Autor: Jung MO SUNG
Júlio de Santa Ana –um teólogo uruguaio que trabalhou por mais de dez anos no Brasil e atualmente ensina em Genebra, Suiça– esteve em São Paulo para assessorar um curso de militantes cristãos latino-americanos. Aproveitando a oportunidade, a Editora Vozes, CESEP (promotora do curso de militantes cristãos) e o Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC de São Paulo organizaram uma noite de conferência. Apesar de pouca divulgação, mais de cem pessoas –maioria cristãos comprometidos com lutas sociais– se reuniram para ouví-lo falar sobre A crise do cristianismo na passagem do milênio.[1]
Sob o impacto desta conferência, o editor da revista Cultura Vozes me pediu com insistência que escrevesse um artigo sobre o mesmo tema. Após estourar vários prazos, estou finalmente atrevendo-me a colocar algumas idéias por escrito.
Na conferência, Júlio de Santa Ana apresentou alguns aspectos da crise do cristianismo: cristianismo é hoje uma religião estatisticamente estagnada; sua presença na crise histórica atual está muito aquém de sua magnitude numérica; e ela não está conseguindo contribuir para a formulação de estratégias de alternativas à sociedade de mercado.
É em torno destas questões que eu quero fazer algumas considerações.
1.
Para muitos setores do cristianismo uma das principais preocupações é o crescimento ou a diminuição do número de fiéis das suas igrejas. Na América Latina muito tem se falado sobre o crescimento das igrejas pentecostais e neo-pentecostais e dos movimentos carismáticos no interior da Igreja Católica. Contudo, não devemos nos esquecer que uma boa parte do crescimento destas igrejas e movimentos se faz às custas de outras igrejas e movimentos no interior do cristianismo. A euforia de certas igrejas ou líderes religiosos com o crescimento numérico se refere ao crescimento das suas igrejas, denominações ou correntes no interior de uma grande igreja, como a Católica, mas não ao crescimento do cristianismo como um todo. O cristianismo não tem crescido significativamente nos últimos anos. Entre as grandes religiões, é o islamismo que tem crescido mais.
Esta preocupação excessiva pelo aumento ou a diminuição dos fiéis– que aparece tanto entre bispos da católicos, quanto entre bispos e pastores evangélicos ou neo-pentecostais – mostra, em muitos casos, que o sucesso quantitativo das suas igrejas se tornou o objetivo principal. Em termos teológicos, podemos dizer que a igreja foi identificada com o Reino de Deus; isto é, o crescimento numérico da sua igreja é vista como a realização da missão de anunciar o Reino de Deus.
No Brasil, hoje, não podemos falar deste tema sem referirmos ao fenômeno Padre Marcelo.[2] Não só pela sua presença na mídia, mas pelo peso social que tem a Igreja Católica na América Latina. E aqui eu quero me valer das reflexões de José Comblin. Num texto sagaz e provocante, ele diz que o fenômeno padre Marcelo mostra que algo novo está surgindo: uma nova religião popular católica urbana. “A mensagem de padre Marcelo Rossi responde diretamente às aspirações e à cultura do ser urbano.”[3] No mundo rural, os seres humanos faziam a experiência de Deus na natureza, isto é de modo objetivo, enquanto que na cidade a natureza se transformou em bem de consumo, graças ao turismo e às saídas de final de semana. Mesmo que as agências de turismo utilizem-se cada vez mais de imagens e linguagens religiosas, especialmente o paraíso, para vender os seus produtos, (este tema foi até objeto de dissertação de mestrado em Ciências da Religião na PUC de São Paulo) o turista não encontra a Deus na natureza: encontra-se a si próprio.
Com a dessacralização da natureza e a desvalorização das procissões, a pessoa urbana passou a fazer a experiência de Deus no seu coração, nos seus sentimentos, nas suas emoções religiosas, e no show. “A própria missa integra-se no show e as pessoas vêm pelo show, assistem a missa como suplemento sem saber exatamente o que é, porque o show oferece um sentido completo.”[4] O show é a procissão de ontem. E os shows não questionam em nada, nenhuma mudança real na Igreja, nem na sociedade. Os conservadores não precisam ficar preocupados.
“E o evangelho em tudo isso? E a evangelização? O evangelho é outra coisa. Porém, parece que já não é mais a prioridade. A prioridade é (….) a renovação do sentimento religioso, a redescoberta do prestígio sobrenatural do padre e do prestígio social da Igreja.”[5]
2.
Por que desta diferenciação entre o evangelho e a renovação do sentimento religioso? Muitos poderiam perguntar: não é a tarefa das igrejas e das religiões em geral alimentar e fazer crescer este sentimento religioso que existe nas pessoas? Sim e não.
Sim, porque o evangelho não nega o sentimento religioso ou a religiosidade “natural” que existe nas pessoas e nas sociedades; mas também não, porque não se reduz a eles. Aliás, nenhum religião concreta se identifica completamente com este sentimento religioso vago; sempre existem as diferenças específicas ou características particulares. É por isso que existem diferenças entre as religiões e igrejas.
Mais do que isso, em muitos aspectos o evangelho entra em conflito ou contradição com essa religiosidade “natural” das pessoas. Esta contradição pode ser detectada mesmo no interior das igrejas cristãs porque cristianismo é uma religião que assume um conjunto de livros, a Bíblia, como portadora da Palavra ou revelação de Deus. Por isso, é mais difícil de ser manipulada pelos seus líderes, ou melhor dito, é uma religião em que é possível criticar a liderança ou o rumo assumido pelas igrejas em nome dos ensinamentos contidas no Livro. Razão pela qual se desenvolveu nos dois últimos séculos um número imenso de estudos científicos e eruditos sobre textos bíblicos.
O desejo “natural” da maioria das lideranças religiosas e das massas que as procuram é ver a sua igreja ou religião crescer e fortalecer; até como uma comprovação das bençãos divinas. Este objetivo pode levar, muitas vezes, a adaptar a mensagem religiosa à demanda do “mercado religioso”. Isto é, anunciar não exatamente a mensagem “revelada”, “inspirada” ou até mesmo “descoberta” na experiência mística, mas sim o que a maioria das pessoas querem ouvir, as mensagens que não entram em conflito ou contradição com os valores fundamentais da cultura vigente.
Há casos extremos de manipulação da Bíblia que são facilmente identificáveis. Por exemplo, certos teólogos da prosperidade – corrente teológica que ensina que a riqueza é a benção de Deus e a pobreza a maldição contra os pecadores – dizem que o jumento que Jesus usou ao entrar em Jerusalém equivalia a um carro de luxo, como Cadilac, nos dias de hoje. Razão pela qual os cristãos, como herdeiros de Cristo, teriam direito de exigir de Deus carros de luxo. O que revela uma total ignorância da história e da sociedade em que Jesus viveu, ou má fé. Infelizmente, essas manipulações não se esgotam em casos tão escancarados como esse.
Em todo caso, esse é um exemplo da dificuldade de se falar sobre a crise do cristianismo. Se tomarmos a crise no sentido quantitativo, a solução viria com aplicação de técnicas de marketing ao campo religioso Isto é, primeiro fazer uma pesquisa de mercado para detectar o que as pessoas querem ouvir, depois produzir e oferecer discursos e rituais religiosos que satisfaçam estas demandas utilizando-se de modernas técnicas de comunicação e convencimento. Aliás como já tem feito muitas igrejas e com um certo “atraso”estão tentando alguns setores da Igreja Católica.
Ao se fazer isso de um modo eficaz e competente, o resultado é a sacralização dos valores e o modo de vida da sociedade vigente. Uma forma de falsidade ideológica, pois coloca-se a “assinatura” ou “carimbo” de Deus naquilo que na verdade é um mero desejo humano que reproduz os valores dominantes na sociedade. A tradição judaico-cristã diria que é um pecado contra o segundo mandamento de Deus: usar o santo nome de Deus em vão. (No momento em que o Brasil enfrenta-se com a corrupção e outros desmandos que espalhou-se pelo poder judiciário, legislativo e executivo, esta analogia cai até bem.)
O problema consiste no fato de que esta solução da crise numérica semeia uma outra crise: a da identidade espiritual. No mundo moderno, onde os indivíduos não são mais obrigadas a viverem dentro da e conforme as regras da religião hegemônica na sociedade, as pessoas com “sede espiritual” procuram uma religião pela sua mensagem original que vai além da mera reprodução ou imitação dos valores sociais vigentes. O vigor espiritual de uma religião está justamente em não ser uma mera reprodução dos valores culturais vigentes, isto é, em ser uma certa forma de protesto o mundo e as religiões que o sacralizam.
Juan Luis Segundo, um teólogo católico, padre jesuíta, assumindo um conceito de Paul Tillich, teólogo protestante, escreveu que o “princípio protestante”, o protesto divino e humano contra toda absolutização histórica, “é uma dimensão essencial do cristianismo, embora, de outro lado, totalmente oposta a esta tentativa pastoral de elevar ao universal a tarefa de procurar adeptos. Efetivamente, se o princípio protestante é um princípio essencial ao cristianismo, os capazes de protestar não constituem precisamente a universalidade da massa.”[6]
Daí a contradição entre o desejo de aumentar o número de fiéis para engrandecer a sua igreja e a fidelidade ao anúncio do evangelho, a boa-nova que anuncia o Reino de Deus como justiça e dignidade para todos e todas. Esta contradição de certo modo inevitável é, provavelmente, um dos nós centrais do drama que é a história do cristianismo. Até mesmo entre os defensores das comunidades de base havia muitos que acreditavam que toda a Igreja, católica ou protestante, poderia e deveria se tornar a Igreja dos Pobres. Acreditavam que o “princípio protestante” poderia se tornar algo da maioria, e não simplesmente de uma minoria profética, ou abrâmica, como dizia o saudoso Dom Hélder Câmara.
3.
Essa contradição entre os dois desejos irreconciliáveis, a de ver crescer a sua igreja e assim ser reconhecida pelos poderosos do mundo e temido pelos fracos, e a de querer permanecer fiel à missão de anunciar a boa-nova aos pobres e suportar o preço desta fidelidade (calúnias, incompreensões, perseguições …, vindas do “campo secular” e do “campo religioso”) é “solucionada” com a opção por um dos desejos. E é esta opção fundamental que vai dividir o cristianismo. A divisão fundamental no cristianismo não se dá entre a Igreja Católica e as Igrejas Protestantes, nem entre as diversas denominações, como a Católica Romana, a Ortodoxa, Luterana, Presbiteriana, etc.. Esta pode ser a divisão que interessa aos historiadores ou sociólogos, mas em termos da própria identidade do cristianismo, ou do evangelho, a divisão fundamental é entre esses dois desejos.
Os que buscam fundamentalmente aumentar o número dos fiéis, o poder e prestígio das suas igrejas não costumam trabalhar juntos, pois uns competem com outros, mas compartilham a mesma lógica, o mesmo desejo e a mesma idéia de missão. E neste compartilhar se encontram, estão juntos.
Por outro lado, cristãos das mais diversas denominações na América Latina se reúnem, dialogam e trabalham juntos quando se põem de acordo no desejo de se permanecer fiel à missão de anunciar a boa-nova aos pobres, quando põem-se de acordo que não se pode separar a evangelização da defesa da vida e da dignidade dos pobres e dos oprimidos. Eu próprio tive a felicidade de, sendo da tradição católica, ter estudado teologia com professores protestantes em uma instituição católica; e de hoje lecionar também em uma Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Mesmo entre as igrejas pentecostais podemos encontrar teólogos que articulam explicitamente a fé cristã com as questões econômicas e sociais na defesa da vida dos pobres. Um fato que não é muito divulgado no Brasil. Como exemplo, podemos citar Juan Sepúlveda, do Chile, Bernardo Campos, do Perú, e Gamaliel Morales, da Venezuela. É claro que este encontro não se dá somente no âmbito da teologia ou dos teólogos, mas também na prática pastoral ou de movimentos populares e sociais.
Este segundo grupo, é importante deixar claro, é minoritário dentro do cristianismo latino-americano. Cada vez mais minoritário no âmbito católico. Mas, se o cristianismo ainda pode superar o segundo tipo de crise apontado por Júlio de Santa Ana, – a da presença aquém das possibilidades na crise histórica atual e da não, ou pouca, contribuição na formulação de estratégias alternativas à sociedade de mercado globalizado –, será através ou com uma contribuição fundamental deste grupo.
4.
Será que o cristianismo conseguirá superar esta crise e voltar a ter uma relevância histórica na luta por uma sociedade mais justa e humana? Será que toda efervescência do cristianismo de libertação dos anos 70 e 80 na América Latina não terá sido uma exceção histórica? É difícil prever o futuro e dar uma resposta segura. Como não há uma essência do cristianismo ou da religião como tal que determina o seu desenrolar histórico, nem um plano de Deus que move a história, as respostas a estas perguntas serão dadas ou construídas no próprio processo histórico, isto é, dependerão em parte do que nós formos capazes de fazer.
Entretanto, é interessante notar que cada vez mais os analistas sociais estão tomando o fator religioso como um dos componentes fundamentais da reorganização social exigida pelo processo de globalização econômica e da revolução tecnológica, ou, como diz Castells, pela formação da sociedade em rede. Samuel Huntington, por exemplo, diz que “a religião é uma característica central definidora das civilizações” e que a “separação westfaliana da religião e da política internacional, produto indiossincrático da civilização ocidental, está chegando ao fim, e a religião, como sugere Edward Mortimer, ‘tem probabilidade cada vez maior de ser imiscuir nos assuntos internacionais’. O choque intracivilizacional de idéias políticas está sendo substituído por um choque intracivilizacional de cultura e religião.”[7]
Manuel Castells, por sua vez, diz que “nosso mundo, e nossa vida, vêm sendo moldados pelas tendências conflitantes da globalização e da identidade. A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede,” e que “para os atores sociais excluídos ou que tenham oferecido resistência à individualização da identidade relacionada à vida nas redes globais de riqueza e poder, as comunas culturais de cunho religioso, nacional ou territorial parecem ser a principal alternativa para a construção de significados em nossa sociedade.”[8]
A contribuição do cristianismo na superação não só da crise do próprio cristianismo, mas da crise social (o aumento da pobreza absoluta e a exclusão social de uma grande parte da população mundial), da crise ecológica (o efeito estufa, a degradação do meio ambiente, a ameaça da falta de água potável, etc.) e da crise espiritual (a insensibilidade da sociedade frente a dois problemas anteriores) que afetam o mundo não pode ser pensada fora da sua relação com outras religiões. Em primeiro lugar porque estas crises devem ser entendidas tendo como referência o globo terrestre e o cristianismo tem relação estreita só com a civilização ocidental. Em segundo lugar, porque os conflitos de fundo religioso, além de piorara ainda mais a situação dos mais fracos, são um dos fatores importantes que impedem diálogos e a busca comum por soluções a problemas que afligem a toda ou a uma parcela significativa da humanidade. Crises sociais e políticas causadas pela atual forma de globalização e crises ecológicas não poderão ser resolvidas em âmbitos nacionais ou regionais.
Nesta busca de possíveis contribuições do cristianismo, temos dois desafios: a determinação dos problemas fundamentais que possam ser catalisadores de diálogos e cooperações entre as religiões e também outros grupos não religiosos; e a formulação da contribuição específica do cristianismo no diálogo em busca, que pelo seu próprio conteúdo permita realmente um diálogo, e não uma imposição de uma “verdade dogmática” sobre outros grupos, ao mesmo tempo em que não se perca num relativismo que apague a identidade da tradição cristã. Sem dúvida, o primeiro desafio é mais fácil do que o segundo.
Mesmo que não analisemos aqui se o cristianismo ou outras religiões têm hoje a capacidade de contribuir na solução destas graves crises, devemos reconhecer que as grandes tradições religiosas têm, pelo menos, a obrigação de tentar. Por outro lado, pessoas e grupos interessados na superação desta grande crise, que tem sem dúvida aspectos espirituais e éticos, mesmo que não compartilhem de nenhuma crença religiosa, têm muito a ganhar estando abertos às contribuições que podem vir das teologias e das experiências religiosas.
A este respeito, tratando dos grandes desafios do nosso tempo, Ervin Laszlo, um dos principais expoentes da filosofia dos sistemas e da teoria geral da evolução, escreveu: “A ciência não postula questões do sentido último nem as da verdade, para não falar da vontade e os propósitos divinos. A arte entra ocasionalmente em temas de significação transcendental, mas os trata de um modo estético e intuitivo, e não se maneira sistemática e explícita. Em todo caso, os seres humanos tem algo mais que razão científica e sensibilidade estética. Existe também uma dimensão espiritual que nem a ciência e nem a arte podem satisfazer plenamente. A religião está para responder a esta necessidade.”[9]
5.
O fato maior, ou pelo menos um dos fatos maiores, do nosso tempo é a brutal concentração de riqueza, com a conseqüente exclusão social, e a insensibilidade de muitos frente a este problema. Ao colocar a exclusão social como o tema-guia da nossa reflexão neste ponto, não estou querendo negar a importância da crise ecológica. Mas como esta crise não se dá de maneira homogênea no planeta, são os pobres os que sofrem primeiro e com maior intensidade também os efeitos dessa crise. Pois, com a mercantilização do espaço geográfico, lugares menos afetados serão privilégios dos que poderão pagar os seus preços, sobrando aos pobres espaços de maior degradação ambiental.
Segundo os Informes de Desenvolvimento Humano da ONU, a quantidade de riqueza cresceu enormemente neste século, mas mesmo assim os pobres continuam mais pobres ainda. No ano de 1900, o consumo mundial que era aproximadamente de 1,5 trilhão de dólares, passou para 12 trilhões de dólares em 1975, e chegou a 24 trilhões em 1997. Apesar deste crescimento espantoso, os vinte por cento mais pobre da população mundial consomem hoje menos do que consumiam em 1900. Para se ter uma noção da brutal concentração de renda, basta citar o fato de que 225 pessoas mais ricas do mundo possuem uma riqueza equivalente à soma da renda anual de 47% da população mundial mais pobre.
Um outro exemplo. Os europeus gastam onze bilhões dólares por ano em sorvetes. Dois bilhões a mais do que a quantia necessária para levar água potável para toda população mundial que ainda não tem acesso a este bem fundamental para uma vida saudável. Ao mesmo tempo, trinta e sete mil crianças morrem todos os dias por problemas relacionadas com a pobreza, como ingerir água contaminada e resíduos tóxicos.
É claro que não estou propondo que os europeus devam parar de tomar sorvetes, muito menos insinuando que é o consumo de sorvetes que causa a morte dessas crianças. Mas, há algo de errado! Isto fica mais patente quando lembramos que a pobreza não é um fenômeno exclusivo da África ou de outras regiões do assim chamado Terceiro Mundo. Mesmo nos países do Primeiro Mundo estão aparecendo cada vez os bolsões de pobreza, enquanto que nos países do Terceiro Mundo estamos assistindo bolsões de riqueza extrema e ostentação.
O que agrava este problema é a insensibilidade social frente a ele. A exclusão social da grande maioria da população mundial não é mais vista como um problema social, mas no máximo como objeto de caridade de alguns indivíduos bem intencionados. O desmonte dos Estados de Bem Estar Social, nos países que funcionavam, e o corte nos poucos programas sociais dos países do Terceiro Mundo revelam esta insensibilidade em termos de sociedade global. Mesmo que o FMI, através do seu diretor-geral, diga que é importante solucionar o problema da pobreza extrema, o que impõe de fato são programas de ajuste econômico que começam com corte nos gastos sociais.
Não basta também ficarmos repetindo que toda a culpa é do neoliberalismo, isentando assim o resto da humanidade da sua parcela de responsabilidade neste processo. Veja bem, eu disse parcela da responsabilidade, e não culpa. Mais importante do que encontrar um bode expiatório em quem descarregar toda nossa raiva e indignação, é começar a tentar entender como é possível que a sociedade pode funcionar com uma cultura de insensibilidade como essa. Se não conseguirmos entender e criticar a cultura e a espiritualidade que sustentam este cinismo, não conseguiremos nem colocar estas graves problemas na pauta de uma discussão séria e ampla na sociedade.
Acredito que este ponto pode e deve ser um catalisador de diálogos sérios e frutíferos entre as diversas denominações cristãs, entre as diversas religiões e entre os que professam uma religião e os que não professam. A verdadeira crise do cristianismo só poderá ser superada na medida em que os interessados assumam os problemas fundamentais da humanidade hoje como objeto de diálogo e de cooperação. Deixando, assim, de lado as “pequenas” diferenças doutrinárias e superando a tentação de fazer do crescimento das suas igrejas o objetivo último do seu cristianismo. Acredito também que esta é a melhor forma de se estabelecer diálogo relevante e frutífero entre as religiões e entre crentes e não-crentes.
6.
A insensibilidade social que domina o mundo de hoje não pode ser explicada por uma possível decadência moral ou religiosa das pessoas. Pois, esta insensibilidade não é uma exclusividade das pessoas ditas imorais ou insensíveis no seu relacionamento com outras pessoas. Mesmo pessoas sensíveis nas suas relações interpessoais compartilham desta atmosfera da insensibilidade ou indiferença em relação aos problemas estruturais. Para uma primeira aproximação a este problema, no intuito de colaborar neste diálogo, quero tratar desta “atmosfera” cultural a partir de três conceitos: a meritocracia, a cultura do contentamento e a cultura do consumo.
A meritocracia surgiu como uma ideologia emancipatória lutando contra os privilégios hereditários e corporativos do mundo feudal e da nobreza e propondo que as pessoas fossem avaliadas por seus méritos pessoais. E a partir da Revolução Francesa tornou-se o critério fundamental em nome do qual se lutou contra todas as formas de discriminação social.
Mas como todas instituições ou ideologias, emancipatórias ou não, a meritocracia não escapou das ambigüidades e paradoxos humanos e sociais. Como ela se baseia na seleção e premiação dos melhores por meio dos desempenhos individuais, esta desigualdade funcional, com tempo acabou se convertendo em desigualdade social, e assim no critério de discriminação social das sociedades modernas. Isto é, a meritocracia que foi um instrumento fundamental na luta contra a discriminação social tornou hoje um dos elementos básicos de discriminação da sociedade moderna.
Esta tendência é agudizada pelo neoliberalismo que propõe o desempenho como o único critério legítimo e desejável de ordenação social das sociedades e imputa ao indivíduo toda a responsabilidade pelos resultados de suas vidas, não levando em consideração quaisquer outras variáveis. “Por essa lógica, o progresso e o fracasso das pessoas são vistos como diretamente proporcionais aos talentos, às habilidades e ao esforço de cada um, independentemente do contexto.”[10]
Este problema foi também abordado por John K. Glabraith sob o conceito de “cultura de contentamento”. Segundo ele, os integrados no mercado, os que estão satisfeito com o atual sistema acreditam que “não estão fazendo mais do que auferir o seu justo merecimento. (…) se a boa fortuna é merecida ou se é uma recompensa do mérito pessoal, não há justificativa plausível para qualquer ação que possa vir a prejudicá-la ou inibí-la -que venha a reduzir aquilo que é ou poderá ser usufruído.”[11] Os excluídos, portanto, estariam recebendo somente e nada mais do que o merecido.
Quando esta cultura se torna hegemônica, não há razão aparente em se preocupar com os pobres e excluídos, muito menos com a justiça social ou solidariedade. Tanto a noção de meritocracia dos neoliberais quanto a cultura de contentamento são expressões modernas da teologia da retribuição, presente nas grandes religiões da humanidade. Segundo esta teologia, Deus ou os deuses retribuem a cada segundo o seu merecimento. Os bons são recompensados com uma boa vida, e os maus com sofrimento. Como não pode haver uma justiça mais justa do que a divina, os que sofrem devem encarar o seu sofrimento como um processo de purificação ou pagamento de uma dívida imperdoável e, deste modo, aceitá-lo; enquanto que os que vivem com abundância devem gozar a sua boa vida, sem se preocupar com os que sofrem. Algumas doutrinas religiosas mais radicais chegam a afirmar que não se deve ajudar os que sofrem, pois isto seria atrapalhar o processo de purificação dos pecadores. Quem tenta ajudar os pobres e os sofredores estaria, na verdade, fazendo um mal a eles, pois retardariam o seu processo de purificação.
Na versão neoliberal da teologia da retribuição, o todo poderoso e onisciente juiz não é mais Deus ou deuses das religiões tradicionais, mas sim o mercado. Pois, segundo os neoliberais, é ele que distribui de modo mais justo as riquezas e as rendas de cada pessoa conforme a sua capacidade e merecimento. E esta distribuição não pode ser questionada, limitada ou modificada pelas intervenções do Estado ou dos movimentos sociais.
Quando o sucesso econômico se torna o critério da “decência” ou dignidade humana, não é de se estranhar que a busca pelo dinheiro seja vista como uma finalidade em si, como a última finalidade da vida humana. Eu poderia citar aqui alguns dos famosos textos de Max Weber sobre esta inversão que ocorre no capitalismo, mas acho que seria mais “atual” se citasse uma figura mundial como George Soros, o mega especulador financeiro.. Ao escrever sobre a existência de um princípio unificador efetivamente dominante no sistema capitalista global, ele diz: “Esse princípio é o dinheiro.”[12] Segundo ele, em uma condição de rápida mudança como a nossa, em que se enfatiza a competição e avalia o sucesso em termos monetários, o dinheiro transforma-se num fim em si mesmo. “Os que conquistam o sucesso talvez não saibam o que fazer com o dinheiro, mas pelo menos têm a certeza de que as outras pessoas invejam o seu êxito. É possível que seja o suficiente para impulsioná-los para a frente indefinidamente, apesar da falta de qualquer outra motivação.”[13]
Esta obsessão pelo dinheiro encarada como um fim em si mesmo tem um paralelo ou um espelhismo na nossa sociedade: a obsessão pelo consumo como um fim em si mesmo, independente da utilidade ou valor intrínsecos da mercadoria. Por questão de brevidade, vou citar um texto de Z. Bauman: “Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o ‘manter-se ao nível dos padrões’ outrora prometeu: não há padrões a cujo nível se manter – a linha de chegada avança junto com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las.”[14]
As pessoas devem correr em uma corrida sem fim, buscando objetos de desejo que mudam rapidamente. Consome-se para sentir-se vivo, reconhecido e aceito por outros. O problema é que os objetos de desejos que prometem reconhecimento e aceitação por outros deixam muito rapidamente de ser estes portadores deste reconhecimento. Assim, a busca frenética recomeça assim que se consegue adquirir um objeto de desejo. A utilidade dos produtos e o usufruir das suas qualidades não são mais importantes. O importante é consumir, principalmente mercadorias, bens materiais ou simbólicos, que causem inveja nos outros.
A ideologia da meritocracia e a cultura do contentamento levam as pessoas a não considerarem a pobreza e a exclusão social como um problema social, mas sim como uma realização de uma justiça transcendente. A do mercado transcendentalizado. Deste modo, as vítimas são transformadas em culpadas. E a cultura do consumo faz as pessoas olharem fixamente, obsessivamente, no seu objeto de desejo de consumo e assim não as deixam nem enxergar que os pobres existem. A ver que as vítimas não estão somente lá, no canto, mas existem como pessoas. As vítimas culpabilizadas desaparecem, são encobertas. Só aparecem no cenário da sociedade, aos olhos dos integrados no mercado, dos “satisfeitos”, como uma ameaça ou como feiúra.
7.
A crise não é só do cristianismo, mas também do nosso mundo. E a crise do mundo não é só econômico-social-ecológica. É também uma profunda crise espiritual. Perdemos o sentido humano das nossa vidas.
Poderá o cristianismo superar a sua crise espiritual? Poderá o cristianismo voltar a dar uma contribuição relevante para a humanização do nosso mundo? Sim, se as suas lideranças deixarem de lado a sua preocupação quantitativa, se deixarem de ver no crescimento das suas igrejas a finalidade das suas existências. Cristãos que buscam acima de tudo o crescimento das suas igrejas também não conseguem ver os pobres e as vítimas largadas, jogadas, encobertas, nos cantos do mundo e das nossas vidas. Estão no mesmo vazio espiritual, no sentido mais profundo da palavra, dos que estão imersos na cultura de consumo e de contentamento.
Para os que ainda conseguem lembrar o que disse Jesus: “o que fizerdes a um desses meus irmãos mais pequenos, foi a mim que fizeste”, o desafio não é pequeno. No aspecto da crítica ao que alguns teólogos, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert e Júlio de Santa Ana, chamaram de “idolatria do mercado” já há um bom material. Aos poucos esta crítica está sendo reproduzida em outros ambientes acadêmicos e sociais. Mas, devemos reconhecer que ainda continua um assunto de minoria e que poucos teólogos estão trilhando este caminho não muito fácil da crítica teológica da economia ou da relação entre teologia e economia.
Mais difícil ainda é a segunda parte. Ainda não sabemos muito bem o que propor, nem como propor sem cair na tradicional arrogância cristã de se crer que possui a última verdade absoluta. O desafio de construir uma alternativa ao atual modelo de globalização e de relacionamento com o nosso meio ambiente é gigantesco e exige a participação de muitos e articulações em níveis ao mesmo tempo locais, regionais e planetário. Isso significa que devemos aprender também a formular e apresentar as contribuições específicas da nossa tradição cristã em uma linguagem que seja compreensível, razoável e proveitoso mesmo para aqueles que não experienciaram a fé cristã ou que não compartilham da nossa tradição espiritual, ou que não professam nenhum religião.
Será que conseguiremos?
—
[1]Um resumo esquemático da conferência foi publicado no Boletim ASTE, jun/99, São Paulo.
[2]Pe Marcelo é hoje um fenômeno da mídia. Seus CDs vendem milhões de cópias e suas missas-shows reúnem multidões e é uma presença constante na TV.
[3]COMBLIN, José. Nós e os outros: os pobres em casa num mundo globalizado?, mimeo. 1999.
[4]Idem, ibidem.
[5]Idem, ibidem.
[6]SEGUNDO, Juan Luis. Massas e minorias na dialética divina da libertação. São Paulo: Loyola, 1975, p. 11.
[7]HUNTINGTON, Samuel . O choque das civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 54 e 62.
[8]CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 2). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 17 e 84.
[9]LASZLO, Ervin. La gran bifurcación. Barcelona: Gedisa Ed., 1990, p. 74.
[10]BARBOSA, Livia. Igualdade e meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 26.
[11]GALBRAITH, John K.A cultura do contentamento. São Paulo: Pioneira, 1992, p. 12.
[12]SOROS, George. A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 162.
[13]Idem, ibidem, p. 163.
[14]BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 56.
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