Autor: Orlando E. Costas
Contexto Histórico da Conferência I – Em junho de 1980, a Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE)ii realizou em Pattaya, na Tailândia, uma consulta sobre a Evangelização Mundial (COWE)iii.
Durante essa Consulta, um grupo de asiáticos, africanos, latino-americanos, antilhanos e negros norte-americanos fez circular uma Declaração de Preocupações, à qual diversos europeus, australianos e anglo-americanos acrescentaram suas contribuições. Dentro de poucas horas perto de um terço das pessoas presentes já havia assinado o documento.
A Declaração, dirigida à Comissão Executiva da LCWE,fazia a seguinte afirmação:
Durante o Congresso Internacional de Evangelização Mundial (Lausanne 1974) afirmou-se que ‘ a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão.’ O Congresso afirmou que ‘ nós deveríamos compartilhar da preocupação de Deus com a justiça e a reconciliação em toda a sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão’ (Pacto de Lausanne, seção 5).
Fato é, no entanto, que, à exceção de alguns nobres e louváveis esforços, a Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE) não tem demonstrado muita preocupação com as questões econômicas, políticas e sociais que, em muitas partes do mundo, são uma grande pedra de tropeço para a proclamação do evangelho. Isto está claramente evidente aqui em Pattaya, Tailândia, durante esta Consulta sobre Evangelização Mundial. Nós temos um grupo de trabalho chamado “Alcançando Refugiados”, mas nenhum que trate daqueles que são em grande parte, responsáveis pela situação dos refugiados ao redor do mundo: políticos, forças armadas, defensores da liberdade, oligarquias nacionais e os que detêm e controlam o poder econômico internacional.
Já que o mundo não é feito só de grupos de pessoas, mas também de instituições e estruturas, o Movimento de Lausanne, se quiser provocar um impacto evangelístico profundo e duradouro nos seis continentes do mundo, precisa fazer um esforço especial para ajudar os cristãos, as igrejas locais, as denominações e as agências missionárias a identificar não apenas o grupo de pessoas, mas também as instituições políticas, econômicas e sociais que determinam suas vidas e ainda as estruturas que as controlam e que atrapalham a evangelização. De fato, para ser um efetivo agente mobilizador da evangelização do mundo a LCWE (como a expressão visível do Movimento de Lausanne) terá que dar diretrizes aos cristãos que muitas partes do mundo, lutam com os problemas de discriminação racial, tribal e sexual, do imperialismo político, exploração econômica e tortura física e psicológica por parte de regimes totalitários de qualquer ideologia e com as lutas por libertação que surgem como conseqüência dessa violenta agressão.
A declaração recomendou enfaticamente que se desse à LCWE o mandato de continuar com seu ministério, mas propôs que esta implementasse quatro recomendações:
1. Que a LCWE reafirme seu compromisso com todos os aspectos do Pacto e que, de forma particular, prepare uma nova liderança que ajude os evangélicos a implementar o seu chamado, tanto para a responsabilidade social como para o evangelismo.
2. Que a LCWE encoraje e promova a formação de grupos de estudo em todos os níveis, para tratarem de questões econômicas, políticas e sociais, para darem aos evangélicos orientação específica sobre como aplicar efetivamente a afirmação do Pacto de Lausanne acerca da “preocupação de Deus com a justiça e a reconciliação em toda a sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão”.
3. Que, dentro de três anos, a LCWE convoque um Congresso Mundial sobre a Responsabilidade Social Evangélica e sua implicações para o evangelismo.
4. Que a LCWE forneça diretrizes sobre como os evangélicos que apóiam a opressão e a discriminação (entravando, assim o evangelismo) podem ser alcançados pelo evangelho e desafiados a se arrepender e a defender verdades bíblicas, e sobre como dar encorajamento e apoio a cristãos de todas as raças quando, em situações de opressão e a um grande preço, tentam manter-se fiéis ao evangelho.
A Comissão Executiva, apesar de ter-se encontrado com três dos principais patrocinadores da Declaração, não deu uma resposta formal até que toda a LCWE se encontrasse, depois da Consulta (CWE). A resposta formal, no entanto, foi procedida pela Declaração da Tailândia. Em dois parágrafos que falam diretamente nos desafios da fidelidade ao Pacto de Lausanne como um todo e não apenas a partes isoladas deste, a Declaração da Tailândia afirma:
Nós somos também servos de Jesus Cristo, sendo ele próprio tanto “o servo” como “o Senhor”. Ele nos chama, portanto, não só para obedecer-lhe como Senhor em cada área da nossa vida, mas também para servir como ele serviu. Confessamos que não temos seguido suficientemente seu exemplo de amor na identificação com os pobres e famintos, com os destituídos e os oprimidos. Mesmo assim, todo o povo de Deus deveria “compartilhar de sua preocupação com a justiça e a reconciliação de toda a sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão” (Pacto de Lausanne, seção 5).
Embora evangelismo e ação social não sejam a mesma coisa, nós reafirmamos alegremente nosso compromisso com ambos e endossamos o Pacto de Lausanne na sua totalidade. Ele continua sendo a base de nossa atividade comum, e nada que ele contém vai além da nossa preocupação, contanto que esteja relacionado com a evangelização mundial.
A resposta formal da LCWE foi dada em uma moção com quatro dimensões. A primeira parte simplesmente se referia ao fato de que a Declaração ad Tailândia já havia respondido à primeira recomendação. As outras partes da moção, no entanto, foram simplesmente frias e decepcionantes. A segunda parte declara que:
A Comissão registrou o fato de que a Comissão Executiva aprovou, em novembro passado, a proposta do LTEGivde organizar,em cooperação com a WEFTCv, uma pequena consulta sobre “A Relação entre o Evangelismo e a Responsabilidade Social”, em junho de 1982, a qual seria precedida por grupos de estudo em diferentes países e culturas. Na opinião da Comissão, estes grupos de estudo cumpririam o propósito da segunda recomendação da Declaração.
A Comissão não crê que deveria convocar um congresso mundial sobre este tópico dentro de três anos (terceira recomendação).
A terceira e a quarta partes da moção dizem que “a Comissão não acha que deveria tentar prover as diretrizes solicitadas na quarta recomendação” e que “a Comissão delega ao LTEG uma consideração posterior destes assuntos, dentro das decisões desta minuta”.
Diante de tal resposta, alguns de nós começaram a se perguntar até que ponto a LCWE estaria de fato comprometida com a totalidade do Pacto de Lausanne. Se tudo que a LCWE iria fazer para implementar o comprometimento do Pacto com a ação social e o evangelismo era “organizar uma pequena consulta…sobre “A Relação entre o Evangelismo e a Responsabilidade Social”, com o máximo de quarentas participantes; se a Comissão se recusava a, pelo menos, “tentar prover as diretrizes solicitadas na quarta recomendação”; e se, além disso, o assunto era delegado a um grupo de trabalho que tecnicamente já nem existia (Conforme decisão tomada em Pattaya, de formalmente dissolver a LTEG), então ate que ponto os cristãos ao redor do mundo deveriam levar a sério o Pacto de Lausanne, que se tornara a base para o novo mandato da LCWE?
Por mais decepcionados e insastifeitos que tenham ficado, alguns de nós com a resposta da Comissão de Lausanne, toda essa discussão trouxe à luz várias questões importantes.
Primeiro, ajudou-nos a ver que, no fundo da questão evangelistica, havia um problema cristológico: o que significa proclamar Jesus Cristo num mundo dividido por diferenças de raça e de classes? Como podem os cristãos evangélicos esperar que pessoas de outras tradições religiosas considerem seriamente a mensagem de Cristo como uma opção pessoal, quando aqueles que proclamam essa mensagem a contradizem com a própria vida?
Segundo, a discussão com a LCWE ajudou-nos a ver a importância crucial dessas questões para os cristãos evangélicos naquilo que se há de tratar no decorrer desta conferência na qualidade de Mundo dos Dois Terços, a saber, os povos oprimidos da África, da Ásia e do Oriente Médio, do Pacífico, das Américas, inclusive a do Norte, a Central e a América do Sul, e também as Ilhas do Caribe, da Europa e da Austrália. Referimo-nos aqui aos povos oprimidos que vivem nesses vários continentes. É isto que queremos dizer com “o mundo dos dois terços”.
Terceiro, a troca de idéias nos convenceu da necessidade de refletirmos sobre esta e outras questões semelhantes como evangélicos vindos do Mundo dos Dois Terços, independentemente de quaisquer vínculos, quer organizacional, quer financeiros ou ideológicos.
Foi a partir desta tríplice convicção que vários de nós lançaram as bases para uma Comunidade dos Teólogos de Missão Evangélicos do Mundo dos Dois Terçosvi, cujo primeiro fruto é esta conferência aqui em Bangkok.
Nós nos encontramos como cristãos evangélicos, tentando compreender o que significa proclamar o nome de Cristo em um mundo religiosamente pluralista e cercado de situações de pobreza, impotência e opressão. Ao nos encontrarmos aqui, une-nos não somente uma preocupação teológica mas também uma preocupação missiológica. Nosso objetivo é ajudar o movimento evangelical em geral e nossas respectivas igrejas em particular a darem acerca de Jesus Cristo um testemunho que seja biblicamente mais fiel, espiritualmente mais autêntico e sócio-culturalmente mais relevante no Mundo dos Dois Terços. Para alcançar este objetivo, primeiro precisamos compreender o problema que implica proclamar a Cristo no Mundo dos Dois Terços.
O PROBLEMA DE PROCLAMAR A CRISTO NO MUNDO DOS DOIS TERÇOS
Sem pretender de forma alguma ser exaustivo, quero fazer um breve esboço sobre os diversos aspectos do problema cristológico envolvido na proclamação do evangelho no Mundo dos Dois Terços.
Um aspecto do problema é o fato paradoxal de que a Palavra encarnada de Deus tem sido, de uma forma geral, proclamada em uma língua estranha. Ao falar em “estranha”, não quero dizer simplesmente uma língua material desconhecida. Portanto, não estou me referindo à incapacidade daqueles que vierem a nossos respectivos países e comunidades a fim de comunicar o evangelho na linguagem e idiomas locais. Certos evangelistas de massa e missionários interculturais ainda dependem de intérpretes locais na sua pregação, pois nunca se importam de aprender a língua local. Porém, mais do que uma ignorância material do vernáculo é o fato de que as referências simbólicas que têm acompanhado a proclamação do evangelho são estranhas à realidade cultural e as experiências sociais dos ouvintes. De fato, a proclamação de Cristo não é um esforço lingüístico, mas sim um evento dinâmico de comunicação que envolve a totalidade da vida. Quando olhamos ao nosso redor, no Mundo dos Dois Terços, para ver as referências concretas que caracterizam a comunicação do evangelho, nós encontramos, na grande maioria dos casos, atividades de igrejas que não são coerentes com a situação local,, liturgias que expressam o evangelho em outra cultura, uma arquitetura irrelevante, formas artísticas e músicas estrangeiras. É de admirar que, após tantos séculos de trabalho missionário, os seguidores de Cr5isto na Ásia não ultrapassem 3% da população? E que tanto a África quanto a América Latina tenham visto o surgimento de inúmeras igrejas independentes e movimentos religiosos mais novos, em protesto contra a estrangeirice e desconformidade que têm caracterizado a proclamação do evangelho?
A desconformidade da Palavra tem como corolário o que se poderia descrever como sendo a face desfigurada de Jesus. O Jesus proclamado em tantas e tantas situações no Mundo dos Dois Terços tem recebido faces que, além de serem destituídas da realidade política, econômica, racial, social e cultural do povo, o foram também do próprio testemunho dos Evangelhos do Novo Testamento. De fato, na proclamação da igreja Jesus geralmente aparece com todas as faces imagináveis, menos uma que reflita características locais.
A desfiguração de Jesus tem ocorrido tanto a nível conceitual como a níveis historicamente concretos. Assim, na África do Sul, além da predominância de uma imagem branca na linguagem cristológica da igreja histórica, também tem havido uma identificação formal de Jesus com a ideologia dominante e com a estrutura de poder elitista.Jesus tem -se tornado, portanto, uma projeção do africano, o Senhor dominador e soberano que estabeleceu um harmonioso universo onde cada parte pode-se desenvolver separadamente.
Nas Índias Orientais, na África de língua inglesa e na Índia, vários séculos de domínio colonial deixaram uma impressão cristológica muito definida na consciência do povo dessas terras. Junto com o tipo de arquitetura britânica e as estruturas e estilos de governo que o império britânico deixou atrás de si, ficou uma igreja do tipo britânica e, portanto, a memória de um Cristo tipicamente britânico.
Coisa parecida se pode dizer da desfiguração de Jesus através do imperialismo e consumismo anglo-americano. Nos lugares onde os Estados Unidos têm sido politicamente ativos, imprimiu-se na consciência do povo um salvador pragmático e superdominador com a face plástica, que continua sendo reforçado através da religiosidade consumista que caracteriza uma boa parte das atividades missionárias e da teologia provenientes da América do Norte.
A Espanha, por sua vez, conforme diz o conhecido teólogo escocês John Mackay em sua famosa obra The Other Spanish Christ (“O Outro Cristo Espanhol”)vii, deixou na América Latina a imagem de um “menino Jesus” e de um imponente salvador moribundo sobre um crucifixo. Mas aí os missionários protestantes propuseram uma substituição dessa imagem pelo do Senhor no túmulo vazio, deixando para trás a cruz e sua morte sofredora. Assim, “impotência” e “inocência” forma substituídas, na pregação protestante, pela imagem do “poder” e da “impassividade”.
Nas últimas décadas, fomos testemunhas de novas desfigurações: a imagem de Che Guevara como um Cristo latino-americano; na África, a imagem de um defensor da liberdade; na Índia, a imagem de um defensor da liberdade; na Índia, a imagem de u guru hindu ou, alguns lugares do Sul da Ásia Ocidental, uma modalidade cristã de Senhor Buda. Onde quer que se vá no Mundo dos Dois Terços encontram-se reproduções distorcidas de Jesus Cristo. Seja por imposição ou por reação, seja como resultado do transplante cultural que acompanhou o colonialismo ou a rebelião cultural que tal experiência opressora provoca, somos fortemente pressionados a reconhecer a verdadeira face do Jesus de Nazaré tal como descrita no Novo Testamento.
Como podemos, pois, proclamar o Senhor Jesus Cristo, se temos uma representação distorcida de Jesus de Nazaré?
O problema cristológico na proclamação do evangelho consiste na forma como Cristo tem sido manipulado, sendo tratado como uma posse privada. Tal tratamento geralmente é fruto de uma religiosidade pietista individualista, a serviço de interesses econômicos provenientes de poderes oligárquicos e metropolitanos. Para que não compreendam mal, diga-se, a bem da verdade, que o pietismo, como uma expressão de fé ou como um tipo de espiritualidade evangélica que enfatiza a oração pessoal, a leitura da Bíblia e uma alta moralidade pessoal, é um fator positivo na proclamação do evangelho. Mas uma espiritualidade que isola Cristo da realidade e o interioriza no domínio individual do ego privado é alienante e mortal para a vida cristã e para a missão. E não se pode negar que, incontáveis situações do Mundo dos Dois Terços, é exatamente assim e se percebe e se proclama a Cristo. Não é de admirar que se descubra que tal privatização de Cristo é característica de muitas expressões do movimento missionário moderno e das igrejas a ele relacionadas. Nem é coincidência que a base financeira desse movimento se encontre, na maioria das vezes, no sistema de empresas privadas. Não causa estranheza que, tanto nos dias de William Carey como recentemente, com a LCWE e a WEF, a espinha dorsal financeira de uma porção de igrejas e sociedades missionárias que nós representamos vai ser encontrada entre aqueles que possuem riqueza, conhecimento e poder –ou, melhor dizendo, entre os detentores do controle?
Não são as formulações cristãs geralmente sujeitas a formas que são congruentes com as teologias e políticas esclesiásticas de agências e igrejas doadoras, e ao compromisso ideológico de seus respectivos países? Esta é uma questão muito séria, que para muitos de nós não é tão fácil admitir. No entanto, ela pode ser verificada aplicando-se testes e análises sociológicas às declarações cristãs e às práticas eclesiásticas de nossas respectivas igrejas e instituições cristãs.
A conseqüência de tal privatização, desfiguração e desconformidade tem sido uma distorção, tanto da teologia como da prática da evangelização do Mundo dos Dois Terços. Que tipo de evangelismo se pode desenvolver com um Cristo tão distorcido? A resposta é: só um evangelismo que se revelará coerentemente com sua mensagem.
Não é verdade que toda ênfase que nós testemunhamos hoje na estratégia e no método evangelístico implica em uma minimização do conteúdo do evangelismo? E quando o conteúdo de um empreendimento acaba sendo distorcido?
Na minha opinião, nós, como evangélicos, presumimos com muita facilidade que a mensagem foi claramente selecionada. O resultado disso é uma concentração missiológica na estratégia e enfraquecimento de seu fundamento cristológic
o. Em Lausanne, conversando com u amigo do Terceiro Mundo, eu lhe perguntei por que é que, quando se distribui a criatividade, parece que os evangélicos nunca estão perto para pegar sua parte. Ele me respondeu: “Se nós temos a verdade, qual a necessidade de sermos criativos?” Isto é uma parte do problema com o que estamos lidando. Nós pressupomos muito facilmente que a questão da mensagem evangelística está resolvida. Portanto, continuamos como evangélicos, colocando uma concentração missiológica no “como” da questão da estratégia e do método.
Se a minha opinião tem alguma validade, então nós temos razão de estar preocupados, não só com o evangelismo, mas também com a ética cristã e com toda a vida e a missão da igreja. Que tipo de igreja se pode construir sobre uma cristologia falha? Minha resposta é: uma igreja muito fraca. Que tipo de ética pode vir de uma fé distorcida? Não uma fé muito consistente – ou, para ser claro: uma fé herética.
O problema da cristologia na proclamação do evangelho afeta toda a vida e a missão da igreja, o comportamento ético dos cristãos no mundo e mesmo a totalidade da nossa fé cristã.
O DESPERTAMENTO CRISTOLÓGICO DO MUNDO DOS DOIS TERÇOS
A cristologia no Mundo dos Dois Terços, porém, não é só um problema evangelístico. Na verdade, a cristologia representa, no Mundo dos Dois Terços, um dinâmico e emocionante despertar. Durante as duas últimas décadas, nós fomos testemunhas, no Mundo dos Dois Terços, da redescoberta do Jesus histórico e da descoberta do Jesus da história. Inúmeros livros e artigos continuam aparecendo no mercado, não só enfatizando o Jesus histórico como um ponto de referência para a cristologia, mas também enfocando a ativa presença de Jesus na luta pelos pobres, os fracos e os oprimidos. Nossos trabalhos e discussões contém inúmeras referências a estes autores do Mundo dos Dois Terços, que se têm concentrado ou refletido seriamente na questão de Jesus Cristo em seus respectivos contextos. Ao contrário a importância de se recuperar e redescobrir a historicidade de Jesus de Nazaré como um ponto de partida fundamental para a construção de uma cristologia a partir do mundo dos oprimidos.
Da mesma maneira, nós também somos testemunhas de uma busca, especialmente na Ásia, por uma compreensão adequada do que significa o Cristo cósmico das epístolas de Paulo no contexto de outras tradições religiosas do Mundo dos Dois Terços. Será que existe uma total descontinuidade entre o Cristo cósmico e as tradições religiosas, tal como sugeriam certos missiólogos do Ocidente há várias décadas? Ou haverá uma continuidade – e, caso positivo, que tipo de continuidade?
Finalmente começamos a perceber a formulação de categorias e temas cristológicos que são, em muitos aspectos, autóctones ao Mundo dos Dois Terços e que são congruentes com o testemunho do Novo Testamento. Entre outras, duas dessas categorias e temas me vêm à mente. Uma é o conceito de Jesus Cristo como o homem das dores, acostumado com a tristeza, como revelação do próprio sofrimento de Deus. Este tema foi plenamente desenvolvido pelo teólogo japonês Kazoh Kitamori, lá pelos idos de 1947, em sua obra The Pain of God (um livro que, no Ocidente, nestes últimos anos, não tem recebido o devido crédito em todas as discussões sobre o Deus crucificado) O mesmo tema é visto na obra de seu compatriota Kosuke Koyama, em sua meditação cristológica No Handle in the Cross (1977)viii.Este tema tem também uma longa tradição na América Latina e na experiência dos negros norte-americanos, mas só começou a ser trabalhado sistematicamente e com sinceridade nos últimos dez anos, nos escritos de James Cone, Jon Sobrinho e do teólogo Choan-Seng Song.
Uma segunda categoria cristológica que tem surgido é a de Jesus Cristo como curador e juiz ferido, também identificado como o “libertador”. Esta categoria compreensiva tem-se tornado o princípio organizador para as mais famosas teologias da África, América Latina, Afro-América e Ásia.
O DESAFIO DA CRISTOLOGIA PARA A AGENDA EVNAGELÍSTICA DA IGREJA DO MUNDO DOS DOIS TERÇOS
Porque o Mundo dos Dois Terços, além de problemático para a proclamação do evangelho, é também emocionante e desafiador, os evangélicos precisam colocar esse desafio no centro de sua agenda evangelística. A fidelidade no evangelismo durante a próxima década exigirá de nós um bocado de reflexão bem profunda sobre temas cristológicos. Por exemplo: a igreja evangelística vive da promessa da constante presença de Cristo na história (Mt 28.19-20). A grande comissão, tal como nos foi dada no Evangelho de Mateus, ressalta explicitamente a promessa de Jesus Cristo de estar presente à medida que a igreja avança pelas nações, discipulando-as, batizando-as e lhes ensinando a guardar todas as coisas que ele nos mandou observar.
O Novo Testamento faz uma ligação entre esta promessa da presença de Cristo e a realidade do Espírito. Na verdade, o apóstolo Paulo declara muito categoricamente que o Espírito é o Senhor e que onde o Senhor está, aí há liberdade (2 Co 3.17). Daí surge a questão para nossas agendas cristológicas como evangélicos: onde devemos procurar a presença do Cristo pneumático no evangelismo no Mundo dos Dois Terços?
Quando João Batista perguntou se Jesus era aquele que haveria de vir ou se deveria esperar por outro, Jesus respondeu a seus discípulos com os sinais da era messiânica: “Ide, e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço” (Mt 11.4-6). Da mesma maneira, ao responder a questão sobre onde está presente no evangelismo a figura pneumática de Cristo, teremos de apontar para os sinais do reino em nosso respectivos ministérios. Um aspecto da reflexão cristológica no Mundo dos Dois Terços é a tarefa de proporcionar diretrizes para a identificação dos sinais da presença do espírito no evangelismo.
Além disso, ao falarmos do fundamento cristológico do evangelismo, é inevitável que encaremos o desafio de encarnar o nome de Jesus em situações históricas concretas.
A encarnação é um artigo fundamental na cristologia e especialmente em uma cristologia evangelística. Afinal de contas, o Cristo pneumático age na igreja e através dela, que é o corpo de Cristo.
Então, como é que a igreja encarna o nome salvador de Jesus (At 4.12) no evangelismo? O fato de não se poder falar da encarnação se mencionar a igreja indica o quão intimamente relacionada está a edificação do corpo de Cristo com o evangelismo.
Em épocas mais recentes se tem relacionado evangelismo com o crescimento de igrejas, e em Pattaya ele quase foi identificado com isso. Nós concordamos que o evangelismo deveria levar ao crescimento da igreja e deveria ser avaliado em termos disso. A questão, que nem sempre tem sido respondida, é: sobre que tipo de crescimento de igreja devemos falar e que tipo devemos buscar? Uma razão por que esta questão não tem sido tratada adequadamente é fraca cristologia que está incrustada em grande parte da mentalidade existente sobre crescimento de igrejaix.
Quando começamos a pensar cristologicamente acerca do evangelismo, é forçoso que pensemos não apenas no crescimento e nos ingredientes da edificação do corpo. Daí surge a questão: o que significa para a igreja crescer em Cristo? Se é para a cristologia servir como um princípio crítico para o pensamento e a ação do crescimento da igreja, ela terá de desenvolver diretrizes cristológicas também para os estrategistas do crescimento da igreja.
Finalmente, a proclamação de Cristo aparece no Novo Testamento em uma perspectiva escatológica. Proclamar a Cristo é anunciar a vinda do Reino de Deus. Na narrativa dos evangelhos nós aprendemos acerca de Jesus: o anúncio da aproximação do Reino de Deus tornou-se a proclamação da sua revelação em Jesus Cristo, o Senhor e Salvador do mundo.
Da mesma forma, proclamar o Reino é visto como a antecipação da segunda vinda de Cristo. Isso fica bem claro no primeiro capítulo de Atos. Referindo-se à vinda do Espírito Santo, os discípulos perguntaram: “Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (At 1.6). E Jesus lhes disse que não lhes competia sair por aí indagando acerca dos “tempos ou épocas que o Pai reservou sua exclusiva autoridade”. Ao invés disso, ordenou-lhes que testificassem dele em Jerusalém, Judéia, Samaria e até os confins da terra (At 1.7-8). Então, enquanto eles fixavam os olhos nele, em sua ascenção, o anjo lhes fez lembrar que não deveria ficar ali, parados, e que esse mesmo Jesus que fora levado aos céus haveria de voltar um dia (At 1.11). Portanto, eles deveriam ir até os confins da terra e testificar do nome de Cristo, anunciando a chegada de um novo tempo nele. Proclamar, isto é, pois, antecipar sua vinda. A questão é “como”. De que forma poderia a igreja antecipar a volta de Cristo através de sua proclamação?
Nós, evangélicos, tradicionalmente falamos muito acerca da segunda vinda de Cristo em relação ao evangelismo.Mas raramente consideramos as implicações cristológicas dessa questão, a não ser em termos muito ativistas e extra-terrenos. Portanto, isto continua sendo importante item na agenda cristológica evangélica.
Sendo esta uma conferência de teólogos provenientes do mundo dos pobres, dos impotentes e dos oprimidos, nós não pretendemos produzir nela declarações definitivas e elaboradas. A maioria de nós vem de ministérios que nos deixam pouco tempo para reflexão sistemática e que nos oferecem facilidades de pesquisa limitadas.
Viemos, no entanto, cheios de coragem, na esperança de poder prestar um serviço à igreja-em-missão no Mundo dos Dois Terços.
Nosso produto final não deverá ser julgado pelos padrões tradicionais da teologia ocidental histórica, embora reconheçamos que com ela temos aprendido muita coisa boa. De fato, nós não somente temos uma dívida para com o Ocidente por nos ter dado o instrumental e os conceitos teológicos básicos, mas também estamos abertos para aprender de suas correntes e contribuições contemporâneas. Por isso teremos, no decorrer desta conferência, dois trabalhos representando perspectivas ocidentais históricas.
O sucesso desta conferência, porém, deverá ser julgado a seu tempo, se ela vier a ajudar a igreja dos oprimidos em geral e sua variante evangélica em particular a proclamar a Jesus Cristo com mais fidelidade, a comunicar sua Palavra com mais efetividade e a representa-lo mais autenticamente no Mundo dos Dois Terços.
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