Autor: Abilio Arruda
A Igreja, como instituição, tem um papel educativo decisivo não só na vida dos seus partícipes, mas também na sociedade na qual se encontra inserida. Esta importante instituição passa por uma crise, resultado do descrédito da mulher e do homem moderno nas instituições, exigindo, de nós, teólogos, reflexão séria e reestruturação para continuar a ser veículo de transmissão dos valores e ideais utópicos do reino de Deus. O presente artigo, a que me proponho, tentará contribuir, de maneira bastante parcial, com discussão tão premente, baseado nas seguintes questões: como e para que a Igreja educa?
A educação consiste, para nós, em potencializar os conhecimentos já adquiridos pela pessoa em contato com o seu entorno ambiente e com o seu semelhante, pois, “aprender significa o aprimoramento de algo menos perfeito que já existia no organismo e não criar algo do nada, fazer surgir uma habilidade qualquer do vazio, da ausência”.[1] Se a aquisição de conhecimentos passa pela inter-relação com o meio e também com o semelhante, os conhecimentos adquiridos têm relação com a cultura. Assim, a educação, como fenômeno humano, nada mais é do que a assimilação e a transmissão da cultura.
Se o individualismo é o modelo cultural atual, temos que os conhecimentos transmitidos pela educação contemporânea estão ancorados numa visão fragmentada da realidade, que por sua vez tem por base um outro modelo cultural, pedagogicamente transmitido: o método cartesiano. Esse método nos formou com um pensamento dissociativo, ou seja, toda a realidade por nós percebida existe esferas separadas: “Sujeito / Objeto, Alma / Corpo, Espírito / Matéria, Qualidade / Quantidade, Finalidade / Causalidade, Sentimento / Razão, Liberdade / Determinismo, Existência / Essência”.[2]
No campo da religião, esse dualismo, que perpassa toda a cultura ocidental, é o responsável pela cisão entre fé e prática, pois “cinge perigosamente a realidade em duas esferas: a do profano e a do sagrado”.[3] O resultado imediato desta cisão entre o profano e o sagrado é a proeminência das coisas “espirituais” sobre as terrenas. Logo, a Igreja é entendida como a responsável pelas coisas sagradas e as demais instituições pelas coisas terrenas ou seculares, cujo resultado catastrófico é a cisão entre fé e política.
A Igreja, como instituição, é um micro-sistema dentro de um macro-sistema, por isso não pode furtar-se ao modelo cartesiano pedagogicamente transmitido e culturalmente assimilado, cujo resultado é a incompreensão, por parte dos indivíduos, de que a interdependência humana e social é um fato e é, também, imprescindível para a manutenção da coesão social. Isso significa dizer que a Igreja tem assimilado, ao longo dos tempos, o modelo cultural da sociedade da qual faz parte. Por ter assimilado o modelo cultural individualista e dualista das sociedades ocidentais, a Igreja, como instituição educativa, tem transmitido aos seus partícipes, através da sua prática, valores que não corroboram sua missão de promover a utopia do reino de Deus. Pois, se os valores por ela assimilados estão ancorados tanto numa cultura individualista quanto numa visão dualista, os assuntos da esfera “espiritual” têm proeminência sobre os da esfera material, e o resultado disso é que a Igreja tem se preocupado em salvar ou libertar “almas” e encaminha-las para o “céu”, ao invés de se ocupar com a solidariedade com o homem e com a mulher “encarnados” nas sociedades capitalistas.
Ao interiorizar os valores da cultura individualista vigente as pessoas são levadas a pensar que somente o seu ponto de vista é correto e que, em contrapartida, os demais pontos de vista não são importantes ou estão errados. Como conseqüência, as pessoas conversam sobre os mais variados assuntos e têm as mais variadas opiniões acerca destes, mas não se comunicam, uma vez que a comunicação enseja a aceitação da opinião alheia. Dessa forma os valores transmitidos pelas igrejas embebidas no individualismo e no dualismo não promovem o diálogo. Viabilizam, isto sim, um antidiálogo, que “implica numa relação vertical de A sobre B, […]. É desamoroso. […] Não é humilde. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados”.[4] E fazer comunicados é o mesmo que transmitir, aos educandos, informações desconectadas da sua realidade, do contexto por eles vivenciado. Escutam, arquivam estas informações, mas não apreendem, não adquirem conhecimentos relevantes para a vida.
A Igreja, cuja missão inicial era a implantação dos ideais do reino de Deus, tem levado seus partícipes, através de suas doutrinas religiosas (teológicas) cristalizadas, a se considerarem donos da verdade, o que gera uma arrogância em relação às doutrinas diferentes daquela que julgam ser a única verdadeira. Porém, a Igreja, através de seus dogmas, não pode suprir a fé dos fiéis, porque, “a fé consiste no conhecimento de Deus […], e não na reverência da Igreja”.[5]
A Igreja precisa, urgentemente, viabilizar um modelo de educação que conduza as pessoas à relativização das certezas, ancoradas em dogmas religiosos, que muitas vezes não têm nenhuma relação com suas vidas, e, se não dizem respeito às suas vidas, tais ensinamentos não promovem um conhecimento que as coloque em contato com o próximo, numa relação solidária. Inexiste o diálogo. Acontece apenas a transmissão de informações, ou seja, “o homem de hoje percebe as verdades da fé, talvez sim, registros de um saber memorístico ou informativo, mas não com os olhos da experiência espiritual. Por isso é um homem ao qual não se lhe anunciou nada, porque não se lhe comunicou praticamente nada.[6]
Se a ação educativa da Igreja se torna apenas discursiva, leva seus partícipes à construção de uma cosmovisão desvinculada da realidade, isto é, um sentido de vida baseado em certezas provenientes da estaticidade do dogma. Desse tipo de cosmovisão construída com base em verdades inquestionáveis resulta uma insensibilidade frente aos problemas reais das pessoas. Para quem tem um sentido de vida direcionado por certezas, aqueles/as que pensam e agem de maneira diferente estão errados, o que dificulta o encontro dialógico/solidário. Além disso, e com base nisso, emerge a indiferença com o sofrimento alheio, que, na maioria das vezes aparece justificada por “uma diversidade grande de cosmovisões, doutrinas religiosas ou éticas”.[7] Isto é, ao não nos mobilizarmos frente ao sofrimento alheio, inventamos desculpas e as ancoramos nas nossas experiências de vida frustradas, nas nossas doutrinas religiosas estanques e em valores deturpados e sem sentido para a vida.
Pensamos que, o primeiro passo a ser dado pela Igreja, como instituição educativa, para que continue a transmitir os valores solidários do Reino de Deus, seja a coragem de abrir mão dos valores do “sistema” estabelecido sobre o individualismo, que o gera e o sustenta, e se converter diariamente à solidariedade, ou seja, amar e ensinar a prática do amor ao próximo.
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1. GARCIA, Francisco Luiz. Introdução Crítica ao Conhecimento, p. 43.
2. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 26.
3. CODINA, Victor. Renascer para a Solidariedade, p. 20.
4. CODINA, Victor. Op. Cit., pp. 18-20.
5. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 116.
6. CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana – Libro III, capítulo II, p. 407. “… la fe consiste en el conocimiento de Dios […], y no en la reverencia de la Iglesia”.
7. SEGUNDO, Juan Luis. O Dogma que Liberta: Fé, Revelação e Magistério Dogmático, p. 11.
8. SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes utópicos, p. 161.
* Teólogo e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.
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