A espiritualidade na pós-modernidade

Autor: Ed René Kivitz




Com a espiritualidade de hoje vem a subjetividade, o mercado religioso e a fé privatizada.

O conceito de pós-modernidade ainda é um tema controvertido. Fala-se em hiper-modernidade, alta modernidade ou modernidade tardia, modernidade radicalizada, modernidade líquida. A compreensão comum, entretanto, é que a chamada pós-modernidade inclui a modernidade e não pode ser compreendida sem ela.

A modernidade designa um fenômeno muito complexo que se manifesta com força na segunda metade do século 18, a partir da Revolução Industrial – capitalismo, ciência e técnica, urbanismo, desenvolvimento ilimitado e a revolução democrática muito sensível aos direitos humanos, com todas as suas nuances ideológicas. No centro da modernidade está o indivíduo, pois nada é tão percebido como a subjetividade, que liberta todo mundo da dependência das instituições sociais.

Como reflexo dessas transformações, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, definiu liberdade como “poder para fazer tudo o que não prejudica o outro; o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem mais limites do que os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”. E a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, afirmou que “todos os homens nascem e permanecem iguais e livres”.

A lógica deste ideário moderno exige dois outros aspectos da individualidade: a autonomia e a racionalidade. O significado etimológico de autonomia é “ter a lei em si mesmo”, a capacidade do indivíduo agir movido e orientado por sua própria consciência, assumindo, portanto, a responsabilidade pelos seus atos. Autonomia implica todo poder normativo subordinado à consciência individual e, conseqüentemente, a rejeição de todo poder arbitrário e dogmático. Por esta razão, o processo moderno rejeita a religião e a divindade representada por ela.

Nesse contexto, a racionalidade surge como necessária, ou mesmo é uma decorrência da autonomia. O princípio de Descartes, “penso, logo existo”, proclama a centralidade do indivíduo pensante. O Iluminismo do século 18 traz o “esclarecimento racional”, em oposição ao dogmatismo que faz da autoridade e da tradição os critérios últimos de juízo. O homem moderno deseja fazer sempre e em todo lugar uso da própria razão. Uma sociedade que supervaloriza a subjetividade, a liberdade, a autonomia e a razão do indivíduo, evidentemente, privilegia a vivência de espiritualidade sem a tutela institucional.

A palavra espiritualidade pode suscitar muitas imagens: um mosteiro com homens recolhidos e afastados da realidade, se auto-flagelando em penitências; pessoas sentadas em roda, na posição de lotus, buscando fazer uma ponte entre seu eu mais profundo e as energias do universo; o auditório repleto de crentes diante de um pastor – mais parecido com um animador de auditório – fazendo promessas para a solução imediata de quaisquer problemas em troca de ofertas financeiras; a romaria de fiéis que cruzam uma pequena vila à luz de velas, seguindo um santo de devoção ao som de cantilenas tristes; ou até mesmo uma mesa, na repartição pública, cheia de cristais, gnomos, fitas e amuletos que visam atrair os bons fluídos e afastar os maus olhados. Todas estas, entretanto, são expressões de espiritualidade, cada uma delas associada a uma tradição religiosa. Cada civilização tem seu jeito de sistematizar a experiência espiritual, estruturando as coisas em termos de dogmas, rituais e padrões morais.

O saldo da modernidade é o rompimento com as instituições sociais religiosas e o abandono da pessoa humana à sua própria consciência e à mercê de sua liberdade. Com isso, várias das expressões acima, aquelas coletivas e institucionalizadas, caíram em desuso. Agora, os setores acadêmicos já recomendam que não sejam usadas expressões como sincretismo, fanatismo e tolerância. A expressão “sincretismo” pressupõe algo que resulta da mistura de várias “religiões puras”, sendo que não existe “religião pura”. O termo “fanatismo” denuncia pejorativamente alguém comprometido com uma crença e evidencia certa intolerância, o que não convém a uma sociedade de iguais, livres e autônomos. Já a expressão “tolerância” sugere uma aceitação indiferente da fé alheia, de modo que os teóricos optam por “tolerância ativa”, que se opõe não só à intolerância, como também à indiferença, legitimando como igualmente verdadeira, ou no mínimo o direito de ser considerada igualmente verdadeira, a fé do outro.

Juntamente com a espiritualidade pós-moderna, marcada pela subjetividade individual, livre da tutela das instituições sociais religiosas, surge o mercado religioso, com uma fé privatizada. Isso, em parte, explica a Babel em que vivemos hoje, não apenas no mundo religioso em geral, como também no emaranhado de seitas cristãs, pois onde não há Rei, cada um faz o que é certo aos seus próprios olhos.

Fonte: http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=474

www.sermao.com.br


Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*