A Bíblia como veneno

Autor: Waldo Cesar
Romancista narra magistralmente choque cultural e religioso de família de missionário americano no antigo Congo Belga

Ficção ou realidade? Afirma a autora, na abertura deste fascinante romance de quase 500 páginas, que se trata de “um trabalho de ficção”. Mas os detalhes geográficos e históricos, na voragem dos eventos que marcaram a independência frustrada do então Congo Belga (depois Zaire, hoje República Popular do Congo) “são tão reais quanto me foi possível apresentá-los”. Para o leitor, à medida que vai penetrando na espantosa trama do confronto de uma família americana com a pequena aldeia de Kilanga, tudo se torna absolutamente real. O choque é inevitável: desde a natureza hostil, com animais ferozes rondando o povoado, a caça e seus cheiros e sabores desconhecidos, até a fome e as doenças; e ainda os trajos exóticos (ou a falta deles), os feitiços e dialetos – talvez as únicas formas de certa supremacia dos nativos sobre as invasões brancas. Todo o reverso do conforto e segurança da cidade de origem, na Georgia. A família do missionário batista, porém, sofre mais com a intolerância do pastor do que com a agressão de um mundo sequer imaginado pela esposa e as quatro filhas. O compromisso evangélico, associado à fidelidade conjugal, tem desses sacrifícios, como tem os seus limites; mas prevalecem, sobre “o azar do choque de dois mundos contrários”, e todas as desgraças decorrentes, o coração e as energias de Orleanna Price, mulher extraordinária. Até que. Até que toda a sua bondade e submissão se transformam em desespero e ódio. “Nunca tive mais de cinco minutos ininterruptos de paz”.

A descrição é minuciosa, fruto de quase “trinta anos de espera para atingir a maturidade e o saber necessário para escrever este livro”. Não que o resultado seja a prova de qualquer das duas coisas, diz ela, mas sim o incentivo infindo, a fé incondicional. E o alentado volume só não se torna enfadonho pela originalidade do estilo e as belíssimas imagens. O livro, o oitavo da autora americana, mereceu elogios dos maiores jornais e revistas dos Estados Unidos, favorecido, entre nós, por uma feliz tradução.

A formação original de Barbara Kingsolver em biologia certamente ajudou-a a descrever a realidade física desse outro mundo e a revelar a beleza, por vezes oculta, até na brutalidade de um novo cenário, horror e fascínio convivendo em cada ser humano, nos rios, nas árvores, nos bichos. Incluindo o marido, o reverendo Nathan Price, que as filhas reverentemente chamam de Pai Nosso. Ele não tolera um deslize, uma palavra menos saudável. O castigo menor e mais corriqueiro é copiar muitas vezes o Verso (“Somos castigadas com a Bíblia Sagrada.”), cujo tema, segundo cada pecado, sai pronto dos lábios do pastor, como se ele estivesse folheando a Palavra de Deus. Atrás da voz potente – “mais uma tempestade do que a fala de um homem… como uma serra cortando uma árvore” -, o corpanzil que mal passa por uma porta. Ali está ele, intérprete soberano da vontade de Deus, pronto para salvar as almas pecadoras da família e dos negros africanos. Quanto mais conversões, maior a transformação do país, do continente, do mundo. Não importa que a esposa adoeça, que as enchentes acabem com as estradas e as rústicas moradias; ou que uma longa estiagem traga um rio volumoso de formigas devoradoras, cobrindo os corpos, as ruas, as casas, deixando para trás apenas os ossos dos animais de criação – tudo isto “e o que ainda virá”. Nada abala o reverendo. O castigo é de Deus um “Deus que nada perdoa”. “Como todo mundo sabe, os desígnios de Deus são misteriosos” – registra Adah, na parte que lhe cabe nos capítulos divididos entre a mãe e as filhas. Através desse artifício, a autora retrata a reação de cada uma sobre o mesmo acontecimento; e por vezes como que um pequeno conto emerge de algum episódio extraordinário, capaz de “suscitar espanto e reflexão”, como dizia Walter Benjamin sobre as Historíai de Heródoto. Sofrimento, revolta, medo. Ou a alegria de conhecer ou amar um nativo. Mas Leah não aceita um Deus vingativo: “quem pensar que tudo é castigo pelos próprios pecados há de ficar louco. … Deus não precisa nos castigar”. E assim, cada uma tenta inventar a sua “própria versão da história”.

Não poucas vezes, a narrativa se confunde com a linguagem bíblica. A Bíblia se torna em personagem, tal a sua presença. Mas, através das citações punitivas se “prega o evangelho do veneno”(Adah). O reverendo Price, no seu literalismo, vai envenenando as relações familiares e comunitárias em nome do texto sagrado. Bem que já havia discutido, numa convenção nos Estados Unidos, com máquinas de calcular, o tamanho do céu – pois não está no capítulo 21 do Apocalipse a sua medida em varas? Escreve a mãe: “Misericórdia. Se lida num momento de fraqueza, a Bíblia do Rei Jaime pode nos levar decididamente a nos envenenarmos.” As mulheres, atônitas, discutem o lugar da Bíblia nos seus destinos. Muitos capítulos, dizem, deviam ser jogados fora (mas nem sabem que Lutero também faria o mesmo…). “Mas toda a Bíblia é a palavra de Deus, não é?” (Também não conheciam a diferença sugerida por alguns teólogos entre ser a Bíblia a palavra de Deus ou conter essa palavra…) Conclui uma delas que para entender exatamente o que isto significa, deve-se dar “uma olhada para a Sua Criação, lá fora … porque Deus escreve para nós todo dia, sem a ajuda duvidosa de uma porção de intermediários”. A contestação vai mais longe. Diz Leah: “Há uma grande guerra santa na cabeça de Papai”. Ele treina os sermões, aliás traduzidos por um nativo que também contesta as suas mensagens, caminhando e falando para os lírios do campo – “que entendem tanto o que ele fala quanto a congregação” (Adah).

É final dos anos 50. A África toda está fervendo, buscando sua autonomia. Mas a teologia do reverendo Price não chega à sociedade, não se sente responsável pelas lutas do Congo, a independência em 1960, sob a liderança de Lumumba, e que não vai além de 51 dias. Caos político e econômico, ascensão de Mobutu (com apoio dos Estados Unidos), fuga de brancos, retirada de missionários. O mundo vem abaixo. “Pobre Congo, noiva descalça de homens que lhe roubaram as jóias e lhe prometeram o Céu.” Pobre Orleanna. Até que, afinal, depois de anos de opressão familiar, parte sem o marido e uma das filhas, mortalmente picada por uma cobra venenosa. Como na África de então, “engoliu a música do conquistador, e cantou sua própria canção”.

Realidade ou ficção? Não apenas a apropriação de fatos concretos – um lugar e uma situação determinados – levam a uma leitura na qual o real parece superar a ficção. O dia-a-dia de uma família envolvida no compromisso missionário, numa terra estranha, está associado a inúmeras experiências e fracassos da mesma natureza. Não que assim seja para todas as missões, como não o fora para o polêmico antecessor de Price, que afastado da obra missionária, passa a dedicar-se às necessidades mais prementes da população, num barco pelos rios do Congo, de aldeia em aldeia.

A Bíblia envenenada levanta velhos problemas. Um deles se refere à utilização literal da Bíblia como imposição infalível da palavra escrita (que cânon ou versão?) contra o sentido da revelação presente numa interpretação (hermenêutica) que tome em conta as realidades sociais e culturais de cada tempo e lugar. Outra questão, igualmente enfática no romance, está no encontro (ou desencontro) de culturas, provocado pela história das missões – os riscos, muitas vezes, de levar a outros povos as “boas novas” de um modo de viver de países chamados cristãos. É conhecida a objeção de um nativo africano a missionários estrangeiros: “antes nós tínhamos a terra e vocês a Bíblia; agora possuímos a Bíblia e a terra é de vocês”.

Mas o romance não pretende ser uma tese. Apenas constata, para uma mãe e suas filhas, que as agruras do seu exílio missionário – ou de qualquer outra forma de escravidão – levam a rever a própria existência, o passado tranqüilo, o casamento, a viagem, a passividade diante do absurdo. Todos somos vítimas e filhos da história, disse Günter Grass. Importa, como o faz a autora com maestria, penetrar a fundo nas muitas facetas da experiência humana, expressar literariamente os conflitos de todas as formas de imposição, numa representação dos embates do mundo, dos encontros e desencontros de pessoas, culturas e religiões.

Paul Ricoeur, ao se referir à ficção como o caminho privilegiado da descrição da realidade (Interpretação e ideologias), afirma que o papel da maior parte de nossa literatura é “destruir o mundo”. E então, como faz Barbara Kingsolver com Orleanna, começar tudo de novo: “Pense na planta que cresce em gavinhas da horta que já foi meu coração. Esta é a lápide de que preciso. Caminhe para a luz”.
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Waldo Cesar é jornalista e sociólogo, autor, com Richard Shaull, de Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs (Ed. Vozes/Sinodal)

JORNAL DO BRASIL
CADERNO IDÉIAS – MATÉRIA DE CAPA
22 / 7 / 2000

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