Autor: Luís H. Dreher
1. Na breve comunicação diante de nós, trata-se de seguir um dos fios de uma problemática maior que se tornou destino na modernidade e a persegue, a “questão da morte de Deus”. Com efeito, seria inviável desfiar todos os fios do interior deste novelo só em parte “filosófico”. O mais óbvio deles seria, talvez, o que leva a ressaltar as relações de nossa questão com o tema mais amplo do niilismo, especialmente em seu sentido reativo, não especificamente nietzscheano;1 pois que um niilismo afirmativo já estaria, ele mesmo, como figura plenamente realizada, para além da morte de Deus e no ambiente de seu esquecimento — uma vez garantido, definitivamente, o esquecimento do próprio Deus daquela tradição moral e metafísica em que por muito tempo situou-se o cristianismo.
Mas, deixando de lado uma abordagem direta deste tema aparentado do niilismo, optamos por perseguir o tema mais restrito da “morte de Deus” enquanto tal, numa perspectiva em parte teológica e em parte histórico-filosófica, atentando para os momentos de criatividade e violência hermenêutica presentes no desenrolar-se da problemática. Mesmo então, a questão da morte de Deus não será, enquanto questão, tratada como um resultado, e nesse sentido, como resposta. Antes, trata-se de vê-la como uma realidade em seu movimento, mas como movimento inconcluso e indecidido, ou até indecidível. Pois, como observa mais um leitor de J. Derrida: “Numa dada situação, a confissão da morte de Deus poderia ser parte de uma apologética cristã (Deus mesmo está morto, escreve Hegel), enquanto em outra poderia ser uma forma de ateísmo aberto (Deus está morto, dizem os nietzscheanos).”2 Esta atmosfera de indecidibilidade parece-me útil, provendo ainda espaço para a perspectiva questionadora, esta sim adequada para retomar uma discussão que se tornou tipicamente “moderna”, sem querer esgotá-la. Mas sobretudo sem querer congelá-la como a vitória de um humanismo autocondescendente, que se colocou no centro de um palco aonde deuses não mais acorrerão.
2. Entre os filósofos que figuram de modo mais destacado na tematização da morte de Deus estão Hegel, Nietzsche e Heidegger. Num certo sentido, poder-se-ia incluir também Feuerbach, Stirner e Schopenhauer; mas, como veremos de passagem, no nexo próprio ao esforço hermenêutico que queremos envidar, especialmente Feuerbach aparece no máximo como um elo, só negativamente importante, da questão da “morte de Deus”. Acontece que Feuerbach se assume como pensador de um humanismo que já está mais além da colocação hegeliana de uma dialética entre espírito finito e infinito, dialética captada pelo conceito que supera a razão finita. Ora, esta colocação hegeliana apresentara-se como reinvenção da metafísica após a operação crítica de Kant.
Quanto a Nietzsche e Heidegger, ambos se colocam além do humanismo em geral, muito embora nos dois o discurso sobre o infinito de novo se tenha tornado problemático, e apesar do fato de que nos dois o ser humano, como quer que agora seja reinterpretado, esteja decididamente “a sós” no começo da filosofia, tanto como ser de projeto e expectativa (Heidegger) quanto como ser de promessa, convocado à auto-superação (Nietzsche). De igual modo, em ambos não se superou a definição da filosofia como atividade que implica uma relação necessária com a metafísica, mesmo que nos dois a necessidade desta relação conforme um vínculo mais de ódio que de amor. Neste sentido, talvez neste somente, pode-se dizer que ambos ainda filosofam contra o registro de Hegel mas à sua sombra, ainda que tenham dito “adeus” àquela definitiva formulação da razão metafísica e àquela proximidade penosamente re-conquistada entre infinito e finito, divindade e humanidade.
O texto que servirá de ocasião, mas apenas de ocasião a minhas observações algo esparsas e certamente despretensiosas sobre a “questão da morte de Deus” é da autoria de Heidegger, datado de 1943, e contido na coletânea Holzwege : »Nietzsches Wort Gott ist tot «3 , “A Palavra de Nietzsche: Deus está Morto”. Em 1953, Karl Löwith observou, na parte do livro que contém seu comentário à leitura heideggeriana de Nietzsche: “A força de seu pensamento filosófico [sc. de Heidegger] se liga a um motivo religioso”.4 Já no tocante à estratégia de leitura de Heidegger, Löwith é altamente crítico. Heidegger teria tido dificuldade de “observar o limite tão preciso como um fio de cabelo em que nossa própria apropriação do pensamento de outrem transforma-se no alheamento daquele pensamento”.5 Quanto a isso, é claro que Heidegger reivindica “pensar o mesmo”6 que Nietzsche; mas no geral, seria impossível deixar de observar a “violência” do procedimento interpretativo de Heidegger.7
Quanto a mim, interessa-me anotar e aproveitar as duas observações de Löwith sobre Heidegger, tanto a que enuncia seu “motivo religioso”, quanto a que identifica o aspecto “violento” de suas interpretações particulares e de sua hermenêutica, especialmente quando esta passa, como em Heidegger, a ser determinada pelo interesse no desenvolvimento de uma ontologia fundamental.8 Aproveito as observações de Löwith, no entanto, por razões diversas em cada caso.
No segundo caso, adianto minhas razões: interessa-me aproximar-me da violência interpretativa heideggeriana não como justificada em si mesma, ou condenando-a em termos de exegese inadequada da história da filosofia, mas em duas outras conexões. Primeiro, porque (1) é justamente esta violência interpretativa que permite retomar o “motivo religioso” intrínseco ao discurso teológico-filosófico original sobre a “morte de Deus” na modernidade, um discurso que, por assim dizer, “descarrilou” parcialmente a partir de Hegel e definitivamente a partir de Strauss, Feuerbach e Stirner e Schopenhauer. E segundo, porque (2) a violência interpretativa heideggeriana na verdade não é nova; ela dá seguimento a táticas semelhantes adotadas tanto por Hegel quanto por Nietzsche antes dele. Para usar de uma imagem, caberia dizer que na interpretação da questão da “morte de Deus” ninguém é literalmente inocente, mas todos são cúmplices.
Ainda hoje, existe um certo sentido em que o idioma da “morte de Deus” soa como mitologia fantástica aos ouvidos do senso comum que simplesmente escuta o discurso sobre Deus, e certamente aos ouvidos dos crentes que o ouvem.9 Com efeito: como poderia Deus morrer, o Deus que foi concebido pela tradição como só sob um aspecto relacionado com o tempo, e, neste sentido, só sob um aspecto mutável e sujeito à contingência, da qual o morrer é a suprema intensificação? Em outras palavras: que condições teóricas devem ter preexistido na compreensão de Deus para que se pudesse falar, mais e mais, da morte de Deus?10 Para esclarecer pelo menos parte destas condições teóricas, devemos regressar aos inícios da formulação daquela que Hegel chamou de “a religião da modernidade”, que “repousa sobre o sentimento: Deus mesmo está morto.”11
3. Já em Lutero, que num certo sentido é terminus a quo, ainda que distante, da tradição teológica e filosófico-religiosa conhecida por Hegel e Nietzsche, temos um discurso sobre “a morte de Deus”.12 Contudo, este discurso provém em primeira linha de um exercício hermenêutico sobre as Escrituras mediado pela tradição dogmática, especialmente em suas formulações cristológicas — e simultaneamente trinitárias. Mas a elaboração final do teologúmeno da communicatio idiomatum ou da “comunicação recíproca das propriedades” entre as duas naturezas da única pessoa de Jesus Cristo só veio com os escritos confessionais luteranos13 e com o teólogo do fim do século XVI Martin Chemnitz.14 É através deste teologúmeno da “comunicação ou compartilhamento das propriedades” no Deus encarnado que se pode dar sentido teológico e equivalência entre afirmações paradoxais do tipo “o menino na manjedoura tem o domínio do mundo” e do tipo “Deus mesmo está morto”.
Chemnitz elaborou meticulosamente os gêneros da comunicação, classificando-os em três tipos: o genus idiomaticum, o genus apotelesmaticum e o genus majestaticum sive auchematicum. Conforme o primeiro, podem ser atribuídas em geral, à concretude pessoal de Jesus Cristo, os atributos da natureza humana e divina. Conforme o segundo, sobretudo no que concerne à obra salvífica de Jesus Cristo, pode-se dizer que ambas as naturezas são sujeito dos atos típicos de uma delas apenas. E conforme o terceiro, mais controverso na tradição luterana e disputado pelos reformados (ou calvinistas), a natureza humana de Cristo adquire prerrogativas divinas como onisciência, onipotência, etc., as quais ela oculta ou das quais desiste temporariamente durante sua humilhação, especialmente no itinerário da paixão e morte de cruz.15
Até aqui, estamos inteiramente dentro de uma ortodoxia — mais fiel às Escrituras do que à razão metafísica, é verdade. Ou então, de uma ortodoxia cuja metafísica não tinha como critério a razão autonomamente constituída, mas que era instrumental e articulada “indutivamente” pela leitura da Escritura em sentido gramatical. Assim era, teologicamente ainda, possível falar da morte de Deus na tradição reformatória e luterana, já moderna — ao menos em termos religiosos. A religião dos novos tempos da qual fala Hegel, e que junto com uma série de outros eventos leva à intensificação da experiência da morte de Deus, começa assim: com forte ênfase na obra de Cristo e na hermenêutica bíblica, e com um certo apelo à experiência interior. Mas a tradição dogmática da Igreja permanece sempre gloriosa ao fundo, a Trindade econômica firmemente ancorada na Trindade Imanente, no Deus já relacional fora e antes de todo tempo.16
Assim, sobretudo nos séculos XVI e XVII, a intenção de fundo na teologia da modernidade — e da qual depende, para sua linguagem, a religião de que fala Hegel — não é metafísica em sentido estrito, mas restrito. A intenção é já hermenêutica, apesar de a ortodoxia protestante significar, em certa medida, um retorno à Escolástica. Sinal desta independência diante da metafísica vamos encontrar na segunda fonte do discurso sobre a morte de Deus, que inicia com a hinologia do próprio Lutero, mas vai se desenvolver e chegar ao seu ápice durante o barroco do final do século XVII. Aqui, especialmente na letra de Johann Rist (1607-1667) e na música de Christian Geist (1640-1711),17 no “hino luterano” mais tarde referido por Hegel,18 vê-se que a ambiência da fala de que “Deus mesmo está morto” é, à uma só vez, afetiva e meditativa:
O Traurigkeit,/O Herzeleid!/Ist das nicht zu beklagen?/Gott des Vaters einig Kind/Wird ins Grab getragen.
O große Not!/Gott selbst liegt tot,/Am Kreuz ist er gestorben,/Hat dadurch das Himmelreich/Uns aus Lieb’ erworben.
O selig ist/Zu aller Frist,/Der dieses recht bedenket,/Wie der Herr der Herrlichkeit/Wird ins Grab gesenket!
Ou, numa tradução necessariamente inferior e menos musical:
Ó tristeza, ó aflito coração!/Não é pra ser isto deplorado?/Do Deus Pai o Filho único/ Ao sepulcro é carregado.
Ó desgraça ingente!/O próprio Deus jaz morto,/Na cruz foi que morreu/Mas por isso o reino dos céus/Por amor nos devolveu.
Ó bem-aventurado seja/Em todo tempo/Quem isto bem medita/Como o Senhor da Glória/Assim abaixo, ao sepulcro transita!19
Mais ou menos pressupostos nestes versos, é claro, são sempre o dogma trinitário proclamado pela Igreja, bem como o cristológico na interação das duas naturezas da pessoa de Cristo. Trata-se de uma religiosidade que crê e espera em Deus, mas no Deus que se ausenta por pouco tempo apenas, e que no pudor religioso de levar às suas conseqüências a frase “Deus está morto” acaba substituindo-a por “Deus jaz morto”, a saber, o Deus que “jaz” apenas porque dentro em pouco se levantará de novo na Páscoa.20 Este pudor não é substancialmente diferente daquele expresso, bem mais tarde, no verso de Hölderlin: “Es hindert aber eine Scham/Mich, dir zu vergleichen/Die weltlichen Männer.” Em português, na tradução de Paulo Quintela: “Mas um pudor me impede/de a ti comparar/os homens terrenos.”21
Tal pudor interior, contudo, aos poucos vai perdendo a percepção escrupulosa do aspecto intrinsecamente desmedido de suas próprias palavras. Por fim, produz uma nova atmosfera, na qual, segundo Hegel, seria necessária uma justificação filosófica do discurso religioso e teológico de que “Deus mesmo está morto”. A religião da modernidade precisa justificar-se sem perder sua integridade ou substância teológica, e Hegel se oferece como o defensor. E para Hegel a defesa é necessária em vista de uma outra “religião” da modernidade, paralela à primeira: uma religião filosófica carnalmente relacionada com o pietismo e subjetivismo religiosos, que porém se concretiza nas filosofias da reflexividade, atacadas em Crer e Saber. (Trata-se das filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, mas, lida à uma com esta última, também daquela de Schleiermacher.) Estas apregoam a incognoscibilidade de Deus e sua infinitude vazia, vazia como a da coisa-em-si kantiana. Mas para Hegel, que se autocompreende como o defensor que provê a única justificativa possível da religião e da teologia — uma justificativa filosófica e metafísica –, um Deus do qual nada se pode dizer e conhecer já é um Deus morto. E é desta morte filosófica que propriamente é mister afastar Deus.
Hegel situa-se, assim, entre as duas pontas de um longo acontecimento, entre duas experiências fundamentais: de um lado, a experiência de Deus na interioridade religiosa e meditativa, para quem Deus não pode morrer definitivamente e como um todo, pois disso depende a salvação; e de outro, a experiência de que esta mesma interioridade se emancipa e parece arvorar-se finalmente em juíza e medida de todas as experiências. É a partir daí que se fazem possíveis e filosoficamente necessários, ao menos para um grupo significativo de pensadores ou de pensadores significativos, gestos de extrema violência hermenêutica, que, diante do fracasso da última tentativa de reformulação da metafísica em grande estilo na modernidade, deslancham um processo de transformação no tratamento filosófico da “questão da morte de Deus”.
4. Mas como surgem, de fato, as condições teóricas desta nova atmosfera, no campo interno ao conceito de Deus, e não só ao nível das profundas transformações formais e materiais da filosofia da religião após o ceticismo de Hume e a obra crítica de Kant? Retomando os gêneros da comunicação entre as naturezas da pessoa de Cristo, introduzidos pela jovem ortodoxia luterana, já setores da teologia do século XVII propuseram um gênero a mais, o genus tapeinoticon. Segundo este modo de falar heterodoxo proposto pelos teólogos de Tübingen, algumas propriedades radicalmente humanas, como o sofrimento e finalmente a morte, são realmente comunicadas à natureza divina, ao Logos encarnado na pessoa de Cristo, e não apenas metaforicamente atribuíveis a ela na linguagem.22 Havia que levar o que se entendia ser a lógica da “comunicação da propriedades” até o fim. E essa lógica já implicava que a comunicação não sucedia só verbaliter, mas também realiter. Mas para que o Filho de Deus fosse de fato humano, para que assumisse de fato o que havia de salvar, ele tinha de “esvaziar-se” num processo de kenosis para o qual havia também testemunho bíblico, como no assim chamado “hino cristológico” de Filipenses 2.5-11.23
Estavam assim dadas as condições conceituais iniciais para que não só a segunda pessoa da trindade, mas, dada a “circunsessão” ou “pericórese” entre as pessoas da Trindade, efetivamente Deus mesmo, em sua integridade, pudesse esvaziar-se de fato na humanidade, e não apenas nela ocultar-se. Por um tempo ao menos, na religião dos modernos, Deus já não era imutável; a morte estava em Deus e o afetava todo. A maior parte dos teólogos e da Igreja rejeitou, ao preço de uma certa incoerência sistemática, as conseqüências deste teologúmeno, considerando-o incompatível com o postulado da imutabilidade divina.24 Mas justamente aqui, nesta posição heterodoxa, num momento de crise e aporia da ortodoxia, talvez esteja o início de uma reviravolta na conceptualidade sobre a “morte de Deus”. Uma reviravolta que se anuncia na prosa de Jean Paul, onde num discurso Cristo constata, após a ascensão, que já não há Deus.25 Uma reviravolta que, talvez, terá aberto espaço para um certo retorno ao paganismo germânico originário do qual fala Nietzsche, e segundo o qual “todos os deuses precisam morrer”.26
Mas por que esta posição quenótica heterodoxa, que no fundo nada mais é que uma radicalização da lógica da “comunicação recíproca das propriedades” iniciada na ortodoxia — e de uma lógica e postura nominalista e antimetafísica aplicada aos resultados de uma livre e renovada interpretação das Escrituras –, tem interesse para o nosso tema? A razão é muito simples: porque a teologia, mas também a mística luterana, gestada em boa parte na mesma terra suábia de Hegel, Hölderlin e Schelling, começaram a fornecer os instrumentos para pensar filosoficamente a temporalidade e a transformação radicais no conceito e na essência da divindade. O Deus da metafísica antiga e escolástica era fundamentalmente impassível e imutável. Agora, porém, há um sentido forte em que o divino mesmo pode modificar-se, entrar no tempo de maneira “séria”, até a morte, e, quem sabe, no futuro, sem retorno.
Neste ponto, achamo-nos já no solo da filosofia hegeliana, e de seu discurso apologético da “morte de Deus” como apenas a “morte da morte”.27 A negatividade, a morte em Deus, é “séria”, no dizer de Hegel, mas a despeito desta seriedade não é finalmente trágica, como depois seria em Nietzsche — e muito provavelmente, ainda, em Heidegger. Como a própria razão se reconstitui e expande em Hegel, analogamente Deus se reconstitui a partir de sua morte. Assim, aquela morte não é trágica, sobretudo não no sentido de um acontecer imprevisto e externo. Pelo contrário: a modificação e a própria morte são algo de intrínseco à vida divina como tal, tendo nela sua razão suficiente. De fato, a morte é suprassumida no processo do Espírito de um modo semelhante àquele com que fora anulada pela supremacia do divino na cristologia ortodoxa, apesar da linguagem à uma só vez decididamente metafísico-racional e decididamente processual de Hegel. Assim, a morte é assumida dentro de Deus, mas não Deus esvaído, completamente, dentro da morte.
Mas em que reside, então, a violência hermenêutica operada por Hegel no tocante ao tema moderno da “morte de Deus”? E como o Deus hegeliano, apesar de todos os esforços do filósofo, pôde de certo modo ser entregue à morte, a uma negatividade sem limites e não econômica, sendo finalmente “assassinado”? Inicialmente, pode-se, de modo geral, afirmar que Hegel, apesar de sua deferência à teologia e devoção luteranas, consumou uma tendência iniciada pelo grande místico Jakob Böhme, de não só relativizar a distância entre Trindade imanente e econômica, mas também de integrá-las de tal modo a dar lugar à suspeita de panteísmo. Já para Böhme, segundo Emanuel Hirsch, o “nascimento eterno em Deus leva automaticamente à revelação e à criação”, sendo “a processão do Espírito Santo um movimento interno à unidade da divindade e que mesmo assim a ultrapassa”.28 Com a volta da necessidade metafísica, evita-se a tragédia, mas prejudica-se a liberdade divina. Mais particularmente, Hegel associa a ressurreição, ou a “morte da morte” em Deus a uma metafísica do processo histórico-espiritual, na medida em que a superação da negatividade se dá basicamente na consciência de uma comunidade. Para o filósofo, isso significou a reconciliação final entre Espírito finito e infinito. Porém, de um outro ponto de vista cada vez mais vigente, a justificação hegeliana do cristianismo autorizou o compartilhamento irrestrito dos predicados divinos ao ser humano, à comunidade humana.
Mas com isso chegamos já a Feuerbach. Nele, diferentemente do que ocorre depois em Nietzsche, não se pode a rigor dizer que “Deus morreu”, pois o “sujeito” de quem o ser humano resgata seus “predicados” jamais existiu, tendo sido fruto de uma objetificação, e logo de uma projeção alienante produzida desde uma imanência que, ela sim, é divina. Para Feuerbach, a comunidade do ser humano enquanto “ser genérico” teve sua consciência invertida. Recolocada em seu lugar devido, “Deus”, ou seus atributos ao menos, o conteúdo divino, permanece vigente. Mas aqui, o discurso sobre a morte de Deus perde seu vínculo tanto com a metafísica em sua formulação hegeliana como com a “história espiritual” e salvífica do Deus morto, interpretado na teologia e expresso na piedade modernas. O conteúdo divino reconstrói-se a partir de uma mera positividade, afim àquela mais antiga de Spinoza, só que desta feita psico-antropologicamente fundamentada.
A experiência de Nietzsche, por sua vez, é que a síntese hegeliana não pode levar a negatividade até o fim, o que seria necessário para começar a aniquilar o niilismo reativo. Mas aqui é preciso observar a intervenção de outro elo que qualifica suas respostas: Nietzsche herda necessariamente de Schopenhauer a exacerbação de uma negatividade extrema justamente porque identificada com um elemento cego, irracional. Se Hegel pensava ter preservado por meios filosóficos a intenção teológica do discurso da “morte de Deus”, Nietzsche dá seguimento ao curso criativo da violência hermenêutica noutra direção. Ele diagnostica uma “morte de Deus” sem retorno, diante da qual não existe escapatória nem no ascetismo, na negação absoluta da vontade. Mas mesmo assim, em Nietzsche esta “morte” tem uma faceta salvífica, ainda que noutro nível: o da re-criação de valores. A morte de Deus, que já foi consumada de qualquer modo pela decomposição do Deus da metafísica e pelo assassínio do Deus que garantia os valores morais, dá lugar a uma “metamorfose do divino”, como diz Michel Haar.29 Mas a metamorfose só é possível porque houve um Deus, e houve deuses antes. “Nietzsche”, como já declarava seu amigo e ex-teólogo da Basiléia Franz Overbeck, “disse que Deus está morto, e isto não significa dizer que Deus não existe, isto é, que ele não pode ser, que não é, que não será e jamais foi! Muito pelo contrário: ele foi e existiu! E justamente este é, pelo menos, o ateísmo humanamente possível a todos.”30
Assim, Nietzsche parece realizar um duplo movimento no pensar. Por um lado, assume de Feuerbach, mas também de Max Stirner,31 apenas a conclusão de que uma atividade meramente humana, a partir do “nada” que é o “tudo” da subjetividade, está em jogo. E isto tanto na produção da divindade como na sua aniquilação final, já que, num certo sentido, fomos nós mesmos que “matamos Deus”. Por outro lado, Nietzsche admite uma dependência muito mais forte da metafísica em relação ao mito do que admitia Hegel. Para este último, o conceito do Espírito mostra a validade do mito apenas enquanto o preserva pela superação dialética no conceito. Mas, para Nietzsche, a bancarrota do Deus metafísico (e moral) de fato decorre da bancarrota prévia do mito, desacreditado e enfraquecido pelo predomínio das fraquezas próprias do cristianismo, do humanismo e do historicismo. Neste contexto, há que lembrar que David Friedrich Strauss, alvo dos ataques de Nietzsche na primeira das Considerações Extemporâneas, foi aquele que de fato utilizou a categoria do “mito” em 1835,32 mas num sentido apenas negativo e a partir de um racionalismo historicista. Com isso, perpetrou o primeiro ato de efetiva violência hermenêutica dentro da própria teologia moderna, desvinculando teoricamente a cristologia de sua antiga estrutura trinitária.33
Em Nietzsche, o Deus metafísico, outrora detentor de poder no mundo supra-sensível, sofre uma debilitação e morte simultaneamente ao nível de seu poder de persuasão mítica e convicção metafísica. Trata-se de uma debilitação, decomposição e morte à uma só vez acidental e inevitável, perpetrada pela historicização do mito e pelo descrédito da metafísica no pós-hegelianismo. Contudo, isto tem um quê de trágico e de contingência inexplicável, mas também de ausência benfazeja da desde sempre propalada necessidade metafísica. E não obstante, também aqui, como lá, há expectativa de salvação. Ela é colocada e situada, porém, a partir da contingência da criação sobre-humana de novos mitos34 e da espera ativa pelo ainda por nomear, pelo “deus vindouro”.35
Finalmente, chegamos de fato a Heidegger, e ao seu ensaio “A palavra de Nieztsche: Deus está Morto”. A preocupação de Heidegger neste ensaio é, em grande parte, simplesmente mostrar como Nietzsche permanece no solo da metafísica, apesar de invertê-la em sua inessência e em seu sem-sentido. Heidegger, para tanto, estabelece a conexão fundamental entre um niilismo de longuíssimo curso e a “morte de Deus”, de modo a entender a última como a conseqüência (necessária) do primeiro. O niilismo finalmente mostra seu rosto e se revela na “morte de Deus” na modernidade por já ser ele a essência inelutável de toda metafísica. Heidegger desconhece ou rechaça, assim, a autonomia da conceptualidade teológica na transformação da compreensão e do próprio conceito de Deus. De fato, ele parece implicar que, desde sempre, a metafísica em parte afeta e contamina a própria fé cristã através da teologia, a qual transmuda a fé no cristianismo, um dos alvos preferidos da destruição de Nietzsche.
Ao mesmo tempo, num gesto inesperado e paradoxal, Heidegger desvincula o cristianismo e sua teologia da vida cristã propriamente dita,36 afirmando que a rigor Nietzsche só conhecia o cristianismo teórico e prático da Igreja, definido desde sempre no interior do registro metafísico. Paradoxalmente Heidegger, ao mesmo tempo que reserva algum espaço para uma possível autenticidade da vida cristã fora do predomínio niilista da metafísica, desautoriza também qualquer forma de possível relação do “pensamento” com o âmbito da fé. Kierkegaard é banido de tão seleta companhia.37 Em outra palavras: mesmo a fé pode ainda existir, mas não como uma entre muitas possibilidades num domínio de autêntico “pluralismo”. Pois cada vez mais ela sobrevive, para Heidegger, ameaçada e aquém do domínio epocal da metafísica. Sobrevive, portanto, a duras penas, sem os instrumentos para a travessia da crosta dura que, uma vez atravessada, poderia deixar vislumbrar a diferença ontológica. Ou seja: um grande pensador teria como tarefa, à maneira de Heidegger, pensar os envios do Ser no interior da história da metafísica. Mas a fé autêntica, sempre minoritária e desaparecendo cada vez mais,38 estaria à margem da metafísica, sendo por ela ameaçada. Ora, estando assim à margem da metafísica, a fé não poderia pensar o Ser que do interior da metafísica se revela secretamente.
E mesmo assim, a leitura heideggeriana do texto de Nietzsche tem em comum com o discurso da religião da modernidade um certo deslocamento. Senão vejamos: Heidegger trata rapidamente de afastar a questão da “morte de Deus” da razão metafísica, na qual dita morte se revela, como em Hegel. Também afasta a questão da “morte de Deus” do avesso nietzscheano da metafísica, marcado pelo predomínio da vontade de poder como última e necessária conseqüência da metafísica da subjetividade.
Em que direção, então, é desviada a “morte de Deus”? Como nas origens da religião moderna, também para Heidegger o sentido do enunciado da “morte de Deus” somente pode começar a ser aquilatado a partir de uma atitude meditativa, de uma nova atmosfera, a partir do pensamento noutro rumo e contra “sua adversária mais encarniçada”, a razão.39 O “motivo religioso” da filosofia de Heidegger talvez se expresse aqui; e aqui voltamos, por fim, à primeira observação de Löwith. Pois a linguagem é afetiva, marcada simultaneamente por consternação e espera. A atmosfera ecoa, ainda que de longe, a do hino barroco citado antes, mas agora sem a segurança, simultaneamente pística e ontológica,40 da Páscoa. Quem sabe aqui alguém, ao pronunciar-se a palavra da morte e do assassínio de Deus, talvez mais Heidegger do que Nietzsche,41 grite efetivamente de profundis?42
O ser, que está por trás do nada revelado na metafísica, envia assim o inelutável niilismo da metafísica como produtor da morte de Deus. Mas de que “Deus” se trata aqui? Não é ele apenas o Deus equivalente ao reino do “supra-sensível”, como parecia querer Nietzsche? E não estaria, quiçá, o Deus de uma fé autêntica livre e descontaminado desta morte? Para Heidegger, parece que não, apesar de certa hesitação. Na época do niilismo, só a fé pode ainda ser autêntica, mas não Deus ser verdadeiro, nem mesmo o Deus dos cristãos. Pois este último achar-se-ia, a rigor, antes da experiência do nada, apesar de ser por ela atacado inadvertida e inexoravelmente, como que pela retaguarda. Mas para Heidegger, como para Hegel antes dele, há que passar pelo nada para vislumbrar o seu anverso, ao qual, porém, não se pode chegar dialeticamente. Isto porque o nada está no Ser como a morte está em Deus, é verdade; mas aqui acabam as semelhanças. O nada não parece estar no Ser apenas como um momento, “mas não mais que um momento da Idéia suprema”,43 como queria Hegel. Ele provavelmente permanecerá ainda por um longo tempo, antes de ser entendido na sua essencialidade.
Na famosa entrevista de 1966 à revista Spiegel, publicada apenas após sua morte, Heidegger declarou: “Somente um deus pode salvar-nos”.44 É interessante notar que a conclusão, ao termo permanentemente aberto do longo percurso interpretativo por que passou a questão da “morte de Deus”, soa teológica ao ouvido. No começo da modernidade, Lutero insistiu na necessidade de falar da “morte de Deus” justamente porque, se Deus de algum modo não morreu na cruz, a salvação é vã, e dela não há segurança. O que não é assumido não é salvo, “sem o assumir não há o redimir”, já dizia Irineu.45 Mas para que o ser humano de fato seja salvo, não basta que um homem tenha morrido na cruz; Deus tem de assumir a humanidade e a morte tem de estar em Deus mesmo.
É evidente que Heidegger, a despeito de declarar que “Somente um deus pode salvar-nos”, acha-se há anos luz desta idéia cristã. Para Heidegger como para Hölderlin, não onde há segurança, mas “onde há perigo, cresce também o que salva.”46 E no entanto, mesmo em “A Palavra de Nietzsche: Deus está Morto” há algo de mais permanente por trás da morte de Deus e do Nada, algo que a acarreta e do qual ela é a última expressão: o Ser, o anverso do Nada. O Ser, é preciso dizer mais uma vez, acha-se há anos luz da Trindade imanente dos cristãos. E, como no caso do Espírito hegeliano, há um sentido óbvio em que o Ser não é efetivo sem o tempo ou antes dele. Mas mesmo assim, o mais recente ato de violência hermenêutica na questão da “morte de Deus” parece reconduzir em parte às origens da religião da modernidade e em parte à sua intenção. Na meditação que é o “pensamento”, mas sem a segurança da salvação, descobre-se que um Deus pode ainda proceder para salvar os humanos, só que agora por um novo envio imprevisível do Ser, um envio sem prazo e sem necessidade: sem Páscoa. Enquanto isso, a palavra equívoca da “morte de Deus” permanece indecidível. Permanece questão e objeto de um sem-número de hermenêuticas.
Notas
* Comunicação apresentada no “Encontro de Fenomenologia e Hermenêutica”, organizado pela Linha de Pesquisa “Problemas de Fenomenologia e Hermenêutica” do Mestrado em Filosofia da FFCH-UFBA nos dias 11-13 de dezembro de 2002, em Salvador-BA.
** Estudos de filosofia na UFRGS, na Phillips-Universität Marburg e na Universidade de Chicago. PhD pela Lutheran School of Theology at Chicago, EUA e bolsista do DAAD na Humboldt-Universität zu Berlin; pesquisador do NEPREL (Núcleo de Estudos e Pesquisa da Religião) e professor da Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR-UFJF/Mestrado e Doutorado).
(1) Para uma excelente apresentação dos sentidos do niilismo, especialmente em Nietzsche, cf. Arthur C. DANTO. Nietzsche as Philosopher. New York: MacMillan, 1968.
(2) Kevin HART. Jacques Derrida: The God Effect. In: Philip BLOND. (Ed.) Post-Secular Philosophy : Between Philosophy and Theology, London: Routledge, 1998: “In one situation the confession of God’s death might be part of a Christian apologetics (God himself is dead, wrote Hegel) while in another it might be a forthright atheism (God is dead, say the Nietzscheans)”, p. 259-80, cit. p. 270.
(3) Martin HEIDEGGER. Nietzsches Wort ‘Gott is tot’. In: Holzwege. 6. Aufl. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1980, p. 205-63.
(4) Karl LÖWITH, Martin Heidegger: Denker in dürftiger Zeit. 2. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1960, p. 72.
(5) Ibid., p. 79.
(6) HEIDEGGER, Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 209; LÖWITH, Martin Heidegger, p. 82.
(7) LÖWITH, Martin Heidegger, p. 82, 83 et passim.
(8) Ibid., p. 75.
(9) Evidentemente, o que se faz então com tal “veredito” pode ser muito diferente de caso para caso: ou uma volta ao Deus do teísmo e da metafísica tradicional, no geral imune ao tempo; ou uma desistência de pensar Deus na filosofia, com o que se recai no humanismo enquanto tese também metafísica, desenvolvimento que se vê bem nos séculos XVIII e XIX, e consolidado, já como pressuposição, no positivismo do século XX.
(10) Ou bastaria, noutra perspectiva, pronunciar o veredito do esvaziamento do “mar inteiro” (“Wie vermochten wir, das Meer auszutrinken?”; cf. Nietzsche apud HEIDEGGER, Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 211) a partir da hipertrofia da subjetividade, logo a partir de condições intrínsecas à definição do humano somente, e de sua lida prática com o mundo e sua posição existencial nele?
(11) Georg W. F. HEGEL, Glauben und Wissen, oder die Reflexionsphilosophie der Subjektivität, in der Vollständigkeit ihrer Formen, als Kantische, Jacobische und Fichtesche Philosophie. (=Jenaer Kritische Schriften III). Hamburg: Meiner, 1986, p. 134; cf. a referência ao texto de Hegel em HEIDEGGER, Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 210.
(12) Cf. Martinho LUTERO, Dos concílios e da Igreja. In: Obras Selecionadas, v. 3, São Leopoldo: Sinodal, p. 375: “O que quero dizer é isto: onde não se afirma que Deus morreu por nós, mas somente um homem, estamos perdidos. Quando, porém, a morte de Deus e ‘Deus morreu’ pesam no prato da balança, este baixa e nós subimos, como um prato leve e vazio. No entanto, ele pode também subir novamente e saltar do prato.” O ensino de Lutero foi acolhido posteriormente nos Escritos Confessionais, e a mesma passagem citada na “Declaração Sólida”, de 1577. (Cf. LIVRO DE CONCÓRDIA: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Trad. Arnaldo Schüler. 3. ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1983, p. 643, par. 44.)
(13) Cf. “Declaração Sólida”. In: LIVRO DE CONCÓRDIA: p. 645, par. 55; cf. tb. n. 717.
(14) Para isso e o que se segue, cf. o breve artigo de Notger SLENCZKA, Communicatio idiomatum. In: Hans-Dieter BETZ, Eberhard JÜNGEL. (Hrsg.) Religion in Geschichte und Gegenwart [=RGG4]. 4. Aufl. Tübingen: Mohr/Siebeck, v. 2, col 433-4., 1999.
(15) Devo todo o “resumo” deste parágrafo ao artigo citado na nota anterior.
(16) Isso é verdade mesmo para a tradição luterana, e apesar das virtualidades contidas na linguagem da communicatio idomatum de falar sempre mais “radicalmente” da morte de Deus. Um teólogo sistemático contemporâneo, no geral identificado com o luteranismo como Wolfhart Pannenberg, afirma, em sua interpretação da tradição e em sua revisão crítica de Hegel: “It is incorrect, of course, to speak point-blank of the death of God on the cross, as has been done since the time of Hegel. We can say only of the Son of God that he was ‘crucified, dead, and buried’. To be dogmatically correct, indeed, we have to say the the Son of God, though he suffered and died himself, did so according to his human nature.” (Cf. Wolfhart PANNENBERG, Systematic Theology. Trans. G. W. Bromiley. Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991, v. 1, p. 314.) “On the cross the Son of God certainly died and not just the humanity that he assumed. Nevertheless, the Son suffered death in his human reality and not in respect of his deity.” (Ibid., v. 2, 1994, p. 388.) E: “Hegel did not observe Luther’s rule of the communication of the attributes when he wrote that not the man but the Divine died, beoming man thereby. (…) In view of statements of this kind, I spoke (…) of an inverted monophysitism in Hegel.” (Ibid., p. 389, n. 186.) Mais sobre Hegel e sua leitura da morte de Deus abaixo.
(17) Trata-se de “Es war aber an der Stätte, da er gekreuzigt ward”, mais conhecido pelo verso inicial (“O Traurigkeit, o Herzeleid!”) na letra de Johannes Rist (1641), com composição de Christian Geist em Copenhague por volta de 1685. Uma execução contemporânea encontra-se no álbum De vitae fugacitate: Laments, cantatas and arias, dirigido por Roberto Gini (1992). No álbum encontra-se o seguinte comentário à peça, aqui em espanhol: “El lado lúgubre de la sonoridad violística se encuentra también en la página de Christian Geist, Kapellmeister activo en Suecia y Dinamarca además de su ciudad de nacimiento, Mecklemburgo. Se trata del episodio final de una Pasión, centrado en la deposición y sepultura de Cristo. La parte narrativa, extraída del Evangelio de San Juan, tiene forma de recitativo acompañado, y está seguida de una pequeña aria estrófica que comenta, al modo de las pasiones bachianas, la mezcla del advenimiento y del dolor del alma creyente. El aria, caracterizada por el patetismo de sus pequeños cromatismos descendentes, ha de repetirse ocho veces, tantas como estrofas tiene el texto. Esta indicación ha sido respetada en nuestra grabación, considerando que la reiteración de la súplica representa el auténtico significado de la página: suscitar la piedad de quien escucha siguiendo nuevos caminos de meditación.”
(18) Georg W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Religion. V. 2/2: Die absolute Religion. Hrsg. G. Lasson. Hamburg: Felix Meiner, 1974 [1925], p. 157-8, p. 158, n. 1; cf. Id., Lectures on the Philosophy of Religion: The Lectures of 1827. Trans. and ed. by Peter C. Hodgson et alii. Berkeley: University of California Press, 1988, p. 468, n. 205.
(19) A tradução destas estrofes de n° 1, 2 e 7 é de minha autoria. O texto original encontra-se em anexo ao álbum referido na n. 17: María DÍAZ (Coordenadora da edição de texto), De vitae fugacitate: Laments, cantatas and arias. San Lorenzo de El Escorial [Espanha]: Glossa Music, © 2001.
(20) É de se supor seja esta a intenção, a saber, mitigar o texto original de Johann Rist conhecido e citado ainda por Hegel: “Gott selbst ist tot” (meu grifo; cf. n. 18 acima, especialmente no que se refere à p. 158, n. 1 do v. 2/2 das Vorlesungen über die Philosophie der Religion.) A não ser que se tratasse desde o início de duas versões com igual direito de originalidade, o que parece discutível! Para outra mudança no texto do hino no período após Nietzsche, cf. o artigo de John L. PARKER, A Cunning Theology: German Philosophy and the Origins of Shakespearean Drama: “I visited the seminary in Tübingen where Hegel studied (along with Schelling, Hölderlin, and David Strauss) and took a peek at the current hymnal. Today they still sing Rist’s hymn, but, standing this side of Nietzsche, they have had to cheat on the words. No longer does Gott selbst lie dead, merely Gottes Sohn. Luther’s orthodoxy has become a scandal to the modern ear, and the Nestorian heresy which these words were supposed to counteract has been implicitly restored.” (O artigo está disponível na WWW em http://o: www.avh.de/de/programme/stip_aus/doc/buka/Berichte_99/Parker.doc, e foi acessado em 1/02/2003). A observação de Parker é interessante do ponto de vista histórico, mas talvez não se possa dizer o mesmo de sua “conclusão teológica”.
(21) Cf. o poema “Der Einzige” [Erste Fassung], em Friedrich HÖLDERLIN. Poemas. Ed. Bilíngüe. 2. ed. Coimbra: Atlântida, 1959, p. 358-9.
(22) SLENCZKA. Communicatio idiomatum.
(23) J. L. NEVE. A History of Christian Thought. V. 1: History of Christian Doctrine. Philadelphia: Muhlenberg, 1946, p. 325, refere a kenosis como uma posição básica mantida no luteranismo, embora em diversas versões e gradações. Pois falar apenas de kripsis, de um “esconder-se” do Filho de Deus na sua vida terrena, levaria, assim se supõe, ao perigo inverso do docetismo. A teologia do século XIX influenciada pelo idealismo alemão tentou desenvolver, não sem dar lugar a controvérsias, como na cristologia quenótica de G. Thomasius, as conseqüências do genus tapeinoticon. Cf. p. ex.. Claude WELCH. (Ed., Trans.) God and Incarnation in Mid-Nineteenth Century German Theology: G. Thomasius, I. A. Dorner, A. E. Biedermann. New York: Oxford University Press, 1965, p. 27-8, que coloca o dilema de Thomasius da seguinte forma: “Thus two possibilities remain. Either we give up the communicatio idiomatum in favor of a mere togetherness of divine and human in Christ – but this the Lutheran church has rejected, and rightly so, as a backward step; or we go forward once more, in accord with the inner tendency of the Lutheran Christology, to a deeper and sharper grasp of the concept of kenosis, and accept the idea of a self-limitation of the divine in the incarnation.”
(24) Cf. SLENCZKA. Communicatio idiomatum. A mesma posição de defesa da imutabilidade divina é assumida, contra os quenóticos, por Isaak A. Dorner; cf. PANNENBERG. Systematic Theology, v. 2, 377-8.
(25) Cf. Jean PAUL. Erstes Blumenstück: Rede des todten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei. In: Walter JAESCHKE. (Hrsg.) Religionsphilosophie und spekulative Theologie. Der Streit um die göttlichen Dinge (1799-1812). [Quellenband.] Hamburg: Meiner, 1994, p. 5-8
(26) Cit. apud HEIDEGGER. Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 210; para a reintrodução do tema do paganismo, sobretudo via a obra de Johann W. von Goethe, cf. meu artigo: Luís H. DREHER, As emanações do grande pagão: religião e filosofia a partir de Goethe, Numen, v. 5, n. 1, Juiz de Fora, jan.-jun. 2002, p. 77-98.
(27) HEGEL. Vorlesungen über die Philosophie der Religion. V. 2/2, p. 163. A linguagem da “morte da morte” não é inovação hegeliana, mas achava-se já presente na tradição teológica, inclusive em Lutero.
(28) Cf. a citação completa em Emanuel HIRSCH. Geschichte der neuern evangelischen Theologie im Zusammenhang mit den allgemeinen Bewegungen des europäischen Denkens. Gütersloh: Bertelsmann, v. 2, p. 215: “Zweitens aber erkennt man die Abweichung vom Kirchlichen daran, daß mit der Weisheit, die ein viertes besonderes Moment der einen Gottheit ist, die Gottheit in sich selber über sich hinauszugehn beginnt. Der Prozeß der ewigen Geburt in Gott führt wie von selbst zu Offenbarung und Schõpfung hinüber. Das ‘Ausgehn’ des Heiligen Geistes ist eine Bewegung in der Einheit der Gottheit und doch über sie hinaus. Das sich Erfassen, Gebären und Bilden Gottes ist für Böhme das Geheimnis, aus dem alle Reiche und Gestalten hervorquellen. Für kirchliches Empfinden haben diese Gedanken einen befremdlich pantheistischen Anhauch, und ihre Ausfaltung muß das Befremden noch steigern.” Sobre a influência de Böhme no idealismo alemão, especialmente em Hegel, cf. p. 225: “Sein erstaunlicher Griff, den Ursprung der menschlichen Seele und des menschilichen Geistes aus dem tiefsten göttlichen Wesen und Leben als Voraussetzung aller menschlichen Gottes-erkenntnis und aller menschlichen Gemeinschaft mit Gott zu fassen, — sie alle drei sind Vorwegnahme von Themen und Gesichtspunkten, die mit der Wende vom achtzehnten zum neunzehnten Jahrhundert in der deutschen Philosophie und Theologie mit erschütternder, die alten kirchlichen Denkformen entmächtigender Gewalt aufgegangen sind. Der Respekt des idealistischen Zeitalters vor Böhme hat seine tiefen sachlichen Gründe. Der Satz Böhmes, daß nicht eigentlich wir ein Wissen von Gott haben, sondem Gott in uns von sich selber weiß, indem wir auf Grund seines sich Offenbarens von ihm reden, spricht einen im deutschen Idealismus versuchten Weg, das Denken der neuen Wissenschaft mit einer aus Gottes sich Offenbaren lebenden Religiosität innerlich zu versöhnen, auf eine an Hegel erinnernde Weise aus.”
(29) Michel HAAR. Nietzsche and the Metamorphosis of the Divine. In: Philip BLOND. (Ed.) Post-Secular Philosophy, p. 157-176.
(30) “Nietzsche hat gesagt, Gott ist tot, und das ist etwas anders als Gott ist nicht, das heißt, er kann nicht sein, ist nicht, wird nicht sein und ist nie gewesen! Vielmehr: Er ist gewesen! Und dies ist wenigstens der allen menschenmögliche Atheismus.” (A citação de Overbeck está disponível na WWW em http://ursulahomann.de/NietzscheUndDasChristentum/kap013.html, e foi acessado em 01/02/2003.)
(31) Cf. Franco VOLPI. O niilismo. São Paulo: Loyola, 1999, p. 34-5.
(32) David F. STRAUSS. Das Leben Jesu, kritisch bearbeitet. 2. v. Tübingen: Osiander, 1835-6.
(33) Mimetizando em termos teóricos o que em parte já fazia, com certo pudor, a piedade prática tanto na época do pietismo como do racionalismo. A meu ver, Strauss desiste de modo ainda mais conseqüente do que p. ex. Schleiermacher de uma cristologia metafísica, i. e., trinitariamente, fundamentada.
(34) HAAR. Nietzsche and the Metamorphosis of the Divine, p. 171, fala de um “deslocamento do divino para o sentimento, para a interioridade do ser humano ou sobre-humano”.
(35) Ibid., p. 168. O tema do “deus vindouro”, em todas suas várias facetas, pré-data Nietzsche, sendo já propriedade dos intentos românticos de recriacão da mitologia. Cf. p. ex., Manfred FRANK.Der kommende Gott: Vorlesungen über die neue Mythologie. 1. Teil. Frankfurt: Suhrkamp, 1982.
(36) HEIDEGGER. Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 215-6.
(37) Ibid., p. 245: “Denn Kierkegaard ist kein Denker, sondern ein religiöser Schriftsteller (…)”. Um cristão não pode ser um grande pensador, isto seria já um “mal-entendido”: Heidegger parece implicar que, diante do Deus da fé ninguém pode ser grande, senão Deus mesmo.
(38) Ibid., p. 249: “Christlicher Glaube wird da und dort sein. Aber die in solcher Welt waltende Liebe ist nicht das wirkend-wirksame Prinzip dessen, was jetzt geschieht.”
(39) Ibid., p. 263.
(40) Para uma reflexão sobre a relação possível entre fé/religião e ontologia, cf. meu artigo: Luís H. DREHER. Também a “Ciência da Religião” como Tarefa do Pensamento: A Contribuição de Mircea Eliade, Rhema, v. 7, n. 24, Juiz de Fora, jan.-abr. 2001, p. 69-82.
(41) Esta parece ser a opinião de John PEACOCKE. Heidegger and the Problem of Onto-Theology. In: Philip BLOND. (Ed.) Post-Secular Philosophy, p. 177-94, p. 191.
(42) Ibid. Para a pergunta de Heidegger no tocante ao grito do “Insensato” de Nietzsche: “Procuro Deus, procuro Deus!”, cf. HEIDEGGER. Nietzsches Wort ‘Gott is tot’, p. 263: “Vielleicht hat da ein Denker wirklich de profundis geschrieen?”
(43) HEGEL. Glauben und Wissen, p. 134.
(44) Para este tema, cf. John MACQUARRIE. Heidegger and Christianity: The Hensley Lectures 1993-94. New York: Continuum, 1994, cap. 7.
(45) Cf. o pensamento idêntico de Lutero, citado na “Declaração Sólida”. In: LIVRO DE CONCÓRDIA, p. 642, par. 40: “Pois, se creio que somente a natureza humana sofreu por mim, então Cristo me é um salvador precário, e ele mesmo precisaria, neste caso, de um salvador.”
(46) “Wo aber Gefahr ist, wächst/das Rettende auch.” Cf. o poema “Patmos”, HÖLDERLIN. Poemas, p. 363.
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