Autor: Paulo Suess
Para a América Latina cristianizada, Missão significa memória de um passado colonial ainda próximo e projeto de libertação em curso. Memória e projeto são constitutivos para a caminhada missionária. A memória rompe com a repetição obsessiva e a amnésia traumática do passado. O projeto é a visão de uma outra sociedade que se inspira na concepção das sociedades indígenas. Nelas prevalece a construção da pessoa sobre a produção de bens, o ócio sobre o negócio, a participação sobre a competição, a partilha sobre a acumulação, a liberdade sobre o controle. Nesta outra sociedade em construção todos aprenderam também produzir, não para acumular, mas para o gasto próprio e para distribuir. O enriquecimento através de especulações financeiras, que corrompem as pessoas, nesta sociedade não faz sentido.
A Missão lembra o caminho percorrido. Convoca os peregrinos para a construção de “uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal” (Medellín V/15) que caminha junto aos pobres. Neles “reconhece a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (LG 8). Nessa caminhada, o Ressuscitado se revela como caminho novo. A experiência pascal ilumina a caminhada por instantes. Não transforma as noites dos crucificados em Dia da Ressurreição e as eternas perguntas de Jó sobre o sofrimento do inocente permanecem sem resposta. Mas, a iluminação pascal – primeiro raio de sol que anuncia o fim da noite – muda a visão dos peregrinos. Mudando a visão, transforma a realidade.
A caminhada é configurada por múltiplas experiências. Caminho e Missão se confundem nessas experiências inseridas na história e no dia a dia dos contextos culturais. Experiências são históricas e contextuais. Não valem para todos, nem para sempre. Têm data de vencimento. A vida cresce, o mundo se transforma e o caminho percorrido faz mudar as perspectivas. Por conseguinte, na caminhada se cruzam muitos caminhos. Não existe a hegemonia do caminho único ou da leitura definitiva. Ninguém tem a última palavra. Todos são eternos “mutantes”, herdeiros de Heráclito, de Jesus-Caminho e de nômades indígenas. Carregam um devir histórico, um “coração inquieto” (Agostinho) e um ser eterno dentro de si. Cada um é essência divina, atravessado por desejos humanos e empenhado num canteiro de obras deste mundo. Eternidade em construção histórica.
Novas misturas, pontos de vista diferentes e enfoques inusitados lembram a possibilidade de outros caminhos. O caminho domesticado se torna casa de repouso. O caminho é uma escolha. A verdade é uma opção, não uma necessidade. O caminho se faz caminhando. As sendas e as pontes estão para ser construídas. A partilha da experiência entre peregrinos, que chegam dos vales de resistência da vida contra a morte, aponta para novas possibilidades. A partilha desarmada e atenta desmonta a leitura ideológica, heróica ou até depressiva da caminhada. Enfim, quem viu a morte face à face, sabe que a vida pode vencer. Foi-se a inocência e a certeza. A caminhada desestrutura conceitos e representações herdados. O Evangelho desestabiliza as estruturas institucionais e mentais. Faz ver “o esplendor de Deus, que se reflete na face de Cristo (…) em vasos de barro” (2Co 4,6s.). Ser peregrino significa viver em estado de conversão.
Como pensar a Missão no mundo onde a miséria globalizada é um produto da civilização do mercado, das transações financeiras e da fartura de elites privilegiadas? Onde encontrar o “horizonte regulador” que dá sentido à caminhada? Globalização significa proximidade e distância. Os meios de comunicação forjaram uma humanidade conectada pela palavra, pela imagem e pelos negócios e, ao mesmo tempo, separada por um fosso social entre ganhadores e perdedores. Aparentemente, a globalização facilita a atividade missionária. As viagens a outros países e continentes, hoje, se tornaram bastante cômodas, comparadas com as épocas que levaram José de Anchieta ao Brasil e Francisco Xavier ao Japão. Em caso de qualquer catástrofe, mensagens e sinais de solidariedade podem ser enviados com muita rapidez. Até a “caridade internacional” acaba funcionando razoavelmente.
Mas, o poder da mídia significa também uma nova colonização. Mensagens insistentes e sinais sedutores a serviço do mercado estão 24 horas no ar. Arte e academia são cooptadas pelo mercado total. O mundo dominado pelo capitalismo de cunho neoliberal investe a maior parte de sua criatividade em propaganda, design e marketing. Tudo vale para transformar o próximo em cliente e as relações humanas em relações de mercado. O mercado disfarça o preço, destaca o prazer imediato e apela à libido.
Em contrapartida, a caridade, a solidariedade e a justiça exigem “luta” e austeridade; não conseguem articular seu outfit com prazer, nem seus resultados com rapidez. A mística tem pouca visibilidade. As tentativas miméticas de algumas Igrejas, recorrendo ao showbusiness da fé, são esteticamente desprezíveis, espiritualmente vazias e teologicamente sectárias. Legitimam a violência em curso porque escondem a cruz de Cristo e os rostos dos crucificados. O mercado financeiro não pode ser vencido pelo mercado religioso, mas pela gratuidade da cruz. Jesus de Nazaré, morto na cruz, liberta da necessidades de outros sacrifícios redentores. Redenção e libertação não estão mais sob a pressão da magia ou do rito sacrificial. A gratuidade não entra no circulo vicioso do mercado concorrencial com “melhorias graduais”. A gratuidade da cruz articula as relações humanas a partir de uma outra lógica. Além disso, a fé está mais afinada com a escuta do que com a vista, mais com a palavra do que com a imagem. As parábolas têm um caminho longo pela frente; os retratos congelam arbitrariamente um instante da caminhada. As parábolas são exigentes; apelam à ação. As imagens apelam ao prazer, ao consumo e à mímesis. A atitude mimética é tendencialmente violenta porque exige um sacrifício recíproco para manter a diferença ou faz da própria eliminação da diferença o sacrifício mediante a identificação, a incorporação, a imitação ou eliminação do outro. Entre vencedores e vencidos, seja no mercado ou no campo de futebol, existe uma relação mimética. Assim, a globalização, com sua visibilidade e rapidez, simulando baixo custo e prazer imediato no interior de estruturas concorrenciais, colocou a Missão em desvantagem frente aos consumidores da cultura televisiva do mercado.
Como afirmar nesta grande loja mundi de 24 horas, onde tudo tem o seu preço, que a Missão e o Evangelho são algo essencialmente diferente do marketing? Qual é a força do Evangelho junto àquela parcela da humanidade que vive desconectada do progresso e do bem-estar? Em bolsões de miséria, amenizada por obras de caridade e auto-ajuda que varia entre mendicância e violência, lutam diariamente por um pedaço de pão, por um chuveiro para o banho, por padrões elementares de justiça e por “drogas de esquecimento”, apelando à sorte, ao milagre ou à cola do sapateiro. Tudo isso desafia a Missão como projeto. Desafia a prática missionária e a reflexão missiológica.
No passado, missionários e missionárias foram acusados de que a universalidade da Missão seria expressão de sua vontade de dominar o mundo. Chegaram aos confins do mundo, graças aos navios de comerciantes, conquistadores e colonizadores. A afirmação da verdade única da fé, acoplada à geografia universal da Missão e à companhia dos exploradores, produziu violência simbólica e prática. O discurso missionário era hegemônico e excludente. Exemplos não faltam. Mas, a universalidade da Missão pode ser compreendida como alternativa à globalização. A Missão é universal, porque não exclui ninguém. Se a Missão fosse geográfica, cultural, étnica ou socialmente limitada, se ela se dirigisse apenas a uma pequena clientela de “eleitos”, seria excludente como a globalização neoliberal. O Vaticano II (1962-1965) e sua inculturação latino-americana em Medellín (1968) articularam a universalidade com a diversidade, a identidade católica com a diferença ecumênica e macroreligiosa.
A Missão em sua contextualidade universal pode ser pensada, assim, como alternativa à colonização cultural e à exclusão social. A alternativa se baseia, primeiro, no princípio fundamental do Evangelho: a prática do amor maior e o anúncio do Reino como “libertação do cativeiro da corrupção” (cf. LG 9); segundo, na compreensão da unidade global como articulação de múltiplos projetos de vida com horizontes diferentes, porém, não eliminatórios, uns frente aos outros; terceiro, na articulação da vida local e do projeto específico com a responsabilidade universal pelo conjunto da humanidade e do planeta terra. Esse projeto da Missão participativa, alternativa, libertadora e inserida ao mundo, pode ser pensado em cinco dimensões simultaneamente presentes: contemplação (1), indignação (2), visão (3), ruptura (4) e articulação (5).
1. Os peregrinos da América Latina contemplam nos crucificados da história seu fundador crucificado e ressuscitado. Em sua Historia de las Indias, Las Casas recorda-se desde a longínqua Valladolid: “Deixei nas Índias Jesus Cristo, nosso Deus, açoitado, afligido, esbofeteado e crucificado, não uma, mas mil vezes, pelos Espanhóis que assolam e dessorem aquelas gentes (…).” (LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. 3 vols., Caracas: Biblioteca Ayacucho (108-110), 1986, vol. 3 (liv. III, cap. 138), pág. 510). A contemplação das vítimas da história é ao mesmo tempo a contemplação de sua resistência contra a morte e a afirmação da possibilidade de uma justiça definitiva, codificada no imaginário da ressurreição. Num ato de justiça definitiva, Deus rasgou a sentença de morte de seu Filho e o ressuscitou. A mística missionária está enraizada nessa realidade do mundo em construção, sem vítimas. O Crucificado rompeu com os sacrifícios humanos e desautoriza qualquer pessoa ou sistema que cria vítimas. Nessa contemplação enquanto resistência contra a morte, a Missão forja o horizonte do sentido. A vida faz sentido, apesar das contingências, das mortes “antes do tempo” e do desespero de muitos.
2. A contemplação cria um descontentamento estrutural com o mundo assim como é; com o mundo que cria vítimas e exclui; com o mundo que despreza a vida dos inocentes e privilegia os violentos. Da contemplação emerge a energia de uma indignação profética. Ela é o antivírus contra o conformismo, a indiferença e o esquecimento. A memória, a contemplação e a indignação são as primeiras pontes sobre o abismo que separa os excluídos do resto da humanidade. Indignação significa compaixão, misericórdia e justiça. A indignação se dirige contra aquilo que pode ser diferente; contra a fome das multidões; contra o conformismo de uma história fatal; contra um providencialismo de um “Deus quer assim”; contra a hegemonia do capital, das armas e da tecnologia a serviço do lucro de poucos. Os pobres e os excluídos desmentem a ideologia neoliberal que apregoa que a liberdade dos mercados beneficia a todos. A desigualdade pode ser crônica, mas não precisa ser perpétua. A história está cheia de possibilidades. A fé inspira sempre novas razões de esperança que podem alimentar a paixão missionária. A indignação preserva a Missão da adaptação e da submissão à falácia da globalização neoliberal.
3. A indignação profética e visionária é marcada pela alegria profunda de poder participar da construção do mundo novo. Missão é visão do horizonte utópico da libertação. A libertação é possível. A justiça de Deus não é a justiça da estátua com olhos vendados. Deus ouve o clamor dos pobres, vê o sofrimento dos migrantes e convoca com a sua palavra os que a confusão babilônica dos macrodiscursos excluiu do convívio social. Missão é visão acoplada à ação. Tudo pode ser diferente. A partilha e a opção pelos pobres apontam para tarefas básicos neste mundo: a redistribuição dos bens feita pelos pobres e o reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Essa visão se transforma em ação através da presença no meio dos outros-pobres e através de palavra, profética e misericordiosa, ao mesmo tempo. A Missão produz sinais de justiça e cria imagens de esperança. No mundo, onde os privilegiados perdem o sentido de vida e os excluídos a visão de um horizonte e a força de resistência, o querigma missionário elementar é a esperança.
4. Presença, palavra, sinais, imagens e sonhos não são óleo na máquina do tempo. São areia. O mundo sócio-historicamente construído nunca está livre de alienação e estruturas de pecado. Missão significa ruptura com essa alienação. Meras reformas ou remendos novos em odres velhos não mudam o curso da história. O Reino só pode ser pensado num horizonte asistêmico, além da “utopia” da sociedade consumista, da sociedade produtora de objetos à custa das pessoas. Os sistemas, instituições e organizações sempre estão cheios de contradições. A contradição faz parte do mundo fatual. Os fatos são momentos estagnados de um processo amplo de libertação. A tarefa-pergunta missiologicamente relevante: Como produzir rupturas? Como plantar os sonhos dos pobres e dos excluídos nas rachaduras dos sistemas? Ruptura significa desprogramação, desinstalação, desalienação. Como abrir mão das nossas representações prestigiosas e viver a solidariedade como expressão radical de gratuidade sem retorno? Gratuidade significa não só ruptura com a sociedade domesticada por lucro, competição e controle. A gratuidade rompe com o desejo mimético de incorporação, identificação e reciprocidade. A gratuidade é a condição da não-violência religiosa.
5. Missão é organização e articulação contra a violência da fome, da exclusão e da banalidade do sonho consumista. É possível enredar as esperanças e os sonhos dos excluídos. Mas, ao propor a organização da esperança não se entra de novo num beco sem saída, no beco sistêmico, na forca partidária, na domesticação eclesial e, portanto, na contramão do Reino? O bug missiológico do milênio – o bloqueio da caminhada que apavora os responsáveis pelos relógios – é causado por estruturas piramidais, que travam a comunicação interna e emperram o diálogo ad extra. Essas estruturas são miméticas. Refletem palidamente as estruturas totalitárias da economia do mercado. Nas estruturas piramidais, o pobre é mero receptor de mensagens e o outro é destinatário de comunicados. A inclusão autoritária não representa a alternativa contra a exclusão. A causa dos pobres-outros não exige apenas assunção autoritária ou aceitação através de parâmetros de tolerância e solidariedade no interior do sistema que os expulsou. A energia transformadora não brota da eficácia organizacional ou da univocidade cultural no interior desse sistema.
Os pobres, em sua diversidade, são constitutivos para a organização da esperança do Reino. Para a organização dessa esperança não vale a normatividade da “qualidade total”, que é concorrencial e eliminatória, mas a excelência do pobre e a assunção de sua diversidade na rede de relações fraternas. A exclusão social é a negação da fraternidade. Ao transformar as pirâmides autoritárias em redes de comunicação, acontecerá um novo fluxo energético e pentecostal no interior das Igrejas. Na partilha dos bens e das palavras, na solidariedade com os crucificados, na sobriedade dos peregrinos as Igrejas se renovam constantemente. Seu futuro histórico está garantido através da participação dos outros e dos pobres em sua rede institucional.
Caminhar é a forma mais radical da partilha. Desta caminhada compartilhada todos voltam transfigurados. Não só o Êxodo – a saída emancipatória sem retorno à terra escravizada -, também o Exílio obriga, através da experiência do estranho na terra estranha, a redefinir o próprio projeto, seus meios e fins; redefinir o conceito, o desejo e as imagens. A caminhada relativiza projetos, gramáticas e lógicas. Em cada etapa dessa caminhada voltam antigas e novas perguntas. São sinais da nossa subjetividade em construção e da busca de sentido. Só o sujeito faz perguntas, questiona a si e ao mundo. Afinal, quem somos? A caminhada é um aprendizado para conviver em paz com cada vez mais perguntas. No caminho se perde a ansiedade de encontrar respostas para tudo. Ao sair do “nosso” lugar, mudamos o olhar ao mundo e a perspectiva de vida.
(Artigos in, www.missiologia.org.br)
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