Autor: Maria Cândida Monteiro Pacheco
Dizer que a Idade Média vive de textos parece, um lugar comum, que arrasta consigo conotações eminentemente negativas, já que, assistimos, hoje ao esquecimento desses mesmos textos, à perda da palavra como referência e à sua substituição pela imediatez da imagem, integrada na vivência quase inconsciente de um pensamento de exterioridade.
E, no entanto, essa afirmação aponta para um outro modo de ver, decisivamente inserido na dimensão ontológica e na afirmação de sua prioridade perante a instância cognitiva, que marcou a evolução da história do pensamento até à modernidade e presidiu à abertura e ao fundamento de um Logos ocidental: grego, helenístico, romano, mas também cristão.
Nesta perspectiva, a Idade Média, na sua especificidade, na complexidade das suas matrizes culturais, nunca totalmente unificadas, é, a seu modo, a continuidade de um pensamento clássico, na amplitude abrangente de um movimento de translatio studiorum, que foi acolhendo decisivas transformações processuais, num percurso do sagrado ao profano, da cosmologia à ética, da teologia à antropologia, da antropologia à soteriologia.
Quando o Cristianismo é apresentado querigmaticamente[1] ao mundo pagão, busca nele, natural e espontaneamente, os instrumentos e os esquemas intelectuais para se constituir na sua dimensão metafísica.
Não pode deixar de ser significativo que já na versão grega dos Setenta, os tradutores escolham, para expressar o hebraico dabar– palavra de Deus revelada aos homens, paralelamente conhecimento e força criadora – o complexo conceito de Logos, da tradição filosófica grega. Em sequência, nos textos paulinos e no prólogo do Evangelho de João, o mesmo conceito exprime, retomando a tradição complexa, o Verbo de Deus, consubstancial ao Pai, que encarnou e se fez homem, como mediador e revelador por excelência.
A Encarnação marca a erupção da eternidade no tempo e a instauração de uma nova ordem que engloba e completa a antiga: a escuta da Palavra divina que utiliza e se expressa em palavras humanas, desencadeia a dimensão exegética e marca a permanente abertura do texto sagrado que a contém, numa pluralidade incessante de interpretações.
Deste modo, é ainda o conceito de Logos que se transforma em instrumento de mediação, possibilitando o encontro entre o cristianismo como religião e a filosofia pagã, porque Cristo Logos, fazendo convergir em si todos os acontecimentos, se define como Verdade e Vida, conexionando, de modo definitivo, os fundamentos do conhecimento e da norma da consciência moral.
Neste sentido se entende a posição dos Apologistas – desde Justino e o seu conceito de Logos seminal – aos Padres Alexandrinos e Capadócios, estruturando uma leitura da Filosofia como propedêutica ao Cristianismo, que se apresenta, ao nível de uma metaracionalidade como verdade total, a ser descoberta, nas perspectivas diversificadas do humano, mas acima, de tudo, como interpelação constante a uma razão que busca e que toma como ponto de partida o texto escrito da Revelação fundante. Importa, no entanto, notar, que ainda aqui, o Cristianismo se insere numa confluência de tradições longas, clássica e hebraica. A primeira centra-se na palavra dos mestres das escolas de Filosofia – dogmas – fixadas nas doxografias, comentando-as, ou procura actualizações de sentido nos grandes textos paidemáticos – como os de Homero – numa interpretação alegórica. A segunda posiciona-se já perante uma Revelação consubstanciada em escritos de índole e de tempos diversos, procurando entendê-los entre a letra e o espírito, numa cadeia ampla de posicionamentos e processos. A esta luz, e situando-se, dinamicamente, perante esses dois polos, o pensamento cristão construirá também um percurso próprio – o da tipologia[2] – entendendo o Novo Testamento como cumprimento do Antigo, na realização histórica das suas profecias, dos seus acontecimentos e dos seus vultos mais significativos. Acresce, ainda, para a nova religiâo que quer comunicar-se e expandir-se, o imperativo de tradução das categorias hebraicas em que primeiro foi expressa para o universo cultural clássico em que se insere e a que se dirige. O texto bíblico de que se parte, abre-se a uma pluralidade de sentidos – do literal ao espiritual – ensaiando-se a partir dele a conciliação de uma experiência de salvação e de uma teorização de doutrina. Institui-se, deste modo, como referência exemplar.
Não deixa de ser significativa a diversidade de direcções abertas, logo nos primeiros séculos cristãos, pela Escolas catequéticas de Alexandria e de Antioquia. Na senda do Judeu Fílon, Clemente e Orígines, acolhendo a influência determinante do platonismo e do médio platonismo e elementos provenientes de correntes diversas, com relevância para a cínico-estoica, acentuam a plenitude do “ Evangelho eterno”, só conhecido gradativamente à medida que for sendo decifrado o Evangelho histórico; a presença, paralelamente, mistérica e reveladora do Logos na Bíblia, o que desencadeia a necessidade de uma interpretação e a definição de gnose[3], no seu tríplice sentido: somático, psíquico e espiritual; o significado, quase sacramental, da escuta da Palavra que, no seu sentido espiritual mais profundo, é modeladora existencial de uma ética no horizonte de uma mística de luz.
Em contrapartida, a Escola de Antioquia que tem o seu apogeu nos finais do século IV e a sua decadência com Nestório que a leva à heresia e fomenta o descrédito sobre os seus métodos, recusa o abuso do alegorismo alexandrino incidindo mais fortemente na interpretação histórica e literal do texto bíblico, embora procurando encontrar, também, um significado moralizante. A fundamentação filosófica, eclética, tem, no entanto, um timbre predominantemente aristotélico, o que parece favorecer um maior rigor racional, a clara tendência para um método expositivo e analítico e a relevância dada ao lado racional das verdades reveladas.
Na sequência histórica imediata, os Padres Capadócios posicionam-se na continuidade da Escola de Alexandria, mas representam já a maturidade do Cristianismo como pensamento que emerge como herdeiro de tudo o que parecia digno de reviver no legado clássico, segundo os critérios da Revelação, no delinear do horizonte de uma nova civilização, de contornos ainda imprecisos. Na sua busca de entendimento da Palavra revelada, em que a exegese e a hermenêutica se tocam, interpenetram-se a retórica e a Filosofia, estruturam-se metafisicamente, as linhas de força de uma nova cosmovisão e de uma nova antropologia que acolhe e teoriza a incipiente experiência monástica[4].
Nesta perspectiva gradual de constituição de um pensamento cristão, no diálogo ou na polémica, mas sempre voltada para a necessidade intrínseca de comunicação, a interpretação da Escritura posiciona-se, de forma constante, como o ponto de partida e o fulcro de todas as iniciativas, referência fundante que contem em si, afinal, o nó de todas as problemáticas – do Homem, de Deus, do mundo, nas sua interconexões – mas também a exigência inequívoca de uma explicitação contínua e histórica.
Se se estrutura, assim, no seu delineamento globalizante, a emergência de uma metafísica cristã, salvaguarda-se, no entanto, o sentido mistérico do Absoluto e da Transcendência, na preocupação constante de eliminar todo e qualquer vestígio de antropomorfismo e evitando, lucidamente, os percursos subjectivistas de um racionalismo fechado. Por outro lado acentua-se a primordial importância da questão interpretativa. Como escreve Chenu: “Dado que a palavra de Deus se exprimiu em linguagem humana, moldando-se às palavras, frases, imagens, estrutura, géneros literários da palavra humana, essa ‘escrita divina’ encontrará as suas vias de inteligibilidade através da interpretação das palavras, das frases, das figuras, dos géneros literários da linguagem humana[5].”
Assim se entende, nos textos cristãos dos primeiros séculos, os reflexos das orientações pedagógicas e da estrutura curricular da paideia clássica, com a sua forte acentuação na vertente literária e retórica. No sentido crítico de aproveitamento da herança pagã, justifica-se, racionalmente, a utilização dos seus processos mentais, dos seus autores e das suas escolas de Filosofia e salienta-se o significado instrumental que, no seu conjunto, poderão ter na dilucidação dos conteúdos da revelação, inserida e concluída no tempo, mas em total abertura ao nível da interpretação.
Se Justino e Clemente de Alexandria estabeleciam um paralelismo entre a revelação mosaica para os Hebreus e a Filosofia para os Gregos, realçando o sentido de completamento trazido por Cristo-Logos, ao nível da meta-racionalidade, Basílio de Cesareia definirá, no seu célebre escrito Aos jovens, sobre o estudo da Literatura e da Poesia Gregas e o seu valor para a educação cristã, a importância da cultura grega para a formação do cristão, perspectivas que Agostinho codificará, para os séculos medievais, no seu De Doctrina Christiana. Nessa obra, de influência ímpar em toda a Idade Média, é já bem patente a relevância de um ideal enciclopédico de saber que, mergulhando as suas raízes na decadência clássica, tem, como principal objectivo a preservação dos dados da ciência profana, posta ao serviço da ciência sagrada. Esta perspectiva, também bem visível em Boécio e Cassiodoro, acentua-se em Isidoro de Sevilha, tendo em conta a diferenciação dos tempos. Segundo Jolivet, “Se Cassiodoro propunha leituras, Isidoro fornece resultados, definições, isoladas dos seus contextos”[6].O interesse e o significado da sua obra mais conhecida – Etimologias – sublinha a ligação, naturalmente aceite, entre as palavras e as coisas, mas aponta, igualmente para a relevância da gramática como método fundamental do saber.
Isidoro marca a passagem e a continuidade entre o enciclopedismo antigo, conexo aos seus métodos pedagógicos e os inícios da Idade Média[7] cujo interesse dominante será o afã da recolha de textos e a sua gradual recuperação e organização, no quadro duma orgânica pedagógica – o das Artes Liberais- que prolonga a Escola Antiga e se abrirá, gradualmente, a novos horizontes do saber e do agir – como a valorização da técnica – e até a novas disciplinas, como a Ética, a partir do século XII.
No tumulto anárquico dos primeiros séculos medievais, destruídas as estruturas organizativas do Império, três instâncias se impõem em nexos de continuidade e de ordem: A Igreja, como instituição; a cultura e a língua latina, como traço aglutinante; o mosteiro, como depositário e transmissor dessa mesma cultura.
Se, nas sua origens orientais, o monaquismo tinha sido marcado pela radical recusa da cultura como ingrediente civilizacional, rapidamente, com S. Basílio, se abrira ao saber, instrumentalizando-o em função da escuta e do conhecimento da Palavra Revelada, primeiro e fundamental ofício do monge.
Ligando-se a outras inspirações – como as de Agostinho – o ideal basiliano será no Ocidente a inspiração dominante, projectando-se na Regra de S. Bento e na amplitude da sua difusão.
Como afirma Leclercq, o conhecimento das letras e a busca de Deus surgem assim, na perspectiva beneditina, como as duas componentes fundamentais da vida do monge[8].
Nesse sentido, “Essa inspiração marcará sempre a tradição monástica. Subordinada a uma vivência prática, centrada numa espiritualidade que se abre à contemplação, nunca poderá dela emergir uma cultura desinteressada, entendida como um fim em si. A razão humana será sempre orientada para a plenitude do divino no lugar utópico que é o mosteiro, unidade fechada sobre si, isolada voluntariamente do exterior a que se contrapõe. Mas, por isso mesmo, necessariamente irradiante, como todas as utopias[9].”
A vida do monge está, assim, voltada, em primeiro lugar para o conhecimento e o entendimento do texto bíblico, que modelará ética e espiritualmente a sua vida. Todavia, inserido numa tradição de séculos, esse texto arrasta consigo uma cadeia contínua de comentários e interpretações; de escritos avulsos que desenvolvem as suas temáticas fundamentais; de instrumentos de consulta que facilitarão a associação dos topoi; de vestígios de culturas diversas que foram marcando as sucessivas leituras interpretativas.
O ponto de partida é, sempre a Bíblia, consubstanciada na lectio que se abre à oratio e à contemplatio. Mas, em conexão significativa, a necessidade da compreensão do texto, desencadeia a necessidade de abertura a saberes diversificados que vão respondendo a motivações cada vez mais exigentes de um ponto de vista racional. Para além de uma apreensão vivencial da lectio, há a necessidade teórica da captação do sentido das palavras e das ideias fulcrais que veiculam.
Nos primeiros séculos medievais o estudo da Sacra Pagina[10] reflecte uma atenção predominante à gramaticalidade do texto. Gradualmente, porém, na continuidade do dinamismo tensional entre a letra e o espírito, que se define na pluralidade dos sentido – littera, allegoria, tropologia, anagoge – a razão ganha nova consistência e flexibilidade, procura um alargamento de apoios e instrumentos. As escolas monásticas abrem-se ao desenvolvimento dos estudos liberais, onde a retórica assume um novo papel para, rapidamente ser substituída pela dialéctica.
A partir do texto bíblico, constroi-se, assim, um intellectus fidei que implica, humanamente a cogitatio fidei. É, pois, toda uma forma de pensamento que se constitui, na especificidade de vivências próprias, conexionando tradições e saberes., diversificando-se nas adequações circunstanciais, mobilizando-se perante factos e situações novas, mas constituindo, na sua unidade complexa, o que Leclercq chama a “cultura monástica“. É significativo que as sua fontes principais sejam a Escritura, a tradição patrística e a literatura clássica[11] que, na sua diversidade, apontam percursos que acabam por confluir. Mas o importante é asssinalar que a busca de entendimento e de interpretação de um texto fundante leva à estruturação de novos saberes, à curiosidade pela aquisição de novas fontes, à ampliação dos quadros das Artes Liberais[12] que prolongam no medioevo o ensino antigo. Neste caminho de alargamento e difusão, dois factores são inequivocamente relevantes: a permanência não rígida da orgânica das Artes Liberais e a utilização do Latim como língua litúrgica e de cultura, o que possibilita a unificação dos métodos de ensino e a circulação ampla dos instrumentos de trabalho que se possuem, se multiplicam pela cópia minuciosa no silêncio dos scriptoria e que se vão adquirindo, de novo, em contactos aprofundados com a patrística Grega –-os Judeus e os Árabes, mediadores dos saberes orientais e greco-helenísticos.
A escola monástica é, nos primórdios medievais o único centro do saber, na sua continuidade com a Escola antiga, centrando-se na comunicação textual e na sua interpretação, modelando mais uma vida do que definindo um saber teórico. Lentamente, o gradual desenvolvimento urbano desencadeia o evoluir das escolas catedrais: primeiro, centradas na formação dos clérigos e fundamentadas no conhecimento dos textos sagrados e nas disciplinas do trivium; depois, acolhendo uma população estudantil cada vez mais numerosa, proveniente dos estratos novos da burguesia, que procuram vias profissionalizantes, abertas pelos estudos do Direito e da medicina.
O século XII é, no seu dinamismo genésico, na vivência do renascimento urbano, com todas as suas tensões e as suas potencialidades, o século-charneira na época medieval: recolhem-se novos textos – de Platão e Aristóteles, do saber árabe – definem-se novos tipos de comentários em que a dialéctica alcança um lugar de relevo, pela possibilidade de confronto e de definição da diferença; codificam-se processos retóricos, em ligação reforçada e consciente com a Antiguidade, na sua dimensão literária ou centrando-se, especificamente na redacção de Artes praedicandi; redescobre-se a natureza como novo horizonte da razão, procurando entendê-la nos seus processos e nas suas leis, acentuando-se o valor da experiência, num traçado emergente de Filosofia natural que dá nova atenção às disciplinas quadriviais; demarcam-se, enfim, claramente, os parâmetros do sagrado e do profano.
É interessante verificar que a escola monástica – responsável pela difusão da cultura e do saber, depositária e mediadora da herança clássica até então, se fecha sobre si como scola Christi[13] e, com excepção para os cónegos regrantes, se afasta desse mundo urbano em expansão onde os novos centros do saber – escolas catedrais e depois Universidades – tomarão o seu lugar.
No entanto, mesmo no seu mundo fechado, a construção de uma mística especulativa, que retoma a inspiração dos grandes autores da Patrística e se abre à influência ímpar do Pseudo Dionísio, traduz, por um lado, a premência de uma racionalidade afirmativa, a continuidade do “ amor das letras” e, por outro, a consciência dos limites dessa mesma razão perante a presença mistérica do Absoluto, que se pressente.
Se o texto bíblico, continua a ser o ponto de partida inequívoco para um saber teológico, polariza, agora, formas de abordagem diversas: escritos místicos, centrados, sobretudo, no Cântico dos Cânticos em que avulta uma leitura espiritual, o predomínio dos sentidos alegórico, tropológico e anagógico, e que utilizam uma linguagem poética e simbólica, literariamente elaborada; comentários que se posicionam com uma nova atenção ao sentido literal e histórico do texto, retomando algumas das inspirações da escola de Antioquia e correspondendo às motivações racionalizantes do tempo; opúsculos e pequenos tratados que, situando-se, embora, em referência á Revelação, se afastam do texto e concatenam especulações sobre temáticas dele decorrentes, em esboço de um entendimento de uma Teologia como ciência[14], operando a passagem da Sacra Pagina à Sacra Doctrina.
A esta luz, entende-se claramente, que os problemas da Filosofia da linguagem subam a um primeiro plano, polarizados pela questão dos universais[15], nos primeiros ensaios de construção das gramáticas especulativas, na codificação rigorosa dos sentidos da hermenêutica do texto, na definição exigente dos preceitos das artes predicatórias e da formação dos pregadores[16].
São direcções que se acentuarão no século XIII, momento de apogeu e de síntese e, no dizer de Gilson, “ século de ouro da metafísica”. Na confluência de tradições matriciais, dinamizado pelo conhecimento total da obra de Aristóteles e dos seus comentadores – o que representa a aportação fundamental de um novo rigor científico para a análise do universo, do pensamento e até do sagrado – este século assistirá à concentração dos centros de cultura, à reorganização dos estudos expressa nos estatutos universitários, às exigências de uma renovação espiritual que encontra nas Ordens mendicantes – sobretudo nos Franciscanos – a sua melhor expressão. A Universidade é, então, a grande impulsionadora do saber, centro de polémicas e de posicionamentos diversificados perante a obra de Aristóteles que se conhece na sua totalidade, na sua racionalidade intrínseca e o pensamento judeu e árabe, nas suas especificidades individualizantes.
As leis do método escolástico[17] – que se fora construindo gradualmente na sequência da escola antiga – são codificadas e a busca do entendimento do texto – que se escolhe dentre a já rica pluralidade de fontes e autores, cristãos ou não – passa a situar-se entre a tentativa da descoberta da intentio auctoris e o comentário analítico e rigoroso, feito metodologicamente passo a passo, quase em atomização, na contraposição de perspectivas e de autores e na definição de conclusões que nunca são apresentadas como definitivas.
O texto que se analisa é designada por lectio – numa referência inequívoca à sua origem monástica. Mas abre-se, agora, à quaestio, e à disputatio, desembocando na determinatio. As referências didácticas e pedagógicas são inequívocas, já que a disputatio supõe o diálogo mestre-aluno, alargando-se, sobretudo nas quaestiones quod libetales, mas são também significativas as estratificações das leituras: littera – que assenta numa inicial análise gramatical; sensus – ao nível lógico da busca de sentido; sententia – que expressa a interpretação e a formula num contexto determinado.
Verifica-se, por outro lado, um paralelismo entre as formas didácticas e as formas e géneros literários. Deste modo, da lectio procedem os Comentários e as Sumas; da disputatio emerge a literatura das quaestiones disputatae e quodlibetales; os opuscula, expressam, no seu afastamento do texto, a liberdade na abordagem das temáticas. Poderá afirmar-se que se deve à dialéctica a abertura da exegese à problemática, na consistência de uma razão interpretativa cujas exigências de rigor marcarão para sempre o pensamento ocidental, projectando-se para além dos tempos medievais.
Num estudo extremamente interessante e fundamentado, Erwin Panofsky[18], analisando o pensamento medieval desta época, nas suas múltiplas criações, encontra estruturas mentais semelhantes, subjacentes ás diversas linguagens, e isola “conjuntos inteligíveis idênticos e utilização de métodos aproximados – salvaguardados os níveis de diferenciação entre a teoria e arte – na Suma e na catedral gótica[19]. Ambas significam, a concreção de um modus operandi, determinado por um modus essendi ” na expressão paradigmática de um pensamento formal cujos princípios reguladores são a manifestatio, a explanatio que compreende a divisão nos elementos simples e a concordantia que expressa a tentativa de síntese”.
Subjacente está uma estrutura conceptual, como habit-forming-force, uma razão formalizante bem consciente das suas capacidades e dos seus limites. No reconhecimento do seu fundamento ontológico, estruturando o conhecimento no ser, entende a necessidade metodológica e crítica do seu percurso de descoberta da verdade como processo intrínseco da própria razão. Daí que, como escreve Malmberg “A linguagem escolástica seja um fenómeno único na história do pensamento filosófico, forjando as suas leis e as suas regras com um rigor total[20].”
Também para Pinekaers[21], a razão escolástica, estruturada a partir da dimensão interpretativa do texto, assume, características especiais: é abstracta, como resultado de um pensamento liberto das conotações acidentais; é analítica, pois a palavra significa a essência; é anhistórica, situando-se ao nível do essencial, num presente independente do passado e do futuro; é impessoal, já que nunca usa a primeira pessoa; nunca é subjectiva, mas aponta sempre para o universal.
Se é certo que no seu longo percurso constituinte, o pensamento medieval tomou sempre como referência inequívoca a palavra revelada na sua dimensão escrita, o seu posicionamento meta-racional nunca limitou ou paralisou a razão no seu percurso, antes se constituiu como fonte de dinamismo e de motivação. Assim se entende a correlacionação dessa leitura aberta com a busca de outros textos – sagrados ou profanos – com outras religiões – no diálogo ou na polémica – e até com a natureza – entendida como um “livro” que se quer e pode decifrar.
A prática textual da descoberta dos sentidos múltiplos, conferiu à razão ductilidade, fez com que confiasse nas suas próprias capacidades sem que se anulassem os seus pontos de referência.
Deste modo foi capaz de instituir os saberes particulares nos seus níveis próprios, de analisá-los epistemologicamente, alargando os seus horizontes entre a ciência e a sabedoria, numa linha dupla em que a especulação e a contemplação, a Escolástica e Mística, são factores em presença que interagem sem confundirem nem as suas linguagens nem os seus limites.
Entende-se este percurso, tendo em conta a percepção lúcida de que a verdade é o lugar da enunciação e não a enunciação o lugar da verdade, num sentido próximo à afirmação de Heidegger, muitos séculos depois.
Nessa dialéctica razão- meta-razão, que nasce do texto, mas que dele se liberta, numa hermeneutica sempre em aberto, se joga, afinal, o entendimento do humano- plenamente humano, que nunca pode pensar-se como Absoluto.
——————————————————————————–
[1] F.L. Cross, The early Christian Fathers, G. Duckworth and Co,1960; J. Daniélou, Message évangélique et culture hellénistique, Desclée, Tournai, 1961; A.J. Festugière, L’idéal réligieux des Grecs et l’Evangile; E. Gilson, La Philosophie au Moyen Age, des origines patristiques à la fin du XIVème siècle, 2ª ed. Paris, Payot, 1962; C. Tresmontant, Les idées Maîtresses de la Metaphysiqye Chrétienne, Paris, Seuil, 1962; W. Yaeger; Early Christianity and Greek Paideia, Londres, Oxford University Press, 1962.
[2] J. Daniélou, ob.cit.; H. de Lubac,Exégèse Médiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, I,II,III, Paris, 1959-1964; B. Smalley, Lo studio della Bibbia nel Medioevo, Bolonha, Molino, 1972.
[3] R.M. Grant, La Gnose et les origines chrétiennes, Paris, Payot, 1964;J. Quasten, Initiation aux Pères de l’Eglise, Paris, Cerf, 1966.
[4] L. Bouyer,La spiritualité du Nouvau Testament et des Péres, Paris,1960; A. Momigliano, The conflict between paganism and christianity in the fourth century, Oxford,1963; J. Pépin, Théologie cosmique et théologie chrétienne, Paris, 1964.
[5] M.D. Chenu, La Théologie au XII ème siècle, Paris, Vrin, 1957, p. 16.
[6] J. Jolivet,Histoire de la Philosophie, Encyclopédie de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1969, I, pp. 1232-1233.
[7] M. Gandillac, J. Fontaine, J. Châtillon, M. Lemoine, J. Grundel, P. Michaud-Quentin, La pensée encyclopédique au Moyen Age, Montreux, ed. De La Baconnière, 1966.
[8] J.Leclercq, Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age. L’amour des lettres et le désir de Dieu, Paris, Cerf,1963, p.19. Ver, também, sobre o mesmo tema, J. Décarreaux, Les moines et la civilisation, Paris, Arthaud, 1962.
[9] Maria Cândida da Costa Reis Monteiro Pacheco, Ratio e Sapientia. Ensaios de Filosofia Medieval, Porto, Civilização ,1985, p. 16.
[10] M.D.Chenu, ob.cit. e, do mesmo autor, La Théologie comme science au XIIIème siècle, Paris, Vrin, 1957.
[11] J. Leclercq, ob.cit., p.70
[12] Arts Libéraux et Philosophie au Moyen Age, Montreal, Paris, 1969; Maria Cândida Monteiro Pacheco, O saber: dos aspectos aos resultados, in “ História da Universidade em Portugal, Coimbra,1997,I, pp. 155-177.
[13] J. Leclercq, ob. cit., pp. 179-218.
[14] Maria Cândida Monteiro Pacheco, Nas origens da Teologia como Ciência – St. Anselmo e Abelardo, in “ Universidade do Porto, Revista da Faculdade de Letras, Série de Filosofia, nº 5-6,1988-9.
[15] J. Verger, L’Exégèse, parente pauvre de la Théologie scolastique in “ Manuels, programmes de cours et techniques d’enseignement dans les Univerdités Médiévales Lovaina a Nova, 1994, pp.31-56; O. Weijers,L’enseignement du Trivium à la Faculté des arts de Paris: la ‘Quaestio’.”, id. Ibid.,pp.57-74.
[16] L. J. Bataillon, La prédication au XIIIe siècle en France et Italie. Etudes et documents., ed. Variorum, 1993;M. Brtiscoe, Artes praedicandi, Turnhout, Brepols, 1992; Th.M. Chaarland,Artes praedicandi. Contribuition à l’histoire de la Rhétorique au Moyen Age, Paris-Ottawa, 1936; J. Longère,La prédication médiévale, Paris, 1983.
[17] P. Glorieux,L’enseignement au Moyen Age, in “ Archives d’Histoire Doctrinale et littéraire au Moyen Age”, 43, 1968.
[18] E. Panofsky, architecture gothique et pensée escolastique, Paris, les Editions de Minuit,1967
[19] Maria Cândida Monteiro Pacheco, Ratio e Sapientia. Ensaios de Filosofia Medieval,pp. 98-99.
[20] B. Malmberg, Histoire de la Linguistique de Srinner à Saussure, Paris, P.U.F., 1961.
[21] S. Pinekaers, Le langage scolastique, langage rationnel, cit. por Malmberg, ob.cit.,p. 118.
Faça um comentário