O lugar da teologia no meio universitário

Autor: Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução
No sistema universitário brasileiro, a teologia sempre ocupou um não-lugar, ou, no máximo, um lugar marginal, em Faculdades confessionais. Somente a partir dos anos 80, começaram a ser reconhecidos programas de Pós Graduação stricto sensu em Teologia, e apenas em 1999 foi regulamentado o reconhecimento de cursos de Bacharelado em Teologia. Essa realidade é devida principalmente aos seguintes fatores: (1) a veia positivista ou, no melhor, iluminista, de nossas Universidades, especialmente as públicas; (2) falta de interesse na regulamentação por parte das Igrejas Cristãs; (3) falta de iniciativa, por parte de Seminários, em buscar a regulamentação.
Hoje em dia a situação já avançou significativamente, embora ainda haja grande dose de preconceito a ser vencida. Na área da Pós Graduação, existem oito instituições reconhecidas pela CAPES oferecendo Mestrado e/ou Doutorado em Teologia ou Ciências da Religião, das quais apenas uma é pública, a Federal de Juiz de Fora; todas as demais são instituições confessionais. Já há três cursos de Bacharelado em Teologia reconhecidos, e mais de vinte autorizados. O CESUMAR deve ser congratulado pela iniciativa de abrir o seu curso de Bacharel em Teologia, pois é a primeira instituição não confessional a fazê-lo.
Diante destes brevíssimos dados históricos, constata-se que, para discutir apropriadamente o nosso tema, é necessário fazer uma incursão pela história da Teologia enquanto atividade acadêmica, especialmente no período moderno, para podermos enfocar a teologia na América Latina e os desafios que a inclusão da teologia na Universidade brasileira nos proporciona. Desnecessário dizer que apresento apenas uma visão possível da questão. Da mesma forma, levando em consideração o ambiente, o tempo disponível e o auditório, optei por não incluir nesta fala citações e notas de rodapé, apenas indicando ao final os principais recursos bibliográficos usados para sua elaboração.

1. Paradigmas da Teologia Cristã
Adaptando as considerações desenvolvidas por E. Farley e James Fowler, pode-se dizer que a história da teologia cristã conheceu três grandes paradigmas reguladores, a saber:
o paradigma da teologia habitual – dominante desde as origens das Igrejas Cristãs até o início da Idade Média, no qual a teologia era um habitus de vida e estudo, concebida como conhecimento de Deus, construída por meio das disciplinas da oração, estudo e participação litúrgica. Objetivava, então, a formação de pessoas, lideranças e das comunidades eclesiais cristãs. Seus principais sujeitos foram os Pais da Igreja, a hierarquia sacerdotal cristã e os Concílios cristãos. A teologia se desenvolveu principalmente em diálogo crítico com os ataques que a Igreja sofria, tanto internamente (pelas “heresias”) quanto externamente, por religiões e filosofias concorrentes. Nesse período, foram definidas as grandes linhas da teologia enquanto atividade acadêmica, especialmente a sua vinculação com a reflexão filosófica, seja mediante acordo metodológico, seja mediante a recusa das premissas do saber filosófico;
o paradigma da teologia científica – dominante durante a Idade Média até a Contra-Reforma. Nesta era, a teologia constituía o arcabouço ordenador de todo o conhecimento humano, bem como o das nascentes Universidades na Europa. Neste período, a metodologia teológica seguiu, em grande medida, a do paradigma anterior, com alterações mais significativas nas ênfases metodológicas, nas relações com a Filosofia, e, principalmente, na função da teologia, que ultrapassa as fronteiras eclesiais e assume um papel determinante em todo o desenvolvimento do saber europeu – a teologia sendo a rainha dos saberes de então. Nomes como os de Abelardo e Tomás de Aquino figuram entre os principais protagonistas da teologia, colocando em segunda plana as hierarquias eclesiais e Concílios, embora subordinando-se aos mesmos;
o paradigma da teologia disciplinar – nascendo com a Modernidade e predominando até os diais atuais (ainda que sob os efeitos da crise de transição destes últimos anos da Modernidade), este paradigma se caracteriza por: subordinação da teologia aos imperativos do mundo acadêmico, devido à perda de prestígio e poder das Igrejas no campo universitário e do saber em geral. Essa subordinação foi transformando, cada vez mais, a teologia em uma “ciência”, ou, melhor, em um sistema disciplinar de conhecimento, dividido em áreas do saber teológico, ou em disciplinas particulares que foram desenvolvendo lealdades e metodologias diversas, conforme as ciências e os departamentos universitários com os quais passou a se vincular. Os sujeitos da teologia foram se tornando cada vez mais os teólogos profissionais, seja aqueles a serviço das Igrejas Cristãs, seja aqueles mais diretamente vinculados às Universidades e desenvolvendo lealdades às mesmas, mesmo que às expensas de sua lealdade eclesial. Nesse tempo, a teologia enfrentou os grandes conflitos que o desenvolvimento da racionalidade moderna apresentou às Igrejas e à adesão à fé cristã individualmente. A teologia passa a se ver, cada vez mais, como ciência nos meios universitários, e como reflexão doutrinária-dogmática nos meios eclesiais. Conflitos foram gerados entre esses dois grandes ambientes do fazer teológico, e cada vez mais a teologia passa a ser atividade de profissionais, e ser encarada com desconfiança pelas membresias das diversas denominações cristãs.

2. As disciplinas teológicas na Modernidade
A teologia, enquanto atividade acadêmica, foi se organizando ao redor de quatro grandes eixos disciplinares: a Teologia Sistemática, a Teologia Histórica, a Teologia Bíblica e a Teologia Prática – terminologia esta em grande medida derivada da atividade acadêmica de F. Schleiermacher (lembrando que esta terminologia reflete principalmente a prática teológica no meio protestante, enquanto nas demais Igrejas Cristãs a terminologia é algo diferentes, embora no conjunto disciplinar as diferenças sejam apenas superficiais).
A Teologia Sistemática foi assumindo, neste paradigma, o papel de mais importante eixo disciplinar da teologia. Desenvolvendo-se como uma reflexão sistemática sobre as verdades da fé cristã, seu método privilegiou o diálogo com a Filosofia e a elaboração de grandes compêndios sistemáticos, coerentemente organizados e visando abranger todo o universo do saber teológico. A partir desse diálogo privilegiado com a filosofia, várias correntes de Teologia vêem sendo elaboradas até agora, sendo vários os conflitos entre esses sistemas; particularmente o conflito entre os sistemas teológicos tipicamente acadêmicos e aqueles tipicamente eclesiais. Parafraseando Nietzsche e Foucault, pode-se dizer que na Teologia Sistemática se concentrou a vontade de verdade de teólogos acadêmicos e eclesiais. Não é possível, aqui, dar conta da riqueza de produção teológica sistemática e da variedade de sistemas construídos no período.
A Teologia Histórica, desde o início deste paradigma, foi uma disciplina teológica auxiliar, a serviço da construção dos grandes sistemas teológicos ou doutrinários, conforme o espaço de produção teológica. Seu parceiro privilegiado de diálogo era a história da filosofia, e visava uma ordenação cronológica e temática progressiva do saber teológico – no meio acadêmico – permitindo, assim, a distinção entre verdades teológicas racionais e crenças religiosas. Nos meios eclesiais, a Teologia Histórica visava primariamente a legitimação das doutrinas de cada denominação cristã. Daí os diferentes nomes pelos quais esta disciplina veio a ser conhecida: história dos dogmas, história das doutrinas, história da teologia, história do pensamento cristão.
Inicialmente uma disciplina auxiliar da Sistemática, no século XX a Teologia Bíblica passa a ser exercida com grande autonomia e passa a disputar com a Sistemática o papel de rainha das disciplinas teológicas. Nos meios eclesiais, a teologia bíblica é construída a partir da metodologia da exegese histórico-gramatical, e estava a serviço da manutenção da verdade dos sistemas doutrinários confessionais. Especialmente no setor protestante, a Teologia Bíblica teve um grande desenvolvimento, dada a profunda vinculação que a verdade tem, nessas Igrejas, com a Escritura Cristã. Nos ambientes acadêmicos, a Teologia Bíblica tem como método principal a exegese histórico-crítica, e ora era exercida como um ramo da teologia histórica a serviço da sistemática, ora como um ramo autônomo, buscando a consistência científica necessária para seu estabelecimento e sua validade em contradistinção à teologia sistemática. Como nos casos anteriores, é impossível aqui dar conta da imensa produção na área.
O quarto eixo disciplinar da teologia na Modernidade foi o da Teologia Prática. Esta sempre esteve no último lugar em termos de importância no panteão das ciências teológicas. Nos meios acadêmicos, a Teologia Prática foi exercida principalmente como uma teologia sistemática aplicada, derivando daquela as suas temáticas e metodologias, servindo como uma tecnologia. Nos meios eclesiais, a Teologia Prática esteve subordinada aos interesses e necessidades organizacionais das Igrejas Cristãs, também como uma tecnologia teológica, não ocupando um lugar autônomo, tornando-se principalmente uma teologia do ministério sacerdotal (ordenado) das denominações cristãs. Apenas na segunda metade do século XX a Teologia Prática, passa a disputar espaço com as demais disciplinas teológicas e se constituir autonomamente, desenvolvendo sua metodologia e objetivos específicos. Embora a produção autônoma da Teologia Prática seja relativamente recente, também não é possível neste curto espaço de tempo dar conta da sua riqueza.

3. A crise da teologia disciplinar
Embora ainda predominante, o paradigma disciplinar da teologia está em crise, juntamente com a crise do saber moderno em geral. A crise do iluminismo e do projeto moderno racional-científico, comumente conhecida como pós-modernidade, também lançou seus efeitos sobre a atividade teológica. A fragmentação do sujeito, da razão e das ideologias, que colocou em xeque os grandes modelos racionais e científicos da Modernidade, também produz efeitos relativamente devastadores nos círculos teológicos, especialmente nos acadêmicos. Poderíamos gastar um longo tempo, aqui, debatendo sobre os contornos dessa crise externa à teologia, entretanto, sou obrigado a dirigir nossa atenção aos aspectos mais internos da crise do paradigma disciplinar.
No hemisfério norte, o paradigma disciplinar da teologia é desafiado pelo menos em três fronts, todos construídos a partir do período entre as duas Guerras Mundiais, alcançando seu clímax após a II Guerra Mundial. No campo da ação eclesial, desdobrando-se para dentro das Universidades, a reflexão missiológica promove sérias críticas ao predomínio da forma sistemática e abstrata de fazer teologia, convocando a teologia a profunda reflexão sobre a missão e o papel das Igrejas Cristãs. Especialmente presente nos grandes Conselhos interconfessionais protestantes – o Conselho Mundial de Igrejas e a Aliança Evangélica Mundial sendo os nomes mais representativos – a missiologia vai se desenvolvendo como ciência teológica relativamente autônoma e passa ocupar cada vez mais espaço, tanto nas Igrejas quanto nos círculos acadêmicos. Entre os praticantes mais típicos da teologia, as correntes da Teologia Neo-Ortodoxa (Barth, Brunner, Tillich, etc.) e da Teologia Política (Metz, Moltmann, etc.) foram as principais promotoras da crise da teologia sistemática, convocando a um modelo de teologia mais abrangente, includente, menos marcado pelas distinções entre as disciplinas teológicas e mais caracterizado pela unidade do saber teológico e pelo declínio da filosofia como parceira privilegiada de diálogo epistêmico. Especialmente no caso da Teologia Política, a sociologia passa a ser a grande parceira de reflexão da teologia.
A partir de meados dos anos 60 do século passado, começam a ser elaboradas as chamadas teologias contextuais, que questionam, com grande diversidade, o paradigma moderno do fazer teológico. São desafiados os modelos de racionalidade, o privilégio do profissionalismo dos teólogos e os lugares da teologia – pelas teologias feministas, negras, asiáticas, hispanas (nos EUA) e outras formas locais de saber teológico. Na América Latina, a Teologia da Libertação e a Teologia Evangélica Radical (Evangelical) exerceram forte impacto na elaboração de novos modelos de fazer teológico, especialmente entendida a teologia como uma reflexão sobre a prática ou práxis cristã na sociedade. Não mais vista como ciência, a teologia passa a ser uma reflexão crítica militante, caracterizada por uma pluralidade de sujeitos e de locais de elaboração, bem como por grande diversidade de métodos e objetivos. Estas teologias locais vieram a produzir um efeito colateral interessante: considerar a teologia enquanto tal como teologia prática (ou práxica), apoiando os movimentos mais tipicamente modernos da Teologia Prática no desbancar da Sistemática do trono do saber teológico.
A crise do paradigma disciplinar moderno, entretanto, não significa o seu fim, mas, principalmente, a existência de um tempo-espaço de transição no saber teológico, no qual são mais evidentes as incertezas e os desafios do que as certezas e respostas, seja no meio acadêmico, seja no eclesial.

4. Desafios da Teologia no meio universitário brasileiro após a Modernidade
Estando nós em um período de transição paradigmática, não é possível oferecer respostas definitivas às questões epistemológicas da Teologia. Por isso, ao encerrar nossa reflexão, prefiro apresentar um conjunto de desafios que a Teologia deverá enfrentar para encontrar e consolidar o seu espaço no meio universitário brasileiro:
Foco primário no diálogo multidisciplinar e não nas especializações disciplinares. Embora não seja possível eliminar as distinções disciplinares, a Teologia deve buscar cada vez mais a sua unidade na diversidade dos modos de se fazer e se comunicar. Teólogos e teólogas deverão ser cada vez mais capazes de dialogar com os diferentes ramos do saber humano, o que exige também a redistribuição das tarefas teológicas e a reorganização dos departamentos do saber teológico no meio universitário (construindo, cooperativamente, um novo paradigma científico-filosófico);
Foco primário no discernimento e não nos conteúdos. Sem eliminar os conteúdos conceituais, valorativos e atitudinais – o que seria de resto impossível, o papel da Teologia deveria ser, cada vez mais, o de construir habilidades de discernimento da realidade contemporânea, a fim de preparar o povo de Deus e os estudantes em geral para a ação crítica e transformadora na sociedade (construindo, cooperativamente, um novo paradigma do sujeito e da busca da verdade);
Foco primário na habitualidade e não na institucionalidade. Embora a teologia ainda venha a ser feita em espaços institucionais necessários, teólogos e teólogas precisam se perceber, mais e mais, como pessoas teológicas, desenvolvendo a reflexão teológica como um hábito de vida e para a vida transformadora das pessoas e sociedades na direção de um mundo mais harmônico, justo, interpessoal e pacífico (construindo, cooperativamente, um novo paradigma de legitimidade);
Foco primário na construção de pontes e não no estabelecimento de corporativismos, tanto nos meios eclesiais quanto nos acadêmicos. Em ambos os espaços de fazer teológico, os sectarismos e corporativismos só tendem a produzir resultados negativos, promover dissensões e desarticular a intelectualidade em seu papel cívico e público. Assim, teólogos e teólogas poderão exercer um papel significativo na superação desses conflitos artificialmente construídos pelas instituições, buscando participar ativamente na construção de novas relações entre os departamentos da Universidade, entre as diferentes confissões cristãs, e apoiando o desenvolvimento de sólidos e humanizadores diálogos inter-religiosos (construindo, cooperativamente, um novo paradigma institucional);
Finalmente, há que se ter o foco primário na futuridade e não no imediatismo do presente , ou na eternização do passado. A teologia deve se ver cada vez mais como uma mobilizadora de sonhos e utopias possíveis, como uma atividade discursiva marcada por solidariedade e esperança, uma grande parceira na imaginação de novas sociedades e novas formas de convívio humano – buscando corresponder, assim, à sua vocação fundamental de servir ao Reino de Deus, ao Deus que vem para construir, com seu povo e com toda a humanidade, novos céus e nova terra (construindo, cooperativamente, um novo paradigma identitário).

Conclusão
O curso de Bacharelado em Teologia do CESUMAR tem, assim, o grande privilégio e a não menor responsabilidade de ser protagonista na construção do lugar da teologia no meio universitário brasileiro. Gostaria de ver, em nosso meio, o desenvolvimento da reflexão teológica principalmente como uma teologia da ação transformadora, centrada em uma ampla compreensão do mistério de Deus e em um sólido compromisso ético com a formação humana – de nível superior – no mais alto grau de qualidade científica e pessoal. Podemos contribuir para oferecer à nossa sociedade e igrejas, homens e mulheres preparados para enfrentar os grandes desafios de nosso tempo, cheios não só de conhecimento, mas, especialmente, de amor solidário para que as profundas e injustas desigualdades sociais existentes em nosso Brasil venham a se tornar cada vez mais apenas uma lembrança de tempos ruins de nossa terra. Que Deus nos ajude!

Referências Bibliográficas Principais
ANJOS, M. F. dos (org.) Teologia aberta ao futuro. São Paulo. Loyola e Soter: 1997
____ Teologia e novos paradigmas. São Paulo. Loyola e Soter: 1996
BARTH, K. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo. Sinodal: 19813
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro. DP&A: 19982
LIBÂNIO, J. B. Eu Creio, nós cremos. Tratado da Fé. São Paulo. Loyola: 2000
PALÁCIO, C. Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo. São Paulo. Loyola: 2001
ROLDÁN, A. F. Para que serve a teologia? Método, história, pós-modernidade. Londrina. Descoberta:2000

Fonte: Site da FTL

* (Aula inaugural – CESUMAR – Bacharelado em Teologia)

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*