O bastão de Deus

Autor: Daniel Costa

Salmo 23:4

Tenho lido de Leonardo Boff o seu livro sobre o salmo 23: O Senhor é o meu Pastor – Consolo divino para o desespero humano. Quando ganhei esse livro de alguém muito especial, a sua dedicatória dizia que há certas palavras que não foram ditas por nós, mas que cabem tão bem dentro da gente que perguntar carece: Por que não foram ditas por nós? A verdade é que palavras não têm dono, o grito de um sempre ecoa, reverbera e tem poder de se transformar na melhor expressão do grito de outro. Depois de ditas, as palavras, não são mais palavras de um indivíduo, mas de todos, são universais porque o viver humano é igual em todo tempo e em todo lugar. Sentimos as mesmas coisas, por isso, o que um diz todos o poderiam dizer. Somos todos solidários nesse estranho caminho chamado vida. Por essa razão, quero reproduzir aqui palavras que não foram ditas por mim e nem por você, mas que poderiam ter sido palavras nossas, pois cabem tão bem dentro da gente.

Eu sempre me perguntei como que nos caminhos sombrios da vida, um simples bordão na mão do pastor, cujo sentido e figura imediato dentro daquela cultura é punitivo, poderia servir de consolo? Boff oferece algumas aplicações bastante interessantes, mas quero destacar apenas uma pela esperança que ela acende em nossa alma. Antes, porém, quero citar uma frase do próprio Boff que deve servir como referência por trás de tudo: “Só leva a Deus aquilo que vem de Deus”. Ou seja, na vida, seja em que caminhos forem: vales de morte, sombrios ou não, só conduz à vida o que vem da fonte da vida. Boff afirma que uma forma mais contundente de sentido de bastão de Deus em nossa vida é constituída pelas crises. Todas as formas de vida, especialmente a vida humana consciente e livre, passam por fases de crise. Pois assim é estruturada a vida. Primeiramente, pelo fato mesmo de a própria vida ter surgido de uma crise de estabilidade da matéria, de uma situação de caos. Mas o caos nunca é caótico, ele busca gerar ordem e assim superar a crise. Num dado momento, ao ser superada a crise, irrompe a vida como auto-organização, mas distante do equilíbrio. Essa ordem vem dotada de determinadas potencialidades de realizações. E elas começam a se concretizar, mas quando essas potencialidades se esgotam, novas crises surgem e estas, por sua vez, criam novas oportunidades para a eclosão de novas ordens que podem ser maneiras diferentes de organização e condução da vida. Assim, dar-se na condução e organização da vida humana um processo que também pode ser observado na natureza: ordem – crise – superação da crise – nova ordem – crise – superação da crise – nova ordem, e assim indefinidamente até à morte. A crise, portanto, pertence à normalidade da vida, e possui a função de nos purificarmos, nos fazer crescer e amadurecer. É nesse sentido que Deus utiliza o Seu bordão em nossa vida.

A própria etimologia da palavra crise nos ajuda a entender o que ela é e como pode funcionar como bordão divino para o nosso crescimento e amadurecimento nessa difícil tarefa de viver. Crise vem do sânscrito Kir, que significa limpar e purificar. De Kir deriva a palavra crisol, que é um elemento químico usado na limpeza de metais, ouro e prata. De crisol se forma o verbo acrisolar, que significa depurar e purificar. Crise é, então, todo o processo que purifica, que põe em relevo o essencial, diferenciando o acidental, processo que mostra o que é duradouro e verdadeiro e o que é passageiro e mutável, processo que revela os valores fundamentais da identidade de nosso ser, diferenciando o que pode ser perdido, negociado e o que é inegociável. Toda crise é, então, em si mesma amputação. Por isso, esse processo de crise é doloroso, pois destrói evidências e faz desaparecer o norte que até então orientava a vida e agora, com as mudanças, não orienta mais. Precisamos construir novas referências e criar novas esperanças. Isso exige tempo, reflexão e experimentação. Traz desilusões, sofrimentos, sensação de fim, de perda irreparável até que, finalmente, surja uma luz libertadora e uma porta se abre que dá acesso a uma nova visão da realidade e a uma nova experimentação da vida. Essas crises podem trazer sofrimentos físicos (as pessoas ficam abatidas, emagrecem e perdem vitalidade), psicológicos (ficam deprimidas e angustiadas) e espirituais (tendem a perder a esperança, a fé e o entusiasmo pelas coisas do bem e por Deus). Mas não podemos nos esquecer nunca que crises são criadoras. Saímos mais enriquecidos, mais maduros e mais humanos delas. Nos tornamos melhores como pessoas.

O bordão pertence a Deus, está em Suas mãos. O que significa que essas crises não são aleatórias, daí o consolo. Não é a vida nos provocando por si mesma, mas Deus, por Seus estranhos caminhos nos conduzindo. Por isso, é que dos vales sombrios, o salmista afirma: “Habitarei na casa do Senhor”. Crises sem Deus é só a vida abrindo-se em tragédias. Crise do bordão de Deus é caminho para a casa, é acolhimento. Deus hospeda a nossa vida.

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