Autor: Marcos Monteiro
A palavra caridade foi criando, ao longo do processo histórico, um campo de significados, oriundo de nossa tradição religiosa, especialmente católico-romana, cujo núcleo principal seria um amor prático e desinteressado dirigido prioritariamente para os mais pobres, os famosos desfavorecidos. A figura do Padre Ibiapina, atuante na região do Cariri e da Serra da Borborema, na segunda metade do século XIX, seria a figura emblemática maior dessa nossa herança semiótica.
Pertencente às elites instruídas do Nordeste, tendo sido juiz, advogado, clérigo ordenado, encontra a sua vocação como missionário, ao estilo dos capuchinhos, levando sua pregação às pequenas cidades do sertão nordestino, efetivando uma reforma social convincente, a partir de um imaginário religioso. Era um trabalho itinerante constante, em que aplicou o restante de sua vida, a partir dos seus cinqüenta e quatro anos de idade. Morre em plena atividade, com setenta e sete anos, em 1883.
Diferente dos capuchinhos, quase sempre estrangeiros, sua mensagem não é de terror escatológico, mas de misericórdia e reconciliação. E sua mística não se enclausura na contemplação, mas se torna concreta, tanto através de gestos de acolhimento quanto de soluções estruturais concretas, como açudes, cemitérios e, a sua marca registrada, casas de caridade.
Nessas casas, órfãs, o subproduto final da desigualdade social, e mulheres expulsas de suas casas e do convívio social, por envolvimentos sexuais diversos, aprendiam a tecer, a fiar e a rezar, ou seja, a participar novamente da teia social.
Os principais relatos sobre o Padre José Antônio Maria de Ibiapina são feitos por seguidores e seguidoras, beatos e beatas, impactados por sua vida e postura. Por causa disso, vem envolvidos em uma aura de devoção que ajuda e atrapalha, ao mesmo tempo, no conhecimento do homem concreto. Desse todo complexo, emerge a figura de um homem esperançoso pela transformação da humanidade e das relações sociais, enquanto desespera cada vez mais das instituições, dos procedimentos e das elites vigentes.
Nesses relatos, política e caridade formam uma disjunção irredutível. A política seria o lugar dos vícios, do egoísmo, da hipocrisia, da bajulação e do servilismo. Nenhum espaço para a ação desinteressada, para a defesa dos interesses dos desfavorecidos. Nessa nossa luta contínua e duvidosa pela consolidação de um processo democrático, talvez a tarefa impossível seja desfazer a disjunção. Precisaríamos todos juntos encontrar meios de negociação e aproximação entre a política e a caridade.
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