Transformação, testemunho e diálogo: reflexões missiológicas a partir de Tillich

Autor: Carlos Eduardo B. Calvani

Toda vez que membros da igreja se encontram com aqueles que estão fora da igreja, são missionários da igreja, voluntária ou involuntariamente. Seu próprio ser é missionário” (Paul Tillich)

A igreja de Cristo nasceu com forte impulso missionário. Tal como Jesus espalhara a mensagem do Reino por onde passava, em palavras e atos libertadores, também era desejo dos apóstolos espalhar a boa mensagem por todos os lugares. A primeira atividade missionária registrada no livro dos Atos acontece já no dia de Pentecostes, quando Pedro prega aos judeus e um grande número de pessoas aceita a Palavra e recebe o santo batismo. A proclamação começa com a interpretação dos escritos judaicos a partir da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Mas a missão continua através de outros atos: o testemunho de vida comunitária (At 2.42-47) que despertava a simpatia das pessoas e as atraía ao convívio da primeira comunidade; a restituição de mobilidade a um coxo na porta do Templo, que motiva outra pregação pública e a primeira prisão dos apóstolos (At 3 e 4) e prossegue nos muitos relatos de “sinais e prodígios” dos apóstolos, sempre visando o bem do povo. O testemunho missionário começa em Jerusalém e derredores, alcança a Samaria (At 8) e, após a conversão de Saulo se espalha até chegar à Europa. A estratégia de Paulo em sua primeira viagem missionária era de anunciar o evangelho a partir das sinagogas e tradições judaicas. Mas logo o apóstolo compreendeu que o evangelho não é apenas para uma etnia ou para um povo privilegiado, mas para toda humanidade e, com a intensificação das perseguições judaicas, passa a anunciar a mensagem libertadora aos não-judeus. O ingresso desses na igreja marcou a primeira grande instabilidade na comunidade dos seguidores de Cristo. Chegou-se a um acordo mais ou menos pacífico no concílio de Jerusalém (Atos 15) onde o testemunho de Pedro foi decisivo (At 15.7-11), evocando, certamente, sua própria admiração com a ação livre de Deus na casa do centurião Cornélio, um romano “piedoso e temente a Deus” (At 10 e 11).
Desde então, a mensagem do evangelho se espalhou pelo mundo de diversas formas, pela coragem, desprendimento, ousadia e dedicação de mulheres e homens. A história das missões narrada pelo bispo Stephen Neill [1] traz inúmeros relatos sobre essa atividade. A era missionária não começou, como querem alguns, com os movimentos reavivalistas e evangelicais do século XIX. Naturalmente, houve diferentes interpretações de missão e, em muitos casos, uma desastrosa simbiose entre a mensagem eterna do evangelho e as formas culturais daqueles que o transmitiam. Hoje em dia, praticamente todas as denominações que compõem a Igreja cristã têm departamentos ou secretarias com orçamento e funcionários dedicados à tarefa missionária. Em alguns casos essa ainda é compreendida como implantação de igrejas num determinado local, onde se colocará a placa da denominação. Há também quem compreenda a missão como um esforço para persuadir pessoas a abandonarem uma determinada igreja e se filiarem a outra, onde supostamente o evangelho é pregado com integridade e os benefícios espirituais e materiais são superiores aos oferecidos pelo outro grupo. Tais questões nos remetem à urgência de refletirmos sobre alguns aspectos da missiologia à luz de alguns desafios e problemas atuais, tais como: a incontornável necessidade de conviver com pessoas de diferentes religiões (ou mesmo com pessoas sem-religião) num mesmo espaço social; a identificação do modo como agem os poderes demoníacos em nosso mundo globalizado e capitalizado e, finalmente, o tipo de testemunho dado pelos cristãos de diferentes igrejas, o que nos remete à questão ecumênica. Esses assuntos não são de competência exclusiva dos missiólogos, mas merecem ser abordados a partir de outras perspectivas. Neste artigo, pretendo apresentar algumas pistas oferecidas por Paul Tillich.
Falecido em 1965, Tillich é mais conhecido no Brasil pela obra Teologia Sistemática. Mas ele também escreveu sobre outros assuntos e de vez em quando fazia inserções na Pastoral. Seus livros de sermões se tornaram best-sellers nos EUA nos anos 60 e alguns de seus artigos sobre cultura, política, educação cristã e missões têm sido redescobertos e relidos nos últimos anos. Ele nunca escreveu uma obra específica sobre missiologia e seria esforço inócuo tentar apresentar a “missiologia de Tillich”. O máximo que podemos fazer é recolher aqui e ali pinceladas sobre o assunto, apresentadas em artigos curtos ou em trechos de palestras sobre diálogo inter-religioso. Selecionei três artigos ainda não traduzidos para o português e desconhecidos da maior parte dos estudantes de missiologia no Brasil que serão analisados cronologicamente, bem como algumas menções sobre o assunto na Teologia Sistemática. Perceberemos nesses textos, uma argumentação por vezes ambígua e paradoxal, oscilando entre a ingenuidade e a lucidez, as convicções de fé pessoais de Tillich e uma grande abertura ao diálogo macro-ecumênico.

Missão como transformação

O primeiro texto é um artigo intitulado “Missions and World History ”, publicado originalmente no jornal “Occasional Bulletin of the Missionary Research Library”, vol. V, n.10, (10 de agosto de 1954) e posteriormente no artigo que estou usando como fonte, que é um dos capítulos do livro editado por Gerald Anderson, com prefácio do bispo Lesslie Newbigin [2] e que contou com a colaboração de alguns dos principais teólogos e biblistas protestantes da época (G. E. Wright, J. Blauw, O. Cullman, K. Barth, H. Lindsell entre outros). Nesse texto, Tillich segue o método da correlação, abordando o tema da missão a partir de sua teologia do Reino de Deus como resposta às questões da história humana. Em linhas gerais, a construção de sua argumentação segue os seguintes passos:
a)      A agência que representa o Reino de Deus na história é a Igreja cristã. Esta, porém, não é o Reino de Deus, mas sua antecipação fragmentária;
b)      O momento no qual o sentido da história tornou-se plenamente manifesto e que é, por isso, o centro da história, foi o aparecimento do Novo Ser em Jesus como o Cristo;
c)      A partir de Cristo, a história é dividida em “antes e depois dele”. Tillich dá a esse detalhe cronológico uma importância teológica: “muitas pessoas, mesmo hoje, ainda vivem antes do evento de Jesus como o Cristo”. Desse modo, o período que antecede a manifestação ou o reconhecimento de Jesus como o Cristo, seja em indivíduos ou culturas, é o período de latência da Igreja: “isso se aplica ao paganismo, judaísmo ou humanismo. Em todos esses grupos e formas de existência humana, a Igreja ainda não está manifesta, mas está presente de forma latente”. [3]

A partir dessa argumentação, Tillich propõe sua definição de missões: “são todas as atividades da Igreja, pelas quais ela age em prol da transformação de si mesma onde quer que ela se encontre em estado de latência, para seu estado manifesto – a recepção do Novo Ser em Jesus como o Cristo”. [4] Essa definição traz algumas implicações, dentre as quais destaca: (a) missão não é simplesmente a tentativa de salvar da condenação eterna o maior número possível de indivíduos dentre as nações do mundo. Essa visão pressupõe separa o indivíduo do grupo social ao qual pertence; (b) missão não é mera função cultural de fertilização das culturas pelo Evangelho; (c) missão também não é a tentativa de unir diferentes religiões, pois isso faria de Cristo algo menos que o centro da história. Missão é, simplesmente, “a tentativa de transformar a Igreja latente – que está presente em todas as religiões mundiais – em algo novo: a Nova Realidade em Jesus como o Cristo. Missão significa Transformação e, por isso é uma função que pertence à Igreja e é o elemento básico de sua vida (…) essa transformação de algo latente em algo manifesto refere-se não apenas a nações e grupos fora da Cristandade, mas também às próprias nações e grupos nominalmente cristãos”. [5]
Tillich não usa a palavra conversion (conversão), mas, “transformation”. Mas o que significa, propriamente, “transformação”? Ele observa que um tema muito discutido no período final do liberalismo clássico foi o do caráter absoluto da religião cristã em relação às demais religiões do mundo. Para muitos teólogos liberais, o cristianismo era parte integrante do mundo ocidental e não deveria interferir no desenvolvimento religioso das culturas orientais. Porém, para Tillich, essa opinião “nega a reivindicação de que Jesus é o Cristo, o portador do Novo Ser. Tal pensamento torna obsoleta tal afirmação, pois aquele que traz o Novo Ser não é uma figura relativa, mas uma figura absoluta e única. O Novo Ser é um, como o Ser-em-si é um”. [6]
Porém, é bom observar que Tillich nunca confunde o Novo Ser, tal como revelado em Cristo, com as expressões históricas e culturais do cristianismo. Ele se recusa a utilizar a expressão “caráter absoluto do Cristianismo”, optando por “universalidade do Cristianismo”, mas reconhece que essa universalidade não pode ser comprovada por argumentos teóricos, pois esses não provam nada – simplesmente reforçam a crença daqueles que já fazem parte do círculo cristão. Isso significa que não é por argumentos teóricos ou mesmo teológicos que se prova a universalidade do cristianismo. Essa prova deve ser pragmática (“It is a pragmatic proof”): “Só a própria atividade missionária pode provar que a Igreja é agente através da qual o Reino de Deus continuamente se atualiza na história”. [7] Isso acontece quando reconhecemos, valorizamos e respeitamos as manifestações religiosas de cada cultura como sinais do estado de latência da Igreja. Tillich reconhece que os símbolos religiosos de todas as culturas revelam um tipo de relacionamento com o Sagrado. É isso que torna possível a missão cristã entre as nações.
Finalmente, Tillich dirige sua atenção para um problema de sua época: o humanismo presente nas sociedades cristãs em suas expressões mais secularizadas. Para ele, todas as críticas humanistas ou seculares que se dirigem contra a Igreja acontecem porque “tudo o que está latente deve tornar-se manifesto, e há, freqüentemente, um forte desejo da parte das pessoas que pertencem à Igreja latente, de se tornarem membros da Igreja manifesta. Isso poderá acontecer, somente se a Igreja manifesta aceitar o criticismo proveniente da Igreja latente”. [8] Isso significa, para ele, que missão é uma via de mão-dupla. Ou seja, não há somente a missão cristã entre não-cristãos, mas também está em curso um processo de transformação da Igreja manifesta por parte daqueles que, tradicionalmente, são alvo da missão promovida pela Cristandade. Em outras palavras, as críticas contra as igrejas cristãs provenientes de religiões não-cristãs, de grupos humanistas ou agnósticos, devem ser levadas em consideração, por serem expressões da “igreja latente”.
Tillich conclui daí, que o que as missões cristãs têm a oferecer não é o cristianismo americanizado, germanizado ou britanizado, mas a mensagem de Jesus como o Cristo, o Novo Ser, pois o centro da história não é o cristianismo nem a Igreja cristã: “O objetivo das missões é proporcionar a mediação de uma realidade que é o critério para toda história humana e não apenas para o judaísmo, o paganismo ou o humanismo. É um critério também contra o cristianismo organizado, pois toda humanidade está sob o julgamento do Novo Ser em Cristo”. [9]
Tillich insere ainda, um último parágrafo, que não estava presente no artigo original de 1954, sobre o que, na época, era denominado “igrejas-novas”, ou seja, grupos cristãos que surgiam à margem das igrejas tradicionais e que hoje conhecemos como igrejas pentecostais, neo-pentecostais, pós-pentecostais ou qualquer outra terminologia. Para Tillich, esses grupos que se organizam de forma livre, criticam a arrogância das igrejas tradicionais e, provam que Jesus é o centro da história: “O fato de que são igrejas novas que desenvolvem sua independência e resistem à identificação do reino de Deus com qualquer forma específica e tradicional de cristianismo, talvez seja o maior triunfo da missão cristã”. [10]
Já observei em outro texto que o uso que Tillich faz das categorias da ontologia aristotélica (“estado latente” e “estado manifesto”) pode suscitar críticas por teólogos tanto de linha conservadora como por teólogos mais liberais por diferentes razões: “Para alguns, tais categorias relativizam a mensagem do Evangelho; outros, por sua vez, dizem que essa definição permanece condicionada ao preconceito que coloca o cristianismo como centro e referencial de plenitude para, a partir daí, julgar as demais religiões como estágios imperfeitos que ainda hão de alcançar aquilo que já alcançamos. É uma crítica que deve ser levada em conta, mas sem nos esquecermos de que, se Cristo deixa de ser nosso centro e referencial, dificilmente poderíamos continuar fazendo teologia cristã”, [11] pois, como afirma o teólogo, Jesus não é uma figura relativa, mas uma figura absoluta e única.
Mas algumas de suas declarações encontraram eco na reflexão missiológica a partir dos anos setenta. Por exemplo, ao afirmar que a “transformação” refere-se não apenas a grupos não-cristãos, mas também às próprias nações e grupos cristãos, Tillich retira das igrejas a pretensão de administrar a Missio Dei ou de ter exclusividade sobre essa. Sendo primeiramente, missão de Deus, ela também se dirige à igreja, pois no contato com o diferente, a Igreja não tem só coisas a transmitir e ensinar, mas também a aprender. Isso aconteceu com a igreja primitiva. Inicialmente restrita aos judeus que aceitavam Jesus, a Igreja posteriormente se universaliza quando entra em contato com os não-judeus. Atos 10 conta que Pedro estava muito reticente quando foi ao encontro de Cornélio. Seus preconceitos eram fortes, mas Deus usou o pagão Cornélio para que o apóstolo – e posteriormente toda igreja – aprendesse o significado da palavra “universalidade”. A Bíblia afirma que o Espírito Santo se manifestou entre os gentios na casa de Cornélio “enquanto Pedro ainda pregava” (At 10.44), o que muito admirou os companheiros do apóstolo. E isso aconteceu antes do batismo de Cornélio. Como era possível? Quando o próprio Pedro relata essa visita no capítulo seguinte, essa mesma surpresa – do agir do Espírito entre os gentios – é reforçada: “Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre eles, como também sobre nós, no princípio… se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos n
o Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At 11.15,17). Em outras palavras, era como se o apóstolo dissesse: “desculpem… não sei como aconteceu… mas o Espírito já estava lá… nem foi preciso que eu pregasse muito”. A partir de então começa um processo gradativo de abertura da comunidade judaico-cristã aos gentios. Ou seja, houve “transformação”, não apenas em Cornélio, mas também em Pedro e na Igreja. Em todo contato missionário, Deus sempre nos precede e está à nossa espera, no outro.
Missão entre a apologética e o diálogo inter-religioso.
 
O segundo texto no qual Tillich tece considerações missiológicas é um pequeno livro que reúne quatro palestras (“Bampton Lectures”) apresentadas em 1961 na Universidade de Columbia em 1962. Não é um texto específico sobre missiologia, mas sobre o relacionamento do cristianismo com outras religiões. Os comentários seguintes são baseados na edição em francês [12] .
O primeiro capítulo, intitulado La situation présente: Les religions, Les quase-religions et leurs affrontements, tem como ponto de partida o conceito específico de religião desenvolvido anteriormente por Tillich, como a condição de estar tomado por uma preocupação última que ofereça resposta à questão do sentido da vida. Essa preocupação comporta uma seriedade incondicional e exige o sacrifício de toda preocupação preliminar. A designação religiosa mais comum para o conteúdo de tal preocupação é o termo “Deus”, seja um Deus ou deuses. A partir daí, ele observa que, em nosso mundo, essa preocupação se expressa em diferentes formas, nas religiões mono ou politeístas, nas religiões “não-teístas” e nas “quase-religiões”. [13] Na sua opinião, o que caracterizava a situação das grandes religiões do mundo em sua época era o fato de terem que conviver e enfrentar as “quase-religiões” como os nacionalismos fascistas e o comunismo que exigiam aceitação incondicional e absoluta de símbolos escatológicos que negam suas próprias ambigüidades e distorções, como o Reino de mil anos do 3o Reich ou a sociedade sem classes, por exemplo: “considero o nacionalismo sob a forma radicalizada de fascismo e o socialismo sob a forma radicalizada de comunismo, como os exemplos mais significativos de movimentos quase-religiosos em nosso tempo”. [14] Deve ser lembrado, porém, que a crítica de Tillich ao comunismo soviético e chinês nunca anulou suas firmes convicções socialistas, declaradas desde sua inserção no movimento do Socialismo Cristão quando ainda morava na Alemanha.
Tillich analisa o desenvolvimento tecnológico e o secularismo como armas principais da ofensiva das “quase-religiões” contra as religiões tradicionais, por sua capacidade de enfraquecer tradições culturais e religiosas e cita, como exemplos, o desenvolvimento técnico-industrial do Japão e o fascismo japonês, referindo-se, naturalmente, à aliança japonesa com a Alemanha e a Itália na 2a guerra mundial e, mais à frente, o surgimento do nacionalismo indiano. Nos anos seguintes, o nacionalismo e o desenvolvimento tecnológico cresceram muito na Índia e no Paquistão. Apesar da pobreza extrema da maior parte da população, Índia e Paquistão fazem parte do restrito grupo de países com arsenal atômico e convivem em estado de permanente tensão política. No caso do secularismo, seu efeito cultural mais visível é a indiferença religiosa. As religiões tradicionais perdem seu vigor e se enfraquecem em uma de suas funções sociais que é dar coesão e unidade ao grupo. A conseqüência desse processo é que as práticas religiosas passam para o âmbito privado, sendo compartilhadas por pequenos grupos. Assim, o caminho fica preparado para as “quase-religiões” que se oferecem para preencher o vazio das tradições religiosas, exaltando a um nível absoluto, valores necessários à auto-estima de todo grupo social, como a idéia de Nação. Ele observa que, na época pré-secular, a idéia de Nação estava unida à de Religião – a coesão social era garantida pela uniformidade religiosa. Nação e religião não se distinguiam, por exemplo, no Império Bizantino, na Igreja Ortodoxa grega e russa, em certas regiões da Alemanha luterana, no xintoísmo, confucionismo, etc, algo que foi separado com o conceito de estado-leigo. Na reforma inglesa, o rei se tornou chefe supremo da Igreja e durante um tempo, somente os anglicanos podiam desfrutar de certos privilégios políticos.
Tillich reconhece que há dois elementos que determinam uma nação: a afirmação de sua natureza e a consciência de sua vocação. Os dois juntos formam o nacionalismo. O perigo é a perversão desse nacionalismo. O nacionalismo deturpado torna-se uma “quase-religião” fascista. Como exemplos, ele cita Grécia, Alemanha, os judeus (a idéia da Aliança), França, China e os EUA com sua idéia de liberdade. Diga-se de passagem, hoje em dia é comum referir-se à “religião civil americana”, fortalecida na era Reagan e atualmente liderada por George Bush. Algo semelhante ocorre com o comunismo – tem raízes religiosas (profetismo e escatologia) que o faz atacar sistemas sacramentais oferecendo propostas éticas e sociais de mudança na história. Todos esses movimentos são ameaças à paz mundial.
Tillich inicia o segundo capítulo (Principes d’un jugement chrétien sur les religions non chrétiennes) com uma afirmação de ordem geral que ele considera fundamental para todas as religiões e grupos sociais: a de que, se um grupo – ou um indivíduo – crê possuir uma verdade, ele recusará por princípio, toda afirmação de uma verdade que se oponha à dele e esse é um direito que não pode ser negado. Portanto, “é natural e inevitável que o cristão proclame a afirmação fundamental do cristianismo de que Jesus é o Cristo e que ele recuse tudo o que contradiga essa doutrina (…) isso significa que o cristianismo, no seu encontro com as outras religiões e com as quase-religiões, deve rejeitar suas afirmações à medida que elas se opõem, implícita ou explicitamente, ao princípio cristão”. [15]
A questão é saber qual a natureza dessa rejeição, se total ou parcial. A rejeição total impossibilita qualquer relação. Na rejeição parcial há mais tolerância, mas continuam a existir pontos intocáveis e a conseqüência é que a relação torna-se geralmente superficial. Ele propõe uma relação de “união dialética de recusa e reconhecimento recíprocos, com todas as tensões, incertezas e flutuações que tal dialética implica”. [16] Para ele, se considerarmos a história do cristianismo como um todo, observaremos uma predominância dessa última posição na atitude cristã em relação às religiões não-cristãs. Essa observação contradiz a opinião geral de que o cristianismo tem uma atitude exclusivamente negativa em relação a outras religiões. Ele busca exemplos dessa atitude já na tradição judaica que afirmava ser Javé superior aos outros deuses porque era o Deus da justiça e na autocrítica profética que ameaçava o povo de Israel por sua injustiça. Isso significa que “o monoteísmo exclusivo da religião profética não é a afirmação do caráter absoluto de um deus particular contra os outros, mas a afirmação do valor universal da justiça (…), um princípio que transcende todas as religiões particulares”. [17] Isso é reafirmado por Jesus em Mateus 25 e na parábola do bom-samaritano.
Na seqüência, Tillich cita o evangelho joanino e o apóstolo Paulo, argumentando que João sublinha mais que os sinóticos o caráter único de Cristo, mas o faz à luz da idéia mais universal de sua época: o Logos. Desse modo, “a pessoa de Jesus é libertada de um particularismo que a teria tornado propriedade de um grupo religioso específico”. [18] Paulo, por sua vez, transcende o legalismo judaico e a libertinagem pagã, incluindo ambos na escravidão do pecado e na necessidade de redenção. Porém, “esta redenção não provém de uma nova relig
ião que seria a religião cristã, mas de um evento da história que julga todas as religiões, inclusive a própria religião cristã”. [19] Esse evento é a manifestação do Novo Ser em Cristo. Da Patrística, Tillich destaca a importância da doutrina do Logos, o Verbo, presente em todas as culturas, preparando-as para sua manifestação definitiva numa pessoa histórica, o Cristo. Essa atitude deu ao cristianismo primitivo uma característica sem precedentes – de não rejeitar absolutamente as demais religiões e, ao mesmo tempo, não aceitá-las sem reservas.
Percorrendo a tradição cristã, Tillich destaca a utilização de conceitos de outras culturas e religiões (especialmente o helenismo) pela teologia cristã e observa que esses conceitos não eram meramente filosóficos, mas também religiosos (physis, hypostasis, ousia, prosopon, Logos, etc). Para ele, o cristianismo primitivo nunca se considerou sob o prisma da exclusividade. Ao contrário, via-se como religião universal, pois a verdade, não importa sua procedência, é cristã. Ele observa que a igreja primitiva moldou suas estruturas litúrgicas a partir de moldes judaicos e das religiões de mistério e organizou-se sob formas jurídicas romanas. A partir daí, propõe traduzir as palavras de Jesus, “sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito”, por “sede universais, como vosso Pai Celeste é universal” e observa, na nota de rodapé, que a palavra “Universal” deve ser entendida como “inclusiva”, ou seja, “que inclui todos e não exclui ninguém”. [20]
É bom observar que, para Tillich, esse universalismo não é sincretismo, pois há um critério último: a afirmação de que Jesus é o Cristo. Ele afirma que, durante séculos, o cristianismo foi universal na Europa e que essa atitude só mudou depois do século XII, quando se intensificaram os conflitos com o Islamismo. A insegurança motivou as cruzadas e o retrocesso posterior, quando o cristianismo fechou-se e fanatizou-se, desenvolvendo um sentimento de medo para com tudo que fosse estranho e passando a encarar com desconfiança tudo que lhe fosse externo. Particularmente, considero essa afirmação bastante discutível, pois muito antes do século XII, as missões cristãs nas ilhas britânicas lutaram fervorosamente para exterminar a religião celta e o mesmo aconteceu em outras regiões.
Mas, em apoio a essa tese, Tillich apresenta uma linha de pensamento que reconhece a existência de uma revelação além dos limites do judaísmo e do cristianismo: Nicolau de Cusa, Erasmo, Zwínglio (que admitia a presença do Espírito além das fronteiras da Igreja cristã), os socinianos que foram os predecessores dos unitarianos e até certo ponto, da teologia protestante liberal, ensinando a existência de uma revelação universal operando em todas as épocas da história, Locke, Hume e Kant, que julgaram o cristianismo à luz do critério da Razão e se serviram do mesmo critério para julgar as demais religiões, o que permitiu o surgimento da filosofia da religião. Cita ainda Schleiermacher e seu mestre, Troeltsch, para quem o cristianismo é a realização de tudo o que há de positivo nas demais religiões. Por outro lado, reconhece que sempre houve também quem enfatizasse o caráter particular e absoluto do cristianismo. Essa linha predominou na teologia de alguns reformadores, na ortodoxia protestante, no pietismo e culminou na neo-ortodoxia de Barth. Embora reconheça que a posição de Barth estava relacionada ao seu confronto com o nazismo, afirma que “o preço que ele (Barth) teve que pagar por essa resistência coroada de sucesso foi a estreiteza teológica e eclesiástica” [21] porque Barth e toda sua escola abandonaram a doutrina clássica do Logos. A conclusão desse capítulo é que ”o cristianismo não pode se contentar em recusar pura e simplesmente as religiões ou quase-religiões com as quais convive. A relação com elas deve ser essencialmente dialética, e isso demonstra, não a fraqueza do cristianismo, mas, ao contrário, sua grandeza”. [22]

A partir dessas premissas, Tillich esboça no capítulo seguinte, um exercício de diálogo entre cristianismo e budismo (Un dialogue entre chrétiens et bouddhistes), servindo-se do método dialético da correlação. Trata-se de um capítulo bastante delicado e até diríamos, ingênuo, pois na verdade, não se trata propriamente de “diálogo”, mas de monólogo, posto que não há um interlocutor budista. Tillich trabalha com “tipos ideais” de cristianismo e budismo. Esses “tipos” são idéias que nos ajudam a compreender e distinguir religiões, mas não existem efetivamente no tempo e no espaço devido às variações particulares de indivíduos e grupos. Ou seja, os tipos não são estáticos, sobretudo num mundo onde há cada vez mais interações culturais e todos os sistemas religiosos acabam se permeando e se influenciando mutuamente. Ele chega até mesmo a estabelecer (sozinho!) os pressupostos para esse “diálogo”, que seriam os seguintes:
a)      Cada participante do diálogo deve reconhecer o valor das convicções religiosas do outro e concordar que, em última análise, ela se fundamenta numa experiência revelatória;
b)      Os participantes devem representar posições essenciais de maneira convicta para que o diálogo seja uma confrontação série, e não algo superficial;
c)      As duas partes devem estar abertas à crítica do outro;
d)      Deve-se manter como pano-de-fundo, a referência contínua ao secularismo e às quase-religiões. Assim, o diálogo ultrapassaria o nível das discussões sobre sutilezas dogmáticas e se aprofundaria em problemas comuns a ambas as religiões à luz da situação mundial.

A partir daí, Tillich inicia reconhecendo que a pergunta à qual todas as religiões e quase-religiões oferecem uma resposta é a do fim inerente a toda existência – o telos. É a partir dessa pergunta e resposta que deve se estabelecer o diálogo, e não a partir da comparação de conceitos divergentes sobre Deus, o ser humano ou a salvação. No cristianismo, o telos é a realização de todas as coisas (ser humano e natureza) no Reino de Deus; no budismo, o telos é a unificação de todas as coisas no Nirvana. São duas expressões simbólicas. Reino de Deus é um símbolo social, político e pessoal, enquanto Nirvana é um símbolo ontológico. Contudo, o diálogo é possível porque as duas representações se fundamentam numa apreciação negativa da existência. O Reino de Deus se estabelece em oposição aos reinos deste mundo e contradiz as estruturas de poder demoníaco que dominam a história e a vida pessoal; o Nirvana opõe ao mundo das aparências, a verdadeira realidade da qual procedem todas as coisas e à qual tudo deve retornar.
Mas apesar dessa base comum, há algumas diferenças essenciais: o cristianismo vê o mundo como criação de Deus e o considera essencialmente bom (ou seja, o julgamento negativo do cristianismo sobre ao mundo refere-se às condições da existência e não à sua essência), enquanto o budismo considera o mundo na ótica da queda ontológica na finitude. As conseqüências dessas duas perspectivas são fundamentais – no Cristianismo, o absoluto é simbolizado a partir de categorias pessoais, enquanto os símbolos budistas são transpessoais; o cristianismo responsabiliza o ser humano pela queda, enquanto no budismo, o ser humano é considerado prisioneiro do movimento circular da vida, que produz cegueira e sofrimento. Ainda assim, Tillich vê amplas possibilidades de diálogo se dermos atenção a certas nuances de cada religião. Por exemplo, na doutrina cristã clássica, o termo “Deus” designa o Último, o Incondicional e o Infinito, que jamais pode ser identificado como um ente condicionado à existência.
O diálogo pode se desenvolver também no plano ontológico, por exemplo: subjacentes às expressões Reino de Deus e Nirvana, encontramos dois princípios ontológicos diferentes, mas não necessariamente antagônicos: “participação” e “identificação”. A escatologia paulina fala da consumação de todas as coisas em Deus, quando Deus for tudo em todos e o símbolo joanino “vida eterna” pode ser entendido como a participação individual na eterna alegria divina, perspectiva semelhante à esperança budista de felicidade eterna além da história. O símbolo cristão fala mais em “participação” (participamos, como indivíduos, do Reino de Deus e, enquanto indivíduos, desfrutamos a felicidade eterna). Já o símbolo budista prioriza a “identificação” de todas as formas de existência no Nirvana.
Esses princípios produzem atitudes diferentes em relação à natureza, à sociedade e à história, mas que convergem em alguns momentos. Com relação à natureza, a tradição judaico-cristã, ao considerar o ser humano “coroa da criação”, favoreceu uma atitude de distanciamento que impulsionou a manipulação da natureza e o desenvolvimento da tecnologia, com conseqüências desastrosas do ponto de vista ecológico. Mas essa mesma tradição cristã dá testemunho de atitudes de identificação do ser humano com a criação, como no caso da mística franciscana e o romantismo alemão. Em termos de ética social, o conceito de “participação” conduz ao ágape (viver, historicamente, a antecipação do amor divino na sociedade), enquanto o conceito de “identificação” conduz à compaixão (“sofrer com”). Em relação à história, onde predomina o símbolo Reino de Deus, a história é compreendida não apenas como o cenário no qual se decide o destino dos indivíduos, mas como o movimento no qual se cria o novo e que se dirige para uma novidade absoluta que é simbolizada pela expressão “novos céus e nova terra”. Ou seja, o Reino de Deus é um símbolo com potencial revolucionário e se o cristianismo tomar esse símbolo com seriedade, manifestará uma vontade revolucionária de transformar radicalmente a sociedade. Para Tillich, “não há nada análogo no budismo. O objetivo do budismo não é transformar a realidade, mas libertar-se dela (…) é impossível derivar da idéia de Nirvana a idéia de criar algo novo na história ou qualquer impulso de transformação da sociedade”. [23]
A meu ver, a leitura desse capítulo serve-nos apenas para compreender um pouco da metodologia teológica de Tillich na análise que faz de uma outra religião tentando identificar pontos de contato com a mensagem cristã. Porém, por mais que tenha se esforçado por estabelecer um diálogo frutífero com o budismo, o capítulo é muito apologético. Não se trata de um diálogo real, pois falta um interlocutor budista para responder a Tillich (e eu, particularmente, desconheço qualquer resposta budista posterior a esse texto). Na verdade, ao invés de “diálogo”, trata-se de um monólogo a partir de seus próprios referenciais, conduzido num tom bastante apologético, visando apresentar ao “tipo-ideal” de budismo que ele conhecia, a superioridade do símbolo cristão do Reino de Deus em relação ao Nirvana.

No quarto capítulo, (Le jugement que le christianisme porte sur lui-même à lumière de sa rencontre avec les grandes religon”) Tillich afirma que, no contato com outras religiões, o cristianismo tem sido julgado e enriquecido e passa a esboçar algumas idéias com o objetivo de identificar de que modo o diálogo inter-religioso pode ajudar o cristianismo a se auto-criticar. Ele relembra alguns pontos já apresentados anteriormente, sobretudo sua convicção de que, o cristianismo, por sua natureza, é aberto a todas as contribuições e essa abertura revela sua grandeza. Ao mesmo tempo, reconhece que há dois fatores que contribuem para limitar essa disposição do cristianismo em acolher críticas externas: a hierarquia das igrejas e as polêmicas doutrinárias, porque essas, ao definir dogmas sempre geram retrocessos, aumentam a disposição para condenar e diminuem a capacidade de aceitar críticas externas uma vez que fecham as portas para o diálogo. Aqui aparece uma consideração missiológica. Conforme Tillich, a maioria dos empreendimentos missionários contribuiu para conduzir o cristianismo a ocupar o lugar de uma religião entre as outras, ao invés de permanecer como um centro de catalisação de elementos positivos das mesmas: “à medida que o cristianismo negligenciou a aplicação do julgamento da cruz de Cristo contra si mesmo, desenvolveu-se como uma religião particular ao lado das outras”. [24]
Na visão de Tillich, se o cristianismo não quer se considerar como uma religião ao lado das outras, deve combater aqueles elementos que lhe caracterizam como uma religião: os mitos e cultos. Ele vê sinais dessa “luta por Deus contra a religião” nos profetas do Antigo Testamento contra o próprio culto judaico e as tendências politeístas da religião nacional. Essa atividade profética “foi uma espécie de ‘desmitologização’ que elevou Deus à categoria de Deus do universo, face aos deuses das nações que são ‘nada’ (…) Deus recusou ser um deus”. [25] Esse processo continuou no Novo Testamento, particularmente na crítica de Jesus contra o Templo e em sua reinterpretação da Lei; na afirmação paulina de que os rituais da lei foram abolidos pela revelação em Cristo e na visão joanina de que a “vida eterna” é aqui e agora e que o juízo se realiza quando acolhemos ou rejeitamos a luz. Tillich interpreta essas afirmações como a mensagem de um “Deus acima de Deus” [26] e identifica a continuidade desse processo na resistência dos pais da Igreja em aceitar qualquer representação de Deus que o fizesse semelhante aos deuses contra os quais lutavam, na convicção dos reformadores de que Deus está presente mesmo nos domínios profanos e no Iluminismo que rejeitou mitos e cultos, ficando apenas com um conceito filosófico de Deus como garantia do imperativo categórico. Tudo indica que aqui o teólogo chega a um impasse, pois em seguida ele mesmo reconhece a impossibilidade de eliminar os mitos e ritos da experiência cristã na história: “não é possível eliminar o mito e o rito, apesar de todas as tentativas de desmitologização e desritualização. Eles ressurgem sempre (…) a luta por Deus contra a religião é travada na situação paradoxal de nos servirmos da religião para combater a própria religião”. [27]
Na conclusão, Tillich observa que a única possibilidade de testemunho cristão junto às religiões não-cristãs é renunciar à estratégia da conversão em prol do diálogo. Esse diálogo poderá se desenvolver a partir de uma ameaça comum a todas as religiões: a insegurança frente ao adiantado processo de secularização e desumanização. Esse diálogo não implica em uma fusão de religiões porque isso destruiria as características peculiares que dão a cada religião seu dinamismo; também não se trata de propor a supremacia de uma religião particular sobre as outras. Tampouco devemos esperar que as religiões morram por si só, pois a questão do sentido último da vida sempre acompanhará os seres humanos. No que se refere ao cristianismo, Tillich rejeita a proposta de abandonar nossa própria tradição religiosa em prol de uma “idéia universal” que não seria mais que uma abstração. O caminho seria outro: o aprofundamento em nossa própria tradição religiosa através da oração, meditação, reflexão e ação, porque “na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância, rompe a particularidade e se eleva a uma liberdade espiritual que lhe dá uma visão da presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”. [28]
Esse talvez seja um dos textos mais ambíguos de Tillich. Ao mesmo tempo em que se esforça de modo sincero por estabelecer um diálogo com outras religiões, ele mesmo não consegue abandonar suas convicções de que o cristianismo representa um tipo superior de atitude religiosa, que se autocritica e que está sempre aberto a se enriquecer de outras influências religiosas. Por outro lado, há instigantes provocações em seu texto que mereceriam melhor consideração, como por exemplo, a afirmação de que o cristianismo é capaz de absorver e reinterpretar influências de outras religiões. De fato, o cristianismo é uma das poucas tradições religiosas capaz de aceitar e incorporar como escritura sagrada de caráter revelatório, o texto de outra religião, no caso o judaísmo. O que nós, cristãos, chamamos “Antigo Testamento” continua a ser a escritura sagrada do judaísmo. O cristianismo relê esse texto à luz da experiência de Jesus Cristo como revelação plena de Deus e o tem como “Palavra de Deus”. Esse processo desenvolveu-se de modo natural na história da Igreja cristã, que usou amplamente o Antigo Testamento até que o próprio cânon cristão estivesse definido. Porém, a canonização dos escritos que hoje compõem o Novo Testamento, infelizmente pôs fim a esse processo, ao mesmo tempo em que excluiu escritos cristãos tão antigos quanto os que hoje fazem parte do Novo Testamento. Seria muito bom se hoje o cânon do Novo Testamento fosse reconsiderado incluindo outros evangelhos e escritos primitivos. Mais desafiante ainda seria compreender que a Palavra de Deus, o seu Logos eterno, não se limita à tradição judaico-cristã. Desse modo, poderíamos aceitar a revelação divina transmitida em textos de outras religiões como o Bhagavad-Gita, Upanishades, etc e aprendermos com eles, pois “Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras” (Hb 1.1).

Missão como representação do Reino de Deus

Cronologicamente, o terceiro texto que nos interessa é o terceiro volume da Teologia Sistemática, publicado em 1963, onde ele trata daquilo que, tradicionalmente chamamos pneumatologia, eclesiologia e escatologia. É na parte II, intitulada “A Presença Espiritual”, que encontramos algumas referências missiológicas. O argumento é construído da seguinte maneira: o Espírito é a resposta às ambigüidades da vida (sejam individuais ou comunitárias). A Presença Espiritual se manifesta no espírito humano, levando ao reconhecimento do Novo Ser em Jesus enquanto o Cristo e cria a Comunidade Espiritual, que vive sob o impacto criativo desse evento central. Essa comunidade é “invisível”, “escondida”, “aberta somente à percepção da fé”, mas apesar disso real, irresistivelmente real (TS: 500). [29] Porém, essa comunidade não é idêntica às igrejas cristãs. Essa Comunidade está latente antes do encontro com a revelação central, e está manifesta depois desse encontro e do reconhecimento do Novo Ser em Jesus enquanto o Cristo. “As igrejas representam a Comunidade Espiritual numa auto-expressão religiosa manifesta, enquanto que os outros representam a Comunidade Espiritual em latência secular” (TS: 502). Esses “outros” são “alianças de jovens, grupos de amizade, movimentos educacionais, artísticos, políticos, e mesmo de forma óbvia, indivíduos, sem qualquer relação visível uns com os outros nos quais é sentido o impacto da Presença Espiritual, embora sejam indiferentes ou hostis às expressões visíveis de religião. Eles não pertencem a uma igreja, mas não estão excluídos da Comunidade Espiritual”. (TS: 502).
Num capítulo anterior, Tillich já tratara da “Presença Espiritual e a antecipação do Novo Ser nas religiões”. Ele retoma agora as mesmas idéias, argumentando em favor de uma Comunidade Espiritual “latente” no povo de Israel, no islamismo, nas comunidades adoradoras dos grandes deuses mitológicos, nos grupos sacerdotais esotéricos, no misticismo clássico da Ásia, etc. O estado é de latência porque “o critério último, a fé e o amor do Cristo ainda não apareceu àqueles grupos… eles são dirigidos inconscientemente ao Cristo, mesmo quando o rejeitam caso ele seja apresentado a eles mediante a pregação e as ações das igrejas cristãs” (TS: 503).
Como se dá o relacionamento entre os membros da Comunidade Espiritual manifesta (os cristãos) e os da Comunidade Espiritual latente? A resposta é dada de modo bastante natural: “Toda vez que membros da igreja se encontram com aqueles que estão fora da igreja, são missionários da igreja, voluntária ou involuntariamente. Seu próprio ser é missionário” (TS: 532). Trata-se aqui, muito mais de testemunho visando a transformação daquela Comunidade Espiritual latente em Comunidade manifesta.
Tillich reconhece, porém, que é difícil para qualquer igreja separar a mensagem cristã da cultura particular dentro da qual é pregada. “Num certo sentido é impossível, porque não existe mensagem cristã abstrata. Ela está sempre incorporada a uma cultura particular” (TS: 553). Em todo caso, há de ser sempre um esforço pautado pelo reconhecimento prévio de todo cristão de que não se dirige aos não-cristãos para levar-lhes algo que não tenham, mas em testemunhar em amor e serviço, o poder do Novo Ser manifesto em Jesus, a fim de que os “cristãos latentes” o reconheçam. É uma posição semelhante à esboçada por Karl Rahner, da “presença de Cristo nas religiões”. Mas não é idêntica, pois o conceito de Rahner mais popularizado foi o de “cristãos anônimos”  – todos que aceitam livremente a oferta da autocomunicação de Deus, mediante a fé, a esperança e a caridade, mesmo que do ponto de vista social  (através do batismo e da filiação à Igreja)  e de sua consciência objetiva  (através de uma fé explícita, nascida da escuta da mensagem cristã) não tenham formalmente assumido o cristianismo. Porém, Tillich aqui evita usar o termo “cristãos latentes” ou mesmo “Igreja latente”, como fizera no primeiro artigo citado. Ou seja, nessa parte da Teologia Sistemática não há uma identificação tão clara e explícita da Comunidade Espiritual manifesta com as igrejas cristãs, mas sim com o reconhecimento do Novo Ser em Jesus enquanto o Cristo, embora na parte V, essa identificação volte a ocorrer parcialmente. Outra diferença está no fato de que, a posição de Rahner foi acusada de comodista por von Balthasar, por esquivar-se da tarefa missionária, enquanto que, para Tillich, trata-se de um elemento imprescindível da Comunidade Espiritual nascida do Pentecostes – “o impulso missionário daqueles que foram tomados pela Presença Espiritual. Era-lhes impossível não passar adiante a mensagem daquilo que lhes tinha acontecido, a todo mundo, porque o Novo Ser se a humanidade como um todo e mesmo o próprio universo não estivessem incluídos nele. À luz do elemento de universalidade no relato de Pentecostes devemos dizer que não existe Comunidade Espiritual sem abertura a todos os indivíduos, grupos e coisas e o impulso de incorporá-los a si” (TS: 501).
Na Teologia Sistemática temos então um movimento que evita centralizar a posse da mensagem salvífica na Igreja. Essa mensagem é o poder do Novo Ser em Cristo, capaz de vencer as ambigüidades da religião, da cultura e da moral e oferecer fragmentariamente (embora de modo real) a vitória sobre as diversas marcas da alienação através da regeneração (participação no Novo Ser), justificação (aceitação por parte Novo Ser) e santificação (transformação pelo Novo Ser). Essas palavras são definidas por Tillich da seguinte maneira: “Regeneração… é o novo estado de coisas, o novo eon, que foi trazido pelo Cristo; o indivíduo ‘entra’nele, e ao fazê-lo, ele próprio participa dele e é renascido mediante essa participação… regeneração e conversão, entendidas nesse sentido, tem pouco coisa em comum com a tentativa de criar reações emocionais apelando ao individuo em sua subjetividade. Regeneração é o estado de haver sido transportado para a nova realidade manifesta em Jesus como o Cristo. As conseqüências subjetivas são fragmentárias e ambíguas e não constituem a base para reivindicar participação no Cristo. Mas a fé que aceita Jesus como o portador do Novo Ser é essa base” (TS: 380). Justificação “significa literalmente, ‘tornar justo’, a saber, tornar o homem aquilo que ele é essencialmente e do qual está separado… é um ato de Deus que não é dependente do homem, um ato pelo qual Ele aceita aquele que é inaceitável… não existe nada no homem que obrigue Deus a aceitá-lo. Mas o homem deve aceitar exatamente isso. Ele deve aceitar que é aceito; ele deve aceitar a aceitação. E a questão é: como é possível isso, apesar da culpa que o torna hostil a Deus? A resposta tradicional é: ‘por causa de Cristo’”. (TS: 381). Santificação, “é o processo no qual o poder do Novo Ser transforma a personalidade e a comunidade, dentro e fora da Igreja” (TS: 382).
Qual seria então a função das igrejas enquanto Comunidades Espirituais manifestas, que reconhecem o poder salvífico de Deus em Cristo e que vivem desse poder? Algumas pistas são dadas na parte V da Teologia Sistemática, seção II.B.1. As igrejas são representantes do Reino de Deus na história. O símbolo “Reino de Deus” é, para Tillich, “o mais importante e o mais difícil do pensamento cristão e um dos mais críticos, tanto para o absolutismo político quanto eclesiástico” (TS: 658). É um símbolo de conotações políticas, sociais (inclui as idéias de paz e justiça), pessoais (confere sentido eterno ao indivíduo com a promessa de participar das bênçãos desse reino) e universais (não é um reino apenas para os seres humanos, mas envolve a realização da vida sob todas as dimensões). As igrejas, para Tillich, são representantes do Reino de Deus na história, apesar de todas as ambigüidades eclesiá
sticas: “A representação do Reino de Deus pelas igrejas é tão ambígua como a incorporação da Comunidade Espiritual nas igrejas”. (TS: 671).
Aqui são necessários alguns esclarecimentos que lançam luzes sobre o relacionamento entre cristãos e não-cristãos. Tillich argumenta que “não existiam igrejas manifestas antes da manifestação central do Novo Ser no evento sobre o qual se baseia a igreja cristã, mas havia e há igreja latente em toda a história, antes e depois desse evento… portanto, se dizemos que as igrejas são forças de vanguarda no impulso em direção à plenitude da história, devemos incluir a igreja latente nesse julgamento. E podemos dizer que o Reino de Deus na história é representado por aqueles grupos e indivíduos em que a igreja latente é efetiva” (TS: 672). Isso significa que, todo movimento missionário cristão em direção a grupos não-cristãos implica na abertura para que também sejamos abençoados pela Presença Espiritual nesses grupos.

Missão como aprofundamento na mística e despertamento da profecia

O quarto texto no qual Tillich nos oferece algumas impressões a respeito do relacionamento do cristianismo com as outras religiões é o último artigo por ele escrito, uma conferência apresentada em 12/10/1965 para um simpósio sobre história das religiões, organizado por Mircea Eliade na Universidade de Chicago. [30] É um texto relativamente curto, no qual Tillich, logo no início, evita duas possíveis abordagens sobre esse tema: a dos teólogos que rejeitam todas as demais religiões, com exceção daquela da qual ele é teólogo (exemplifica citando Barth e Brunner) e a dos teólogos radicais da secularização. Ele usa a expressão “teologia-sem-Deus”, referindo-se, provavelmente, a um movimento que fez certo estardalhaço nos círculos norte-americanos da década de sessenta e que ficou conhecido como “Teologia da morte de Deus”, “Teologia do ateísmo cristão” ou simplesmente “Teologia radical”. Os mais conhecidos representantes desse círculo são Paul van Buren, William Hamilton, Gabriel Vahanian e Thomas Altizer. Há quem associe também Harvey Cox a esse movimento, sobretudo por seu livro The Secular City. Os pressupostos anunciados por Tillich no início da conferência são os seguintes:

1. As experiências revelatórias são universalmente humanas. Existe revelação em todas as religiões porque Deus sempre deu testemunho de si mesmo;
2. O ser humano recebe a revelação no contexto de sua finitude humana. Devido a nossas limitações biológicas, psicológicas e sociológicas, a recepção dessa revelação sempre será distorcida, especialmente se a religião toma a revelação como um meio para atingir um fim e não como um fim em si mesma;
3. Não há experiências revelatórias isoladas na história humana, mas todo um processo revelatório, no qual os limites da adaptação e os erros da distorção estão sujeitos à crítica mística, profética e secular.
4. Pode haver um acontecimento central na história das religiões que uma os resultados positivos das diferentes recepções da revelação. Tal acontecimento possibilitaria uma teologia concreta de significado universal.
5. A história das religiões não se desenvolve dentro da história da cultura, mas em seus subterrâneos, ou em suas profundezas.

Para Tillich, o teólogo que aceita esses pressupostos poderá defender, com seriedade, a importância da história das religiões para a teologia contra os representantes das duas abordagens supracitadas (a barthiana e a da teologia radical), embora possa – e deva! – aceitar a crítica da secularização. O teólogo deve, também, assumir o fato de que a religião, como uma estrutura de símbolos intuitivos e ativos (que implica em mitos e ritos) estará sempre presente na história humana, mesmo nas culturas mais secularizadas, pois o espírito sempre busca corporificar-se, a fim de se manifestar como algo concreto e efetivo. Essa atitude implica em enfrentar com seriedade a ortodoxia exclusivista e o secularismo radical, porque ambos são reducionistas e tendem a eliminar todos os elementos religiosos do cristianismo, com exceção, talvez, da pessoa de Jesus – “o grupo neo-ortodoxo faz de Jesus o único lugar onde se pode ouvir a palavra da revelação; o grupo secular procede do mesmo modo, transformando-o no mais perfeito representante da secularização. Trata-se de uma redução drástica tanto da imagem como da mensagem de Jesus. Esta se limitaria a ser uma corporificação do chamado ético ou de uma função social e, por conseguinte, isso seria a única coisa que restaria da mensagem de Cristo”. [31]
Ao mesmo tempo em que rejeita a visão ortodoxa tradicional de que as religiões não-cristãs são perversões de uma espécie de revelação original, carentes de valor para a teologia cristã por não serem portadoras da revelação ou da salvação, Tillich busca um ponto de equilíbrio entre a valorização positiva da revelação universal e a crítica secular. Ele reconhece a influência positiva em seus tempos de estudante da antiga Escola da História das Religiões, que lhe mostrou como a tradição bíblica foi enriquecida pelas religiões pagas e lhe abriu os olhos para compreender a revelação progressiva na história rumo ao kairos, a plenitude do tempo, com a manifestação de Jesus como o Cristo. Isso lhe abre a brecha para levantar a pergunta sobre a existência de outros kairoi na história das religiões.
Tillich chama sua abordagem de “dinâmico-tipológica”, reconhecendo que “não existe (na história) um desenvolvimento progressivo que evolua de maneira constante, mas há elementos da experiência do Sagrado que sempre estão presentes”. [32] Quando esses elementos predominam numa cultura, criam um estilo religioso particular. Por isso, todas as religiões repousam sobre uma base sacramental: a experiência do Sagrado em seu caráter misterioso.
Mas há também um segundo elemento, presente em muitas religiões, a saber, tendências críticas contra a demonização do sacramental, transformando-o em objetos manipuláveis. O primeiro desses elementos críticos é o místico, ou seja, a recusa a conformar-se com expressões concretas do Último, do Transcendente. Todos os movimentos místicos compreendem as corporificações culturais do Sagrado como secundárias e busca transcendê-las rumo ao mais elevado, ao Último. Outro elemento é o profético que rejeita a sacramentalização por causa de suas conseqüências demoníacas, tais como a negação da justiça em nome da santidade. Mas Tillich reconhece que se o elemento profético suprimir totalmente o sacramental e o místico, se transformará em puro moralismo e secularismo. Por isso, é preciso unir esses três elementos (sacramental, místico e profético) numa religião que não se identifica com nenhuma das religiões particulares, nem mesmo o cristianismo e que ele chama “Religião do Espírito Concreto”.
Apesar da hesitação em identificar essa tal “Religião do Espírito Concreto” com o cristianismo, Tillich refaz o mesmo movimento de avanço-e-retrocesso do texto Le Christianisme et les religions. Dá um grande passo macro-ecumênico e, de repente, retorna ao particularismo cristão: “Atrevo-me a dizer (logicamente, na qualidade de teólogo protestante) que não existe exemplo maior de uma síntese desses três elementos que a doutrina paulina do Espírito. Ali temos os dois elementos fundamentais: a união do extático e do racional. Há êxtase, mas sua expressão máxima é o amor no sentido de ágape. Há êxtase, mas sua outra criação é a gnosis, o conhecimento de Deus”. [33]
Assim, toda história da religião é contemplada a partir daí: uma luta em prol da Religião do Espírito Concreto; uma luta de Deus a partir da religião e contra ela. Como cristãos, vemos a vitória decisiva dessa luta na manifestação de Jesus como o Cristo e em sua vitória na cruz e ressurreição sobre os poderes demoníacos. Esse seria o critério maior do cristianismo – a própria cruz de Cristo: “Aquilo que se produziu ali de maneira simbólica, que nos outorga o critério, também ocorre, de modo fragmentário, em outros lugares, em outros momentos, e continuará acontecendo mesmo quando estes outros lugares não estejam conectados histórica ou empiricamente com a cruz”. [34] A partir dessas pistas, Tillich finaliza sua conferência anunciando seu desejo de reconstruir sua Teologia Sistemática a partir do diálogo inter-religioso e não mais a partir do confronto com os poderes da secularização. Essa era sua esperança quanto ao futuro da teologia.
A “Religião do Espírito Concreto” seria o telos da história das religiões, de características teônomas. É a unidade do que foi descrito como “elementos” na experiência do Sagrado (a base sacramental, o elemento místico e o profético). Embora nessa palestra, Tillich afirme que ela não se confunde com o cristianismo, sabemos que em outra palestra anterior, nunca publicada [35] ele tenha sugerido que o Cristianismo é a única religião que combina esses três elementos.
Sempre é possível aprender algo de Tillich. Nessa que foi sua última palestra, a principal contribuição para os missiólogos está na defesa de que as experiências revelatórias a partir das quais nascem as religiões são universalmente humanas e que é preciso identificar a revelação em todas as religiões porque Deus sempre deu testemunho de si mesmo; a recepção e transmissão cultural dessa revelação, porém, sempre permanecerá distorcida devido às limitações humanas. Resta, então, ao missionário cristão em contato com outras religiões, evitar o confronto teológico e dialogar a partir de dois pólos: o místico e o profético. Ou seja, aprofundar-se na própria mística cristã, a fim de perceber que, no seu conteúdo último, a experiência mística cristã não difere da experiência mística de outra religião e, ao mesmo tempo, identificar e valorizar os elementos proféticos da outra religião.

Pistas para uma reflexão missiológica
 
Nos estudos atuais sobre o relacionamento do cristianismo com outras religiões há, pelo menos três diferentes atitudes que têm sido identificadas como “exclusivismo, inclusivismo e paralelismo”. O exclusivismo se funda sobre um conceito de verdade que reduz a revelação e a salvação de Deus à linguagem e às formas unívocas da tradição cristã. O clássico axioma extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação) traduz muito bem essa posição no campo católico. No campo evangélico, essa posição se expressa na missiologia do Pacto de Lausanne e na perspectiva fundamentalista da escola de missões do Seminário Fuller. A posição inclusivista descobre valores positivos e verdades fora da própria tradição religiosa e procura reduzir as diferenças (J. Daniélou, H. de Lubac, Karl Rahner), mas está constantemente sob o risco de degenerar em hybris, devido à pretensão explícita de ter o privilégio do julgamento final e dos critérios claros de discernimento do que ocorre nas outras religiões. Conforme Panikkar, “a partir do momento em que é só você quem tem o privilégio de uma visão que abarca tudo, e de uma atitude tolerante, é você quem determina o posto que os outros devem assumir no universo”. [36] No paralelismo (Paul Knitter, John Hick, Hans Küng), as religiões correm caminhos paralelos rumo ao mesmo fim (telos) onde todas se encontrarão. O caminho de cada religião deve ser respeitado e não sofrer interferências externas. É uma posição que “evita sincretismos e ecletismos que tentam harmonizar as religiões entre si, ao mesmo tempo em que assume uma posição tolerante e de respeito pela religião do outro”. [37]
A posição de Tillich certamente não é exclusivista e também não chega ao paralelismo, pois ele sempre retorna a Cristo como a manifestação plena do Novo Ser e critério para cristãos e não-cristãos. Talvez prefiram classificá-lo como “inclusivista”. Essa atitude pode ser identificada no segundo texto que analisamos de Tillich, particularmente no capítulo que propõe o diálogo entre cristianismo e budismo. Ali, o teólogo pressupõe conhecer com relativa segurança a teologia budista do Nirvana e, em todas as suas comparações, o símbolo cristão do Reino de Deus sempre prevalece como superior ao símbolo do Nirvana. Sem referir-se especificamente a Tillich ou ao texto em questão, Bartholo afirma: “essa soberba inclusivista é a pretensão do crente ser proprietário de uma verdade plena e absoluta e, portanto, apto a identificar nos outros, mas nunca em si mesmo, apenas verdades parciais e relativas”. [38] Mas é preciso reconhecer que Tillich é coerente com sua convicção de que o poder salvífico de Deus se manifestou plenamente em Jesus como o Cristo. Esse poder, quando reconhecido e aceito pelos seres humanos, causa impactos decisivos na vida pessoal e social, criando a Comunidade Espiritual manifesta, que se tornará, por suas palavras e atos, testemunho e representação do Reino de Deus.
Embora critique o inclusivismo, algumas afirmações de Panikkar podem nos ajudar a compreender melhor Tillich. Panikkar reconhece, por exemplo, que a vivência religiosa está no campo das paixões e adesões pessoais e não das escolhas racionais e, por isso, toda epoché fenomenológica que pretenda colocar “entre parêntesis” a própria fé no momento do diálogo, se revela fonte de erro e falsidade. Para Pannikar, a epoché inclusivista seria “psicologicamente impraticável, fenomenologicamente inapropriada, filosoficamente carente, teologicamente débil e religiosamente estéril” [39] . Isso talvez explique a fragilidade do pretenso “diálogo” cristão-budista esboçado por Tillich.
Que contribuições os missiólogos podem extrair das observações de Tillich e da discussão atual sobre paralelismo, inclusivismo ou exclusivismo?
Recentemente foi publicada no Brasil a obra de um dos mais conhecidos e respeitados missiólogos de nosso tempo, o sul-africano David Bosch [40] . Em muitos pontos, a obra de Bosch aproxima-se da perspectiva tillichiana, sobretudo em sua pressuposto básico de que a fé cristã é uma fé missionária com uma perspectiva intrinsecamente universal e ecumênica. Bosch argumenta que o evangelho é universal, que Deus é missionário e a missio Dei (singular) antecipa, fundamenta e critica as missiones ecclesiae (plural).  Nessa perspectiva, a Igreja perde seu lugar de relevo e passa a um “segundo plano” porque se reconhece como realidade descentrada de si e concentrada no Reino.
As atividades missionárias levadas a cabo pela igreja devem estar submetidas ao propósito maior do reinado de Deus no mundo. Isso significa que é preciso falar primeiro de Reino de Deus e só depois da Igreja, enfatizar o caráter escatológico da missão e o papel provisório da igreja como agente do reino. Na América Latina, a chave hermenêutica para compreender a missão, não é a igreja enquanto instituição, mas o reinado de Deus. A igreja não inicia nem controla a missão de Deus, pois ela é, também, resultado dessa missão. Portanto, a implantação de igrejas em todos os lugares ou o crescimento da denominação numa sociedade, por mais desejável que seja, não é o fim último da missão. O mandato de Jesus é “ide e pregai…” e não “ide e implantai igrejas”.

Outro ponto de contato entre Bosch e Tillich é a defesa de que Deus continua a realizar a nova realidade que foi inaugurada e manifesta na vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus Cristo – o seu reinado de vida, amor, dignidade, justiça e paz. Embora esse reinado pareça oculto, está presente na história como fermento, sal e luz em diversos grupos. A igreja participa na missão de Deus na medida em que busca identificar os sinais atuais do reinado de Deus agora e para sempre. A igreja-em-missão é um sinal da intenção de Deus para a humanidade e a criação, “ela é chamada a encarnar, já no aqui e agora, algo das condições que hão de prevalecer no reinado de Deus”. [41]
Bosch, tal como Tillich, também dá atenção a um paradoxo incontornável na vida da Igreja em sua missão: o de ser, ao mesmo tempo, uma comunidade exclusiva, com senso de pertença a um reino próprio, mas que deve abrir-se ao mundo num movimento inclusivo. Isso conduz ambos a propor a estratégia do testemunho e do diálogo com adeptos de outras religiões. Novamente, Bosch retoma algumas idéias de Tillich, afirmando que, quando nos predispomos ao diálogo missionário, é preciso aceitar de boa vontade e sem relutância a coexistência de crenças diferentes no mesmo espaço social; que todo diálogo autêntico pressupõe compromisso confessional dos dois lados; que os cristãos devem predispor-se ao diálogo não apenas com a tentativa de vencer uma batalha argumentativa, mas de encontrar o Deus que nos precede, que nos espera e que está preparando pessoas para o contato. Nas palavras de Queiruga, “a missão cristã… chega sempre a uma casa já habitada pelo Senhor e o que faz é oferecer seu novo e plenário modo de compreendê-lo como único e comum a todos”. [42]
Mas Bosch e Tillich concordam também que o diálogo não é um substituto nem um subtefúrgio para a missão. [43] A fé cristã não pode deixar de falar do que vimos e ouvimos e do que nos contaram nossos pais. Ela é intrinsecamente missionária, universal e inclusiva, embora não absoluta: “Conhecemos apenas em parte, mas conhecemos. E cremos que a fé que professamos é tanto verdadeira quanto justa e deve ser proclamada. Não o fazemos, todavia, como juízes ou advogados, mas como testemunhas; não como soldados, mas como mensageiros da paz; não como vendedores persuasivos, mas como embaixadores do Senhor Servo”. [44]
Um dos efeitos do fenômeno da globalização foi colocar em contato bastante próximo pessoas de diferentes orientações religiosas numa mesma sociedade. A despeito da supremacia histórica do cristianismo católico no Brasil, as religiões indígenas e africanas nunca foram completamente extintas, mas sobreviveram, em alguns casos com adaptações sincréticas. No século XX o protestantismo que aqui se implantou acompanhava o otimismo do Atlântico-Norte, propondo “a evangelização do mundo nesta geração” e gr

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