Autor: Robinson Cavalcanti
A sexualidade continua a ser o último tabu do cristianismo. Nada do que é humano nos deveria ser estranho (Terêncio). Os cristãos continuam a estranhar a natureza, ou, na visão de Rubem Alves, não querem ouvir “as vozes do corpo”.
Nunca a civilização teve ao seu dispor tanta informação sobre o tema, mas não se avança porque não se lança mão desse material ou porque a apreensão se dá apenas no plano cognitivo e não existencial. A questão parece ser menos de conhecimento e mais de atitude.
No Brasil, os evangélicos conservadores se dividem em dois grupos: a) os que nunca tocam no assunto e vivem a realidade empírica e a repressão; e b) os que patrocinam a divulgação de um só ponto de vista – o moralismo pequeno-burguês de inspiração norte-americana – e censuram qualquer outra opinião. A imaturidade e a insegurança não dão lugar ao pluralismo. O temor dos instintos e sentimentos conduz a normatização do erótico, a um legalismo irracional, anticientífico e patogênico.
Evangélicos mais lúcidos se calam e se acomodam para melhor sobreviver. Outros reproduzem o discurso tradicional para garantir a carreira e a aceitação diante de um rígido e impiedoso controle social. Todos fiscalizam todos e se enquadram mutuamente. O processo é alimentado teologicamente pelas centrais do poder religioso conservador do Primeiro Mundo.
Entre os protestantes liberais o quadro não é mais animador. Também teríamos dois grupos: a) o majoritário, constituído pelos que são “liberais” em tudo e “puritanos” quanto à sexualidade. Em quase nada se diferenciam de seus irmãos fundamentalistas. Liberais na cátedra e reacionários na vida; e b) o minoritário, formado pelos eternos vanguardistas, miméticos das vanguardas do Primeiro Mundo e que optam pela via mais fácil do relativismo.
Com relação à Teologia da Libertação, o reducionismo econômico e político impediu a reflexão e a práxis abrangente que incluísse a libertação do erótico, muito menos a percepção de Reich, em que o erótico libertador é o próprio veículo da libertação sadia, econômica, política e cultural. Nem Marcuse foi levado a sério.
Honrosas exceções protestantes: Maraschin defende uma teologia do corpo; e Rubem Alves denuncia a semelhança reacionária entre o ascetismo religioso e o ascetismo político, que impedem um discurso sobre o prazer.
Mudanças, apesar de nós
Apesar dos seus próprios exageros (reação pendular da História), apesar de João Paulo II e dos televangelistas, do vírus da Aids e do uso político desse vírus, a revolução cultural libertária dos anos de 1960 deixou sua marca entre nós, no nível da sociedade, do Estado, adentrando (assumida ou clandestinamente) nossas igrejas. Essas mudanças, fruto da urbanização, da secularização e da universalização da escolaridade, seriam muito enriquecidas pela contribuição séria e aberta dos cristãos, que, lamentavelmente, se mantiveram defensivos ou agressivos.
A mulher foi-se emancipando, o divórcio foi implementado, as uniões de fato foram reconhecidas como entidades familiares, status único foi atribuído aos filhos, de qualquer relação. No mundo inteiro luta-se contra as discriminações aos comportamentos não-convencionais e afirma-se o direito dos relacionamentos por mútuo consentimento entre adultos. Todo esse processo foi visto com horror pelos poderosos de todos os sistemas que precisam da libido dos oprimidos para mover suas máquinas. São da lógica dos sistemas de poder a cooptação, a domesticação, a banalização e a distorção desse processo revolucionário. Os veículos de difusão massiva fazem as suas partes, e as pastorais familiares cristãs da “direita civilizada” e correntes dos psicoterapeutas cristãos fazem as deles.
Apesar de tudo, cresce em todo o mundo o número dos cristãos comprometidos e responsáveis que não engrossam as fileiras dos vanguardismos irresponsáveis nem o coro dos moralistas ultrapassados, mas que afirmam a contemporaneidade de sua fé presente e agente nos processos de mudança.
Apenas algumas teses
Sem marteladas na igreja de Wittemberg, propomos algumas teses para reflexão.
=> Primeira tese: Todos os seres humanos foram criados por Deus como seres sexuados. A sexualidade não se reduz a genitalidade, mas, necessariamente, a inclui; é parte integral da interação humana, das expressões afetivas, e não se resume à mera reprodução da espécie. Por conseguinte, é parte ineludível da missão docente da igreja a promoção do estudo multidisciplinar e teoricamente plural da sexualidade humana em todas as suas dimensões.
=> Segunda tese: Todos os seres humanos são destinados à realização plena da sexualidade. O celibato somente é legítimo como livre opção a vocação especial, ou em decorrência de limitações impeditivas insuperáveis, físicas ou psíquicas, congênitas ou adquiridas. A defesa dos direitos humanos inclui, necessariamente, o direito natural à realização sexual. Existindo a Lei e os costumes em razão da pessoa humana e não das instituições, devem estas – sociais, estatais ou eclesiais – concorrer para a realização e não para a sua privação, no contexto de cada conjuntura.
=> Terceira tese: A vivência da sexualidade é um fato histórico e cultural, e, por isso, diverso e em constante processo de mudança. A arrogância e o preconceito etnocêntrico têm levado a lamentáveis tentativas de absolutização de padrões de comportamentos de determinadas épocas e lugares, especialmente dos povos hegemônicos. Constitui, ainda, pecado contra as Sagradas Escrituras qualquer tentativa de identificação de modelos históricos com o modelo edênico da Ordem da Criação.
=> Quarta tese: Almejando a felicidade humana e considerando a negatividade da presença do pecado em todos os seres, as Sagradas Escrituras, na linguagem e nos contextos em que foram escritas, estabelecem normas restritivas ao comportamento sexual. Os chamados “pecadores sexuais”, contudo, nunca receberam status especial. A ação do Espírito Santo – de culpa e de graça – inspira a ação pastoral de apoio e não a ação policial de expurgos. A missão terapêutica da igreja não passa pela promoção de neuroses.
=> Quinta tese: O matrimônio, união voluntária de afetos, aspirações e projetos com ânimo de permanência, entre os que confessam Jesus Cristo como Senhor, constitui, com todas as limitações, o paradigma máximo para a expressão da sexualidade. Os ritos, procedimentos e documentos, apesar de importantes, não são o núcleo do casamento, e sua ausência não o descaracteriza.
=> Sexta tese: Há uniões feitas por Deus, pelos próprios homens e pelo demônio. Por melhores que sejam as intenções dos cônjuges, seus defeitos, patologias e fragilidades poderão resultar em fracasso matrimonial. A ação pastoral visa a manutenção e a restauração das uniões, mas antes de impedir ou condenar o divórcio, a ação pastoral deve acompanhar as transições visando o amadurecimento dos cristãos que optarem por novas uniões.
=> Sétima tese: Amplo consenso histórico da Igreja tem legitimado a exclusividade das uniões heteroeróticas. As causas do homoerotismo e as possibilidades de reversão às orientações heteroeróticas, por terapia ou milagre, são ainda alvo de controvérsias. A reafirmação do padrão heteroerótico não pode significar preconceito, discriminação, agressão ou marginalização dos homossexuais.
=> Oitava tese: Os estudos mais aprofundados e mais honestos da História, da Antropologia e das Sagradas Escrituras têm diferenciado adultério de poligamia. A identificação dos dois conceitos tem sido uma necessidade dos sistemas religiosos e morais para a sua própria manutenção. Para a maioria dos reformadores do século XVI, pode-se discutir a conveniência ou não dos matrimônios poligâmicos, mas não a sua licitude, especialmente em certas circunstâncias históricas e atuais, como o desequilíbrio demográfico.
=> Nona tese: Todos os valores cristãos são de igual importância, mas nem sempre se podem vivenciar todos ao mesmo tempo, exercitando-se as opções possíveis. A doutrina do “esfriamento erótico”, a liberação para as monogamias mistas ou a tolerância para a poligamia entre domésticos da fé têm sido as alternativas conjunturalmente possíveis na impossibilidade da vivência simultânea dos padrões ideais por parte de todas as pessoas. Conquanto o “esfriamento erótico” tenha sido a opção dos mais conservadores e os casamentos mistos a opção dos mais liberais, a poligamia entre os da família da fé seria dentre essas imperfeições (padrões possíveis aquém do ideal) a alternativa menos danosa, e que merecem despreconceituosa reelaboração nos planos teológico e pastoral.
=> Décima tese: Na construção e reconstrução dos costumes – dinâmica e plural – devem os cristãos, preferencialmente, optar por ações conjuntas e transparentes.
A clandestinidade, contudo, pode se constituir, muitas vezes, no único caminho possível para os pioneiros, os inovadores e os dissidentes, diante da rigidez da repressão e do desrespeito à privacidade de parte dos sistemas, inclusive os religiosos. O preço da busca da felicidade e da sanidade e da democratização da libido que transforma a História podem requerer, em nossos dias, a silenciosa via das catacumbas.
REVISTA INCLUSIVIDADE – CEA – Ano I – n.º02
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