Quem é o meu próximo?

Autor: Josivaldo de França Pereira

Esta é uma daquelas perguntas normalmente respondidas com um enfático “todo mundo!”. Conquanto seja verdade que todos devem ser considerados próximos, que você é o meu próximo e eu o seu, é importante atentarmos para o significado preciso e específico da palavra “próximo”, sobretudo quando ensinado por Jesus em Lucas 10. O perigo em nossas generalizações é que muitas vezes o “todo mundo” acaba sendo “ninguém”. “Todo mundo” é tanta gente que muitas vezes achamos mais cômodo transferir esta responsabilidade para todo mundo, de modo que, no caso específico de quem é o meu próximo você e eu ficamos longe e alienados dele.

Na passagem bíblica de Lucas 10.25-37 Jesus nos ensina, com aquela maestria que lhe é peculiar, quem verdadeiramente é o meu, o seu, o nosso próximo. Diz o texto bíblico:

 

25 E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

26 Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas?

27 A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.

28 Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás.

29 Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?

30 Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto.

31 Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo.

32 Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo.

33 Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele.

34 E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.

35 No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar.

36 Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?

37 Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.

 

O intérprete da lei seria poupado de  constrangimentos se ficasse com o elogio e o mandamento de Jesus no verso 28: “Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás”. Mas aquele homem já “se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova”. Esse foi o seu primeiro erro. Aproximou-se de Jesus com má intenção, como se o Mestre não soubesse o que é a natureza humana. Jesus conhece as intenções dos corações. Diversas vezes mostrou conhecer o que se passava no interior da mente e do coração dos homens.

O segundo erro do intérprete da lei foi querer se justificar. Ele queria fazer média com Jesus e se gabar diante dos que ali estavam, desejando mostrar que era uma boa pessoa. Afinal de contas Jesus o elogiou pelas respostas acerca do amor a Deus e ao próximo. Contudo, perdeu a oportunidade de ficar calado. Era só praticar o que ele mesmo disse no verso 27.

Não devemos nos esquecer que Jesus não estava diante de uma pessoa que queria aprender. Todo aquele que vinha até Jesus para aprender de verdade, era ensinado por Ele com ternura e paciência (cf. Mc 12.28-34). Mas os arrogantes saiam sempre escorraçados. O Mestre era implacável com esse tipo de gente.

O que segue a partir do versículo 30 é, antes de tudo, um verdadeiro desmanche de paradigmas. Fico impressionado como Jesus quebrava os paradigmas de seu tempo. Fossem esses religiosos, sociais ou culturais. Lembremos das coisas que Ele fazia no dia de sábado, e a revolta que provocava nos religiosos de seu tempo. Como recebia os publicanos, meretrizes,  pecadores e marginalizados em geral, e como Ele era criticado pela sociedade e igreja da época. Valorizou as mulheres andando com elas e salvando suas vidas. Evangelizou uma samaritana; depois muitos samaritanos. De modo que, fazer de um samaritano o personagem principal de uma história, o mocinho do filme, era para o judeu um tapa na cara. Creio que se Jesus viesse ao mundo hoje, Ele deixaria muitos pastores e líderes eclesiásticos de cabelo em pé também. Fossem eles conservadores, carismáticos, tradicionais ou neopentecostais. Em algumas igrejas Ele não serviria como pastor. “Sabe como é, aquela ordem litúrgica dEle. A igreja tem reclamado muito. Conversamos com Ele para mudar e fazer algo diferente. Pedimos que Ele atendesse mais a igreja local (afinal Ele é pago pra isso) e não ficasse saindo tanto para pregar, ensinar e curar quem não fosse da igreja. Mas infelizmente Ele não quis nos ouvir. Por isso, achamos por bem mudar de pastor. Jesus não serve para a nossa igreja”. Por mais paradoxal que pareça ser, algumas das igrejas que dizem adorar ao Senhor Jesus não O teriam, pelo menos não por muito tempo, como pastor delas. E quem viesse após Ele, no mesmo espírito, também não serviria. Nos tempos do Novo Testamento não foi diferente. Disse Jesus: “Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo, como o seu senhor. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?” (Mt 10.25). E ainda: “Tenho-vos dito estas cousas para que não vos escandalizeis. Eles vos expulsarão das sinagogas; mas vem a hora em que todo o que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus. Isto farão porque não conhecem o Pai, nem a mim” (Jo 16.1-3). As maiores perseguições da história da humanidade foram feitas em nome da religião, da Igreja.

O intérprete da lei era um religioso cheio de preconceitos e rancores. Ouvir que um sacerdote e um levita não socorreram um homem espancado por salteadores, e quem praticou a boa ação foi um samaritano, era revoltante. A revolta não estava no fato do sacerdote e o levita não ajudarem, e sim, porque um samaritano, que deveria passar de largo como os outros dois, foi quem ajudou o pobre moribundo. É impressionante como nós nos acostumamos com a miséria do mundo, a ponto de tudo parecer tão normal. Afinal de contas, violência, morte, seqüestros, etc., acontecem todos os dias, não é mesmo? Estamos acostumados. Como já nos acostumamos passar de largo quando vemos o pobre do nosso próximo morrer de inanição e maus tratos. O tapa na cara da igreja evangélica é quando espíritas, católicos e outras entidades fazem o que nós deveríamos fazer. Ai de nós se a salvação fosse pelas obras! Mas a fé sem obras é morta, não é mesmo? É possível justificar nossa salvação sem que seja evidenciada pelas boas obras? Acredito que não.

Não foi fácil para o intérprete da lei ouvir que sua religiosidade não servia para nada. A religiosidade não muda o coração. O moralismo não transforma o caráter e as atitudes. Só o amor constrói. E se eu não entender que o meu amor a Deus, sobre todas as coisas, só passa a ser uma confissão verdadeira quando eu a reflito no meu amor ao próximo, como amo a mim mesmo, então eu ainda não sei o que é amar de verdade. Quer seja no amor a Deus; quer seja no amor ao próximo.

Mas quem é o meu próximo? Era o que o intérprete da lei queria saber. É interessante a maneira de Jesus conduzir o diálogo. Ele toma conta da situação e “hipnotiza” o intérprete da lei, de modo que, ao terminar a história com a pergunta “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?”, o intérprete é curto e grosso: “O que usou de misericórdia para com ele”. Resposta correta; porém, não percamos de vista que o intérprete da lei “se levantou”, lá no começo do diálogo, “com o intuito de pôr Jesus à prova”. Ele não estava bem intencionado. O que significa dizer que a sua pergunta “Quem é o meu próximo?”, não era fruto de um coração sedento pela verdade. “Querendo justificar-se” é que ele fez aquela pergunta. Além disso, sua resposta final, como veremos daqui há pouco, também não expressaria a verdade de alguém que creu em seu coração. Portanto, em que sentido o intérprete da lei queria se justificar quando perguntou a Jesus: “Quem é o meu próximo?”. Certamente, o que ele desejava ouvir era mais ou menos a explanação de um tema assim: “O que você deve esperar do seu próximo”. Aquele homem não estava interessado em saber o que ele devia fazer para o próximo, mas o que o próximo deveria fazer por ele. E mais, quem seria esse próximo? Naturalmente um samaritano estava fora de cogitação. Um judeu preferia morrer na estrada do que ser ajudado por um samaritano. Às vezes somos apanhados de surpresa por Deus. Jesus Cristo fez isso com o intérprete da lei e em várias outras ocasiões. Até hoje precisamos, ou achamos que precisamos, de uma força descomunal para cumprirmos mandamentos dEle como amar o inimigo, orar pelos que nos perseguem, abençoar os que nos amaldiçoam, reconciliarmo-nos com quem nos prejudicou, pagar o mal com o bem, e etc. Ser discípulo de Cristo de verdade é seguir os passos do Mestre, imitando Seu exemplo.

É impressionante a má vontade do intérprete da lei ao responder a pergunta de Jesus: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da lei: O que usou de misericórdia para com ele”. O preconceito em seu coração era tão arraigado e intenso que nem ao menos ele pronuncia o nome “samaritano”. Ele nem precisaria qualificá-lo de “bom” samaritano. Apenas “samaritano” já bastava. O relato deixou claro que o samaritano era bom. Porém, para um judeu o nome “samaritano” soava como se fosse palavrão. Por que tanta revolta e preconceito? Por que os judeus não se davam com os samaritanos e nem os samaritanos com os judeus?

Os judeus e samaritanos não se entendiam desde os tempos de Oséias, o último rei de Israel.  Tudo começou quando Oséias conspirou contra Salmanasar, rei da Assíria. Samaria, a capital de Israel, foi sitiada pelas tropas assírias por três anos e, posteriormente, seus moradores foram transportados para a Assíria (2 Rs 17.3-6). Isto aconteceu em 722 a.C. Somente os pobres puderam ficar em Israel (cf. Jr 39.10). Logo, vieram também estrangeiros e se estabeleceram na região devastada. Diz o relato bíblico: “O rei da Assíria trouxe gente de Babilônia, de Cuta, de Hamate e de Serfavaim, e a fez habitar nas cidades de Samaria, em lugar dos filhos de Israel; tomaram posse de Samaria e habitaram nas suas cidades” (2 Rs 17.24). Da mescla com a população que havia ficado, surgiu uma nova raça denominada de samaritanos (nome derivado de Samaria, a metrópole fundada por Onri, pai de Acabe, por volta de 880 a.C.). No princípio, quando os estrangeiros passaram a habitar em Samaria, eles não temeram ao Senhor; pelo que o Senhor mandou leões invadirem suas terras, os quais mataram a alguns do povo. Com razão atribuíram esta praga à ira de Deus. Então, rogaram ao rei da Assíria que enviasse um sacerdote israelita para lhes ensinar “como servir o Deus da terra”. E assim aconteceu que um judaísmo adulterado foi enxertado ao culto pagão. Quando uma parte dos judeus voltou à terra de seus pais (principalmente, mas não exclusivamente, parte dos que haviam sido deportados para a Babilônia em 586 a.C.), construiu-se um altar para o holocausto e pôs-se os fundamentos do templo, samaritanos zelosos e seus aliados interromperam as obras (Ed 3 e 4). Assim fizeram porque negaram a eles a permissão de cooperar na obra de reconstrução. Sua petição foi: “Deixa-nos edificar convosco, porque, como vós, buscaremos a vosso Deus, como também já lhe sacrificamos desde os dias de Esar-Hadom, rei da Assíria, que nos fez subir para aqui”. A resposta que receberam foi a seguinte: “Nada tendes conosco na edificação da casa do nosso Deus”. Ao receberem esta dura resposta os samaritanos passaram a odiar os judeus. Logo começaram a construir seu próprio templo no monte Gerizim. Porém, João Hircano, um dos reis macabeus, destruiu este templo em 128 a.C. Os samaritanos, não obstante, continuaram adorando em cima da montanha, onde haviam erigido o templo sagrado.

A aversão dos judeus para com os samaritanos pode ser vista ainda em João 8.48 e no livro apócrifo de Eclesiástico 50.25,26. E a mesma atitude por parte dos samaritanos em Lucas 9.51-53. Além disso,  o historiador judeu Flávio Josefo acrescenta que, por volta do ano 19 d.C., um grupo de samaritanos entrou no templo de Jerusalém e espalhou ossos humanos sobre o altar, profanando o santuário e acirrando contra si o ódio judaico. Este ato causou revolta e indignação por parte de todos os judeus das sinagogas de Israel, que passaram a encerrar suas orações diárias lançando uma maldição sobre os samaritanos.

A desinformação ou má informação nos leva a cometermos muitas injustiças. Nestes tempos de atentados e terrorismos, somos bombardeados pela mídia de tal maneira  que chegamos a pensar que todo muçulmano é terrorista, inimigo dos cristãos, e assim por diante. Se você desejar ter informações corretas a respeito de quem são os povos árabes, o que é mito e realidade nessa história toda de islamismo, sugiro que adquira a fita de vídeo Árabes produzida pela missão Portas Abertas. Com certeza as seis lições apresentadas na fita serão esclarecedoras para você, tanto quanto foram para mim.

Mas nem tudo na resposta do intérprete da lei está errado. Seu erro, como vimos, estava na falta da disposição de seu coração. Que ele compreendeu, ao menos intelectualmente, o ensino de Jesus, ficou claro quando disse: “O que usou de misericórdia para com ele”.

Agora chegamos no ponto. No xis da questão: Quem é o meu próximo? O meu próximo é todo aquele com quem eu devo usar de misericórdia. Não estou negando que todo mundo deve ser próximo um do outro, que devemos ser próximos de todos; muito pelo contrário. Contudo, a passagem bíblica sobre a qual estamos discorrendo não trata do próximo no conceito amplo do termo. Jesus está sendo específico ao tratar deste assunto e não podemos perder de vista esse aspecto. É por isso que afirmamos que o seu próximo, o meu próximo, são todos aqueles com quem você e eu devemos usar de misericórdia. Note a resposta imediata de Jesus: “Vai e procede tu de igual modo”. Em outras palavras, “seja compassivo e misericordioso com o samaritano. Ele é amado por Deus tanto quanto você. Não espere que ele venha até você, mas vá até ele, e proceda com ele conforme procedeu com o homem ferido. Ame-o como se fosse você mesmo”.

Há alguns anos falei em uma classe de adolescentes sobre quem é o nosso próximo, segundo o conceito de Jesus nessa passagem. Uma jovem que ali estava disse-me no final da aula que agora ela entendia o verdadeiro significado de quem é o meu próximo. Portanto, o meu ou o seu próximo, é aquele que precisa de nossa ajuda. Aquele que muitas vezes não tem como nos pagar ou recompensar. É o pobre, o carente, o abandonado. O marginalizado pela sociedade e desprezado muitas vezes pela própria igreja. O descaso religioso, e não somente o sócio-econômico e político, fere e mata o nosso semelhante. É no sentido de “próximo” como aquele que não faz parte de nosso círculo de relacionamento corriqueiro, que aquelas palavras de Jesus em Mateus 5.46,47 soam mais fortes: “Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?”.

E aqueles que estão bem de vida? O rico é o nosso próximo? No sentido amplo do termo sim. Entretanto, se olharmos no aspecto social, o que eu poderia oferecer a alguém que tem mais do que eu e é maior do que eu, socialmente falando? No tempo de Jesus alguns ricos foram salvos. A maioria preferiu sua própria riqueza. O jovem rico trocou a vida eterna pelos muitos bens que possuía. O Mestre disse que era mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no céu. Os pobres são mais acessíveis em todos os sentidos. A eles podemos expressar aquela misericórdia  ao alcance dos filhos de Deus.

Jesus concluiu sua explicação respondendo ao intérprete da lei da mesma forma como havia dito antes: “Vai e procede tu de igual modo”. Não sabemos se mais tarde ele se arrependeu de seus pecados e pôs em prática o ensinamento recebido. Entretanto, a questão que fica para você e eu avaliarmos é a seguinte: “E nós, aprendemos a lição?”.

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