída por Jesus ao saber transparece nitidamente no espaço reservado à formação e informação para os seus adeptos. Inicialmente deve ser constatado que Jesus exaltava o saber popular, distinguindo-o claramente do saber profissionalizado dos “sábios e instruídos” (Mt 11,25). Para que seu ensino pudesse ser captado com maior interesse e facilidade, apresentava-o seguidamente em forma de histórias e parábolas, evitando graus de abstração intelectuais com os quais seus ouvintes são se encontravam familiarizados, entrando, dessa maneira, diretamente no seu campo referencial (Mc 4,33-34). Com suas histórias e parábolas, Jesus priorizava o terreno da conduta, da práxis e experiência, em detrimento do terreno das idéias: é aí que residia sua força de persuasãoviii. Além disso, seguidamente apelava diretamente para o juízo dos próprios ouvintes através de perguntas imbutidas no início ou final das narrativasix.
Digno de nota é também o fato de Jesus ter advogado pela multiplicação dos saberes, e isto não só entre os homens, como era normal em sua época, mas também entre mulheres (Mc 15,40-41; Lc 10,38-42:v.39). passado o tempo para um aprendizado fundamental, os seus discípulos são logo enviados entre a população para pregar, ensinar e curar (Mc 3,13-14; 6,7-8). Ele não defendia o monopólio do saber, como os escribas. Por outro lado, o conteúdo básico do seu ensino não pode ter sido complicado, o que inviabilizaria o período relativamente curto de formação para seus discípulos. Depreedemos daí que, no fundo, a novidade do evangelho é uma mensagem límpida e cristalina, cujo maior problema não pode residir na clareza do seu conteúdo, mas unicamente nas eventuais resistências par a aceitação da sua verdade.
Quão fundamental era a formação dos discípulos e do povo para Jesus transparece também pela estatística: o termo mestre lhe é atribuído 45 vezes, enquanto que o de pregador, nenhuma; quanto aos verbos correspondentes, 45 vezes é empregado ensinar, mas só 11 vezes pregar! Sintomáticos são também os termos empregados em relação aos seguidores e à mensagem de Jesus: seus seguidores são designados de discípulos (mathetesx) mais de 230 vezes nos evangelhos e em Atos, e sua mensagem é caracterizada como ensino 39 vezesxi. Entre os quatro evangelhos é sobretudo o primeiro, Mateus, que mais destaca o ensino de Jesus. Dentro da sua ótica, a tarefa confiada pelo Cristo ressurrecto não é outra senão “fazer discípulos de todas as nações…ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado”(Mt 28,18-19). At 2,42 confirma o cumprimento da tarefa: “e perseveravam no ensino dos apóstolos…”!
Esta prioridade dada por Jesus ao ensino a seus discípulos e discípulas contrasta com a pouca importância dada à formação cristã em muitas igrejas e paróquias, fomentando o clericalismo, mas também com o descaso de inúmeros governos em relação à educação fundamental e de nível superior, incentivando a ignorância e fácil manipulação da população.
2.2 Apropriação de saberes nas comunidades paulinas
Bem à semelhança de Jesus, também Paulo é polêmico contra um tipo de sábios e sabedoria. Contrapõe uma sabedoria “humana” a outra divina. A humana é a sabedoria dos fortes, para os quais fraqueza e cruz não passam de escândalo e loucura. A divina é a sabedoria daqueles que conseguem visualizar presença divina também naquilo que é vil, desonroso, abandonado e débil: é a sabedoria da cruz. É porque se Deus manifesta justamente naquilo que é fraco, que o apóstolo decide pregar a Jesus crucificado (1Co 1,18-31).
O esforço do apóstolo no sentido de democratizar e socializar o saber em suas comunidades pode ser percebido no seguinte:
a)Seu trabalho de formação evangélica é essencialmente participativo. Paulo trabalha prioritariamente em equipe. O número de seus colaboradores e colaboradoras sobe a mais de 40 em suas cartas, acrescidos de mais outros 12 nomes em Atos e 10 nas cartas pastoraisxii;
b)Paulo não costuma dar receitas prontas para as comunidades. Ao contrário, pressupõe nelas uma maturidade para discernir entre o certo e o errado, o conveniente e o inconveniente. Confia em que cada cristão tem, iluminado pelo ESPÍRITO SANTO, o discernimento suficiente para emiti juízos próprios e amadurecidos sobre o que fazer e não fazer (Rm 12,1-2; 14,21-23; 1Co 11,28-29; 2Co 13,5; Gl 6,4; Fl 1,9-10; Ef 5,10; 1Ts 5,21-22 – veja também Hb 5,14)xiii;
c)Para o apóstolo, a riqueza dos saberes na comunidade não é fomentada pelos conhecimentos particulares de cada indivíduo, mas deve ser entendida como um produto e concessão do Espírito Santo através dos carismas concedidos para a construção da fraternidade. E o Espírito concede a sua sabedoria a quem lhe apraz, o que impede que seja privatizada por qualquer grupo ou elite eclesial (1Co 12; Rm 12,3s; Ef 4,11-12).
2.3 Criticidade
Ninguém muda ou deseja mudar alguma coisa na condição de alienado, ou seja, enquanto não percebe que algo está errado, é injusto ou discriminatório. Para o exercício da cidadania é, pois, imprescindível o discernimento crítico. Este, por sua vez, vai depender dos valores que possuímos e pelos quais estamos dispostos a viver e lutar.
A pessoa cristã possui uma escala de valores norteada por dois princípios fundamentais: a) fidelidade a Deus e combate a toda espécie de idolatria; e b) amor ao próximo e combate a tudo que lhe possa ser prejudicial ou desonrar a dignidade que lhe foi atribuída por Deus (Mc 12,28-34; Rm 13,8-10). O segundo princípio desdobra-se em vários subprincípios, como defesa da vida (Mc 3,1-6; Jo 10,10), da verdade (Jo 18,37), da igualdade, da partilha, etc. Exercício de cidadania neste sentido materializa-se numa espiritualidade militante, ciente por um lado de opositores ferrenhos ao projeto de uma nova sociedade solidária, mas disposta, por outro, a defendê-la com todos os meios, mesmo que ao custo de perdas, perseguições e da própria vida (Mc 9,34-37; Mt 5,10-12).
Este discernimento crítico perpassa praticamente cada página do Novo testamento e abrange todas as áreas da vida. As riquezas ou o seu acúmulo, amplamente prestigiadas pela ordem político-econômica vigente na época de Jesus, são reveladas como idolatria (Mt 6,19-21; Lc 12,15-21); o exercício do poder, atrelado já antigamente a pequenas mas influentes elites, é desmascarado como opressão e domínio tirânico (Mc 10,42); a ordem social vigente, com sua distinção clara entre mestres e discípulos, pais e filhos, guias e seguidores, é relativizada: “mas o maior dentre vós será o vosso servo” (Mt 23,8-13); a prática da religião é criticada pois se baseia mais em sacrifícios que em misericórdia e tende a ser mais carismática e menos fraterna (Mt 9,13; 12,7; 21,12-13; 23,23; 7,21-23; 1Co 12-13). Aos olhos de Cristo e dos cristãos, não são unicamente alguns setores ou esferas da vida que são vistos sob outra perspectiva a partir da fé, mas é todo o sistema reinante. Para expressar esta radiografia crítica ao sistema como totalidade, Jesus se manifesta em termos de geração má e adúltera, João fala de mundo e Paulo de mundo ou presente séculoxiv. Segundo Gl 1,4 Cristo “se entregou pelos nossos pecados a fim de nos livrar deste mundo mau”. E 1Jo 2,15-16 afirma: “não ameis o mundo… porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas, não procede do Pai”. À luz da revelação de Deus, o “mundo” é revelado como mau e corrupto (Jo 3,19-21), pois que mantém prisioneira a verdade pela injustiça (Rm 1,18) e engana as pessoas com uma falsa paz e segurança, destinadas à rápida destruição (1Ts 5,3). Diante de um sistema de tal forma deturpado, o que mais se faz necessário é o testemunho da verdade (Jo 18,37).
Exercitar cidadania é aprender a ver o mundo em sua realidade nua e crua pelas lentes da fé, não se iludir com aparências e maquiagens de pretensos benfeitores (Lc 22,25), perder ingenuidades e, então, sim, proclamar a verdade. Viver cidadania é realizar uma radiografia do mundo com os raios da solidariedade de Cristo. Só assim estaremos habilitados para uma prática solidária eficaz, que acolherá com muito cuidado parceiros e parceiras e que renunciará a alianças baratas com quaisquer grupos, partidos políticos ou governos.
2.4 O pensar alternativo – como mudar uma cabeça?
O exercício da cidadania evangélica não é só difícil em razão de uma série de hábitos e costumes adquiridos e dos quais as pessoas têm dificuldades naturais de se desprender, mas também em face de uma determinada maneira de pensar e de certos juízos de valor profundamente arraigados nas mentes e nos raciocínios de cada um, formando uma série de preconceitos e idéias preconcebidas com as quais defendemos nossas próprias opiniões e rotulamos precipitadamente a maneira de pensar de outros. Na verdade nossas mentes estão, em sua maioria, prisioneiras de um cativeiro profundamente sedutor, mas extremamente alienante e interesseiro, representado pelos modernos meios de comunicação e, por extensão, pelos interesses e idéias que defendem. Os meios de comunicação de massa são os instrumentos mais eficazes para a bitolação das cabeças e a distorção de verdades. Representam, com certeza, a forma mais proliferada e prejudicial de possessão do mundo moderno.
Segundo Paulo, a vontade de Deus não se descobre ou discerne de “cabeça velha”. É preciso renovar a mente (Rm 12,2), já que esta pode ser corrompida “apartando-se da simplicidade e pureza devidas a Cristo” (2Co 11,3). Sem renovação do entendimento não se cria uma humanidade nova (Ef 4,17-24). Como fazer para que a nossa mente não seja corrompida, os nosso juízos não sejam instrumentalizados por interesses alheios ao evangelho?
O maior serviço que pode ser prestado atualmente a uma cidadania que não queira ser manipulada e instrumentalizada por interesses escusos ao evangelho é fomentar o acesso à informação alternativa. Este acesso pode ser viabilizado através da divulgação de bons programas em rádio e televisão (sobretudo em debates, pelo alto grau de formação que carregam), de jornais ou revistas de cunho crítico, de palestras e discussões públicas, etc. Existem algumas regras relativamente simples para evitar juízos manipulados e inconsistentes. Diante de fatos ambivalentes, o juízo melhor abalizado será geralmente aquele que procurará
ouvir todos os lados dos acontecimentos;
realizar uma análise de conjuntura;
não se deixar levar por simpatias;
conhecer a realidade pessoalmente;
submeter os fatos a um juízo de valores cristão;
adquirir o melhor grau de informação possível a respeitoxv.
A “mente de Cristo” deverá estar também em condições de avaliar com profundidade as “imagens” veiculadas pelos meios de comunicação dos governantes, políticos em geral e demais pessoas de renome ou projeção econômica e social. O marketing elaborado dessas pessoas pode ser extremamente enganoso. Nos tempos de Cristo maquiavam-se intenções espúrias com ares de piedade ou beneficência (Mt 6,1-5.16; 23,25-26.27-31; Mc 12,40; Lc 22,25). Atualmente, através da mídia, certos índices de rejeição ou repúdio a uma pessoa podem ser facilmente revertidos através de um bom marketing. Os meios enganosos ou dúbios usados para tanto pouco interessam. O importante é o que outros vão pensar da pessoa, não o que ela efetivamente é; o importante é aquilo que outros pensem que ela pretenda fazer, não o que efetivamente realizará. Assim sendo, o marketing muitas vezes não passa de maquiagem barata, que não resiste a um juízo crítico sério. E, nestes caos, continua atual o alerta de Cristo, que nos ensinou a não julgarmos unicamente pelas intenções declaradas, mas pelos frutos efetivamente obtidos: “pelos seus frutos os conhecereis”(Mt 7,20). Também é bom ter em mente que um marketing autenticamente cristão se orientará sempre pelo grau de serviço prestado ao próximo por parte de pessoas, instituições ou governos, e não simplesmente pela sua maior ou menor aceitação social ou popular (Mc 10,43-45)xvi.
2.5 Ser cidadão é participar na construção do novo
A palavra participação não tem mais hoje a força de anos anteriores. A prioridade atualmente é mais o individual e subjetivo, fomentados pelo pós modernismo. Quando o assunto é cidadania, no entanto, a participação assume uma importância decisiva, pois onde não há participação na construção de uma nova sociedade, esta tarefa é delegada a terceiros que, facilmente, são instrumentalizados por interesses alheios ao evangelho. O resultado é que não se constrói uma nova, mas se sedimenta a velha sociedade excludente e opressora.
Nas igrejas e comunidades a participação é sinal da presença e atuação do Espírito entre cidadãos. O Espírito dá a cada pessoa dons para que, através dos mesmos, ela contribua na construção do corpo de Cristo. Como os dons são plurais, cada pessoa tem, em princípio, a chance de realizar algo em benefício comunitário. Basta que se lhe dê o espaço e as oportunidades para tal. A grande vantagem de uma tal participação “carismática” na igreja é de que a atuação dos dons evita o clericalismo e favorece o potencial evangelizador de leigos e leigas. Onde se abafam os carismas, a vida intra-eclesiástica tende à rigidez e falta de alegria. Onde há espaços para o Espírito atuar com liberdade, “medram os vários carismas, aflora a criatividade… pessoas se sentem efetivamente membros e não meros fregueses de suas comunidades, propicia-se espaço para a realização religiosa de todos com suas várias capacidades…”xvii
Tal como na igreja, também na esfera pública há uma pluralidade de espaços e oportunidades para que os cristãos coloquem a serviço de Deus e do próximo todo o seu potencial de habilidades, experiências e conhecimentos. Os espaços são as ONGs, os movimentos populares, os conselhos citadinos e de bairros, os órgãos ou entidades de defesa do consumidor, de drogados, de prostitutas, de crianças de rua, a militância em partidos políticos, etc. O exemplo vivido por Cristo reclama de todos uma participação responsável na construção de uma sociedade fraterna e justa. É praticamente consensual atualmente que tal participação não se pode mais restringir meramente ao voto dado para que tal participação não nos representem junto aos poderes constitucionais existentes. Participação significa, muito mais, envolver-se diretamente com a construção de vida social respeitosa e justa na cidade, no bairro e na rua em que, efetivamente, vivemos e trabalhamos. Cristo não haverá de perguntar-nos unicamente pelo que os representantes por nós eleitos fizeram aos pobres e famintos. Ele procurará saber, muito mais, se nós próprios soubemos acolhê-lo e defendê-los naqueles que não têm o que comer, vestir, beber, são foragidos e presos (Mt 25,31-46).
Mesmo assim, a transformação de pessoas individualistas e meramente espectadoras dos eventos para cidadãos participantes nos processos de transformação social costuma ser penosa e, por vezes, repleta de percalços. A experiência de Jesus é esclarecedora. Uma das suas mediações usadas para provocar a mudança de prática, a conversão, foi o ensino. Este, quando dirigido aos seus adversários, praticamente nunca provocou transformação; ao contrário, endurecia-os ainda mais (Mc 2,1-3; 3,6; 11-12). Quando dirigido aos discípulos e às multidões, provocava admiração (Mc 1,22), mas não necessariamente uma mudança. Esta só ocorria quando e na medida em que as pessoas estavam dispostas a arcar com perdas e predispostas para certas renúncias (Mc 8,34-37; 10,28-30).
A outra mediação usada por Jesus foi a das práticas concretas, como as curas, o discipulado de iguais entre homens e mulheres (Mc 3,13-19; 6,7-13; 15,40-41), a comensalidade aberta entre publicanos e pecadores (Mc 2,15-17; Lc 15,1-2), as multiplicações de pães (Mc 6,35s e 8,1-8), entre outras. Também nestes casos os resultados se mostram ambivalentes. As curas que, na expectativa de Jesus, deveriam levar à conversão, podiam ser “consumidas” de forma interesseira e descomprometida (Mt 11,20-24 e Lc 17,11-19). O valor da partilha nas multiplicações de pães, verdadeiros exemplos de como repartir o pouco que se tem, podia ser facilmente esquecido (Mc 8,17-22). Também nestes caso, pode-se ver que uma nova prática, por si só, não tem um poder transformador automático. A conversão implica na renúncia de hábitos e convicções fortemente arraigados por vários anos ou decênios, o que, por si só, já é um processo difícil e doloroso. Mas não só isso. Ela vai além e procura romper as barreiras socialmente erigidas, derrubar os muros de separação criados entre os homens e mulheres, adultos e crianças, ricos e pobres, negros e brancos, governantes e governados. Assim agindo, rompendo fronteiras seculares e juntando quem sempre afirmou pela separação e distância, os cristãos pervertem o sistema e provocam o desagrado e a perseguiçãoxviii. E é justamente neste momento que s decide ou não a opção pela cidadania evangélica. É o momento em que nosso amor e compromisso com a justiça e verdade não sustentam mais amizades baratas.
Confira J. M. Castillo, O discernimento cristão, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 201: “a atuação de Jesus não tinha simplesmente o sentido de ‘fazer o bem’, porque isto não irrita ninguém nem provoca tipo algum de perseguição. Jesus rompia com tradições, violava normas, derrubava muros de separação. E isto é o que não se podia tolerar. Porque a sociedade e o sistema estabelecido estão dispostos a fazer todo o bem que se queira, mas contanto que cada um permaneça em seu lugar, ou melhor, contanto que se continuem mantendo as diferenças e as distâncias que tornam impossível a solidariedade”.
Fonte: Faculdade Latino Americana de Teologia Integral
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