A Ciência (des)humana, os Indígenas e as Missões

Autor: Isaac Costa de Souza
Alguns setores da imprensa e da academia brasileira têm repassado ao país uma imagem extremamente distorcida da problemática dos indígenas no Brasil. Nessa projeção, os missionários evangélicos e os próprios indígenas que se converteram são tratados como peste a ser banida.

Este artigo é uma tentativa de demonstrar quão desvinculadas estão a produção acadêmica e a postura ético-humanitária de boa parte dos pesquisadores que atuam nas áreas indígenas.

1. Ética But Not for All

Em tom de crítica lúdica ao conhecimento lingüístico dos missionários evangélicos, dois pesquisadores intitularam um subcapítulo de um libelo seu de Linguistics not for all (Lingüística não para todos).¹ O rótulo “Ética But Not for All” (Ética, mas não para todos) é uma paródia ao título maroto elaborado pelos referidos acadêmicos. Com isso, pretende-se chamar a atenção para o fato de que bem mais grave do que uma possível limitação em lingüística é o estreitamento em questões de ética.

A sobriedade ética de pessoas como os referidos autores é tão minúscula que um antropólogo, por não gostar do chefe de um posto indígena da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), incitava os Araweté a referir-se à esposa dele usando a expressão “boca de cari” (peixe de abertura bucal indiscretamente diminuta).

Um outro estudioso, orientado do referido pesquisador, exteriorizou meninice semelhante quando escreveu: “os missionários da ALEM (emissários do além?)”.² O que parece brincadeira de péssimo gosto revela, na realidade, uma vergonhosa discriminação física e religiosa por parte desses representantes acadêmicos.

Dominique Tilkins Gallois, uma das autoras da expressão marota Linguistics not for all, fez a seguinte acusação: “[…] os funcionários da ADR [Administração Regional, FUNAI], os missionários evangélicos e seus aliados políticos promovem a discórdia entre grupos locais e lideranças.”³

Porém, um indígena do povo supostamente vitimado pela atividade disjuntiva dos missionários (e de outros) denunciou a antropóloga Dominique à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI como a responsável direta pelos cismas internos de sua comunidade: “Nunca vi uma antropóloga dividir um povo indígena. É a primeira vez que isso acontece no Brasil. Povo Waiãpi tá dividido: parente com raiva dos parentes. É muito ruim isso. Só problema mesmo” (Kaubi Waiãpi, CPI-FUNAI, 22/11/99:59).

Diante dos fatos, também em depoimento à CPI da FUNAI, Dominique Tilkins Gallois reconsidera sua acusação de que os missionários eram agentes de discórdias: “Quer dizer, divisões, dissensões, disputas são parte da história e da estrutura do povo Waiãpi […]. Portanto, eu acho que é muito importante considerar que não é a questão das Novas Tribos ou uma e outra que promove uma cisão, uma divisão, uma facção. Estas diferenças existem por história, por natureza, dentro desta e de todas as comunidades indígenas, né?” (CPI-FUNAI, 1/12/99:34).

Ao defender a Missão Novas Tribos do Brasil, a pesquisadora estava, na verdade, tentando se defender. Anteriormente, ela achava que os missionários eram os agentes de divisão; depois percebeu que os indígenas tinham outra opinião: era ela a causadora das dissensões.

A etiqueta lingüística classifica a inverdade (em linguagem mais popular: mentira) de “infração à máxima de qualidade de Grice”, que na verdade é composta de uma super máxima que diz: “Trate de fazer uma contribuição que seja verdadeira”, e de duas máximas mais específicas que falam: (1) “Não diga o que você acredita ser falso” e (2) “Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência adequada”.4 Por mais superficial que seja, um estudo dos escritos político-ideológicos da antropóloga Dominique logo demonstra que ela padece de um problema crônico: infringe com freqüência, intensamente abusiva e estúpida, a máxima de qualidade de Grice.

2. Critérios acadêmicos em uma quase publicação

No final de 1999, uma professora de uma universidade do Norte do Brasil rejeitou a publicação de um artigo técnico de minha autoria em uma revista da instituição da qual faz parte. Sua justificativa em carta aberta, de abril deste ano, foi que eu era missionário. Por inabilidade político-jurídica, registrou ainda em sua missiva: “[…] opinei pela não aceitação de nenhum dos três textos, independente do valor intrínseco deles”.5

Em apoio a essa carta, muitos outros acadêmicos se manifestaram em nome de vários órgãos acadêmicos. Uma professora do Rio de Janeiro, que cursou uma única disciplina comigo em 1984, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), aproveitou o ensejo e afirmou que fui um “mau aluno” e que duvidava de que eu tivesse me tornado um bom lingüista. Outros dois professores imediatamente se utilizaram desse parecer maldoso para indicarem a incompetência científica dos missionários evangélicos em geral.

Na parte inicial de sua carta, um outro professor asseverou: “As atividades dos missionários das igrejas evangélicas são nocivas para os povos indígenas e para toda a humanidade”. No entanto, em manifestação de ambigüidade ideológica própria de alguns segmentos acadêmicos, é ele o primeiro a indicar o caráter preconceituoso da rejeição de meu artigo. Segundo ele, nesse caso houve “limitação da democracia participativa entre intelectuais”. Aí denuncia: “Você abriu o flanco para a acusação de ‘discriminação’”.

3. O símbolo antes de tudo

Anos atrás, o governo brasileiro ameaçou processar um grupo de videomakers que filmou a morte de um indígena sem prestar-lhe assistência médica aparente, em nome de uma reportagem que provasse o descaso do Estado em relação à saúde do aborígene. Com a iminência do processo, a equipe defendeu-se asseverando que (acredite quem quiser) havia prestado socorro longe das câmeras.

Bem antes disso, na região de Altamira, uma antropóloga tentou impedir um médico de ministrar soro antiofídico a um indígena que havia sido picado por uma cobra extremamente peçonhenta. Segundo ela, os silvícolas possuíam ervas apropriadas para o tratamento. Ao perceber que a vítima estava a ponto de expirar, o médico mandou a antropóloga e a antropologia às favas e medicou o paciente à revelia dos argumentos da especialista em ciências humanas. Para arrematar a polêmica, ele asseverou: “Se eu deixar esse indígena morrer em minha presença, sem assisti-lo, serei processado”. Não fosse a firmeza do profissional de saúde, a antropóloga sacrificaria o ser indígena real em favor da simbologia por este vivida e representada.

Na ausência do profissional de saúde, filma-se a morte; na sua presença, tenta-se impedir a sua ação.

4. Pesquisas duvidosas

As pesquisas entre o povo Araweté iniciaram em 1982, por meio de um antropólogo. Depois, pelo menos cinco doutoras em lingüística pesquisaram a língua desse povo. Depois de dez anos de insucesso na escola indígena e sem receber auxílio substancial algum dessas estudiosas, a professora do grupo apelou para o autor deste artigo para ajudá-la a melhorar o programa escolar Araweté. Foi constatado que as pesquisas desenvolvidas não contribuíram em nada para o povo. Assim, em três meses (final de 1999 a março de 2000), com base em nosso próprio estudo, elaboramos um alfabeto e confeccionamos material preliminar de alfabetização no idioma indígena. Os materiais de algumas dessas pesquisadoras, aos quais tivemos acesso, padecem de limitação no básico: registro fonético. Por isso, não poderiam mesmo elaborar um alfabeto funcional para o povo indígena.

Certo pesquisador entre os Arara, povo indígena com o qual trabalho, errou em sua dissertação de mestrado e em sua tese de doutorado quase cem por cento de sua transcrição fonética/fonológica. Esse desastroso equívoco o levou a fazer interpretações etnológicas absurdas da cultura dos Arara: imputou-lhes um etnônimo (nome étnico tradicional) baseado em aves psitacídeas (arara vermelha), quando, na verdade, a autodesignação significa apenas “nós inclusivo”. Além disso, concedeu status de divindade (não cristã) à alma de um Arara morto, refletindo mais uma análise da cultura ocidental do que da cultura indígena. Com base em parônimos (palavras que apresentam quase a mesma grafia e quase a mesma pronúncia, encerrando significados diferentes), propôs uma bebida alcoólica celeste para essa suposta divindade, revelando profunda inabilidade lingüística. Em neologismos inconseqüentes, criou termos para casamento “geral, primário e secundário” nos processos matrimoniais dos Arara, algo que inexiste na cultura dessa comunidade. Ainda, inventou um desbotamento melânico (perda de cor negra) nos felinos reais, com implicações no mundo metafísico: as onças resultantes das almas de mortos teriam sua ferocidade diminuída à proporção que perdessem a coloração escura, passando pela pintada até chegar à parda suçuarana. Imprudentemente, propôs um esquartejamento espiritual de um defunto masculino em três espectros metafísicos (almas), em que um se originaria na cabeça, outro, nas extremidades (mãos e pernas) e outro, nas vísceras (umbigo) — algo não reconhecido por nenhum Arara. Finalmente, estruturou uma morfologia celestial (de carne e pele rodeada por água), também não identificada pelos indígenas.

Fica patente que, antes de qualquer atividade relacionada à questão indígena deste país, os pesquisadores precisam urgentemente rever o que deveria caracterizar seus trabalhos em área indígena: qualidade e ética acadêmica.

Isaac Costa de Souza, mestre em lingüística pela Unicamp, é missionário entre o povo Arara, do Pará, e professor do Curso de Lingüística e Missiologia (CLM) da Associação Lingüística Evangélica Missionária (ALEM), em Brasília. É autor do livro De Todas as Tribos, da Editora Ultimato

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*