Autor: Paulo Bonfatti [2]
Até algum tempo atrás, a maioria do meio acadêmico acreditava que, com o avançar das ciências, das tecnologias e do conhecimento, seria uma tendência natural do ser humano um afastamento ou uma libertação paulatina das religiões. Contudo, o que se tem observado, na contra-mão de uma maior racionalidade muitas vezes religiosament e idealizada por este meio, é que as expressões e vivências religiosas estão cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas. Causa certo espanto que ainda neste final de milênio, como que as religiões que pareciam estar nos seus últimos suspiros, estão se ejactando numa profusão de novas expressões, rearticulações, denominações e matizes.
Sem muito esforço, podemos observar como esta realidade tem se demonstrado cada vez mais evidente no campo religioso brasileiro , após uma aparente hegemonia católica. Dentro das muitas mudanças que vem ocorrendo neste campo, a que talvez venha chamando mais atenção dos estudiosos e da mídia , seria o surgimento das novas denominações de origem protestante – as igrejas evangélicas. Assim sendo, em um tempo historicamente curto, o Brasil que sustentava um título de maior país católico do mundo ganha um outro, o do segundo maior país protestante do mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos.
Dentro deste contexto, as mudanças que vem ocorrendo no campo religioso brasileiro tem sido tão rápidas que podemos nos lembrar que até há alguns anos atrás, o revelar-se evangélico era se expor a ser visto como alguém um tanto alienígena , distante da sociedade, ou seja, algo bastante pejorativo. Os crentes , como eram todos confundidos e chamados, estavam quase sempre sendo associados aos estereótipos de homens vestidos de terno, com uma Bíblia debaixo do braço, e de mulheres com saias abaixo do joelho e cabelos compridos. Eram vistos sempre distantes e arredios ao mundo e às outras pessoas de fora de suas igrejas.
Com o tempo esta visão veio se modificando pois, ser evangélico hoje tem tido uma conotação bem diferente. Atualmente, não há mais a discrição ou timidez em revelar-se, ao contrário, os evangélicos não têm se apresentado nada discretos ou tímidos e vêm crescendo e se assumindo a cada dia e cada vez mais.
Tempos atrás, as denominações evangélicas especificamente pentecostais , que estão no momento em maior evidência ainda no cenário brasileiro, tinham seus membros vistos como coitados manipulados , pobres e ignorantes . Hoje já começam a ser vistos de forma diferente: são tidos como argutos, concorrentes e empreendedores não só no mercado religioso como também no mercado financeiro (FRESTON, 1994:143). Além disso, crescem a olhos vistos o número de templos e de denominações. Seus membros já não se escondem mais, seus templos estão por todas as partes, em lugares destacados, onde outrora eram antigos e amplos cinemas e casas de espetáculos ou então são simplesmente construídos em pouquíssimo tempo. Eles estão nas ruas, realizando passeatas e anunciando Jesus Cristo, em diversos locais públicos ou em ginásios e estádios lotados.
Mesmo assim, se evitarmos ou tentarmos ignorar sua presença eles reaparecem em nossas casas em programas de rádios ou de Tv’s. Estão no dia-a-dia do cenário brasileiro e em atividades não necessariamente religiosas, competindo com êxito neste mundo externo. Estão na cultura, na política [3] , nas favelas, na mídia, no mundo virtual da internet com páginas pessoais e institucionais, nas empresas, nos presídios, nos bairros centrais, nos distantes e nos marginalizados.
Ora, o movimento evangélico, e diferenciadamente sua vertente pentecostal , já vem há muitos anos crescendo às sombras da sociedade e do meio acadêmico brasileiros (FRESTON, 1994:67). Lamentavelmente, foi tratado de início por muitos e ainda o é, por alguns, com um certo preconceito ou menosprezo. Felizmente, esta postura vem se revertendo entre os especialistas, que já vêm tratando este fenômeno com uma atenção merecida.
Para se ter idéia da importância do fenômeno do crescimento dos evangélicos, segundo a pesquisa Novo Nascimento [4] , estima-se que cem mil pessoas por ano se tornam evangélicas na região metropolitana do Rio de Janeiro . Anteriormente, o Censo Institucional Evangélico na Região do Rio de Janeiro (CIN-1992) [5] , mostrou o crescimento destas igrejas, cuja maioria era pentecostal, revelando um dado marcante: a média de uma igreja sendo aberta por dia útil.
Esta maioria evangélica pentecostal, com traços semelhantes à Renovação Carismática Católica (ORO, 1996:117), revive a passagem bíblica de Atos 2,1-13 e têm como referência central o evento de pentecostes , em que os Apóstolos receberam, com a descida do Espírito Santo, os dons de falar em línguas estranhas, os do exorcismo e os da cura. São exatamente estes dons que geralmente são experienciados dentro das igrejas pentecostais por seus membros.
Dentro deste contexto de efervescência evangélica pentecostal, sem sombra de dúvidas se destaca a Igreja Universal do Reino de Deus – a IURD. Ela tem sido na atualidade, entre muitas igrejas surgidas, a expoente máxima de um tipo de pentecostalismo que se distingue do tipo já vigente no Brasil. Por isso, justamente para fazer distinção desta nova forma de pentecostalismo, o termo pentecostal não tem sido o que os autores vêm utilizando por ser considerado genérico demais. Porém, longe de um consenso, há uma tensão entre os estudiosos na tentativa de tipologizar o pentecostalismo brasileiro. Há grande diversificação quanto à maneira de considerar esta questão, principalmente, no que diz respeito a estas novas igrejas evangélicas pentecostais e também no que as diferenciaria das demais. As novas igrejas, como a IURD, têm sido classificadas pelos pesquisadores de pequenas seitas , cura divina , pentecostais autônomas , igrejas da terceira onda , neopentecostais e pós-pentecostais . Adotaremos aqui a classificação de neopentecostal por entendermos ser a que melhor contempla este movimento pentecostal [6] .
Neste contexto, tem sido impossível falar de neopentecostalismo no Brasil sem falar na IURD, pois os pesquisadores não conseguem deixar de se espantar com o seu rápido crescimento, que surgiu a partir de uma sala de uma ex-funerária no bairro da Abolição, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1977.
Não se sabe ao certo o seu número de fiéis e nem de templos, principalmente devido ao fato de se multiplicarem a cada dia. Segundo Ricardo Mariano (MARIANO, 1996:125), o número de templos da IURD passa de dois mil, o de países com seu trabalho missionário ultrapassa o número de cinqüenta [7] e o de fiéis alcança três milhões [8] .
Para aumentar o número de fiéis, a IURD investe pesadamente na disputa por territórios do campo religioso brasileiro. Em sua concepção, entende que não há territórios cativos ou demarcados e com isso, vem conseguindo se indispor com grandes e tradicionais instituições brasileiras, formadoras de opinião, como a Igreja Católica e a Rede Globo.
A indisposição com a Igreja Católica provém de motivos que variam do famoso episódio do chute da santa [9] por um Bispo num programa de TV da IURD até a nítida preocupação com a perda de fiéis para esta e outras igrejas evangélicas (ORO, 1996:92-119) (SANCHIS, 1994:34-63) (ANTONIAZZI,1994:17-23). Já com a Rede Globo, vem da preocupação desta de se ver ameaçada e de ter que disputar a sua audiência com a TV Record, de propriedade da IURD. Como se não bastasse, a IURD vem se confrontando com a Associação Evangélica Brasileira (AEvB), que aponta na sua forma de atuação “elementos radicalmente contrários à fé evangélica e ao melhor da herança bíblica da igreja protestante e pentecostal”. Além disso, a AEvB diz que existem “imensas e irreconciliáveis diferenças entre as práticas da maioria dos evangélicos e a IURD” [10] .
Como se não bastasse todas estas indisposições, a IURD e/ou o Bispo [11] Macedo, seu líder forte e carismático (aspecto comum nas igrejas neopentecostais), foram alvos de diversas acusações e aberturas de processos criminais ligados aos seguintes crimes: estelionato, curandeirismo, charlatanismo, vilipêndio ao culto religioso, incitação ao crime, sonegação fiscal, crime contra o sistema financeiro, remessa ilegal de ouro para o exterior e apropriação indébita (BARROS, 1995:32-33) (OLIVA, 1995:154-157) (JUNGBLUT, 1992:46). Macedo já chegou até a ficar preso por doze dias após um decreto de sua prisão preventiva. Contudo, de forma inversa ao que a lógica do senso comum esperava, nada disso afetou ou afeta profundamente a IURD. Ao contrário, ela continua crescendo a passos largos e confirmando uma outra lógica , a lógica do Bispo Macedo, que diz que a IURD é como uma “igreja omelete”, que “quanto mais batem nela mais ela cresce”.
A IURD cresce, instiga, assusta e não comporta análises unilaterais. Atualmente, é a maior igreja neopentecostal do Brasil e não se encontra nenhum paralelo histórico de qualquer outra denominação protestante brasileira (MARIANO, 1995:41). Seu estigma tem se mostrado tão forte que, hoje, quando se conversa com leigos sobre evangélicos, pentecostalismo ou neopentecostalismo, sempre se tende a associá-los à IURD, que virou quase que uma marca registrada . O seu pouco tempo de existência não impediu sua crescente visibilidade, representando um papel que já faz parte do cenário brasileiro. Assim sendo, é difícil nunca ter se ouvido falar nela, tenha sido contra ou a favor .
Muito mais significativo do que isso é o fato de muitas pessoas estarem buscando e construindo um sentido para suas vidas em seus cultos e na sua forma de ver o mundo. Ou seja, a IURD cresce porque uma multidão vem encontrando dentro dela algo que não tem encontrado em outros lugares. Não se pode esconder ou apoiar-se em discursos prontos e em análises que partem sempre de referenciais monolíticos, porque o fenômeno é completamente novo. Dificilmente uma igreja evangélica chegou a um lugar de destaque como esse… Mídia? Pode ser que sim, mas seria só isso? Quantos formadores de opinião já estiveram e estão na mídia, utilizando-se dela de forma similar e não conseguiram o que a IURD tem conseguido? Querendo ou não, a IURD ajuda a construir um sentido que vem norteando profundamente as pessoas que a procuram.
Ao tentarmos compreender este fenômeno IURD, temos que perceber que estamos lidando com uma outra lógica que não obedece e nem permite raciocínios simplistas: Igreja Católica, Rede Globo, envolvimento com a justiça… nada disso parece abalar de maneira profunda o galopante crescimento desta igreja. Ao contrário, seus templos estão cada vez mais cheios e são cada vez mais numerosos. Os antagonismos que provoca, o cerco a que muitas vezes é submetida, parece sugerir um decréscimo de sua popularidade. Mas o que se verifica, vai de sentido contrário a isso.
Muitos pesquisadores têm se dedicado na busca desta outra lógica quase que imperceptível da IURD. Acreditamos que uma das abordagens que talvez nos ajudaria a desvendar esta outra lógica seria justamente, a tentativa de compreender a IURD de dentro , a partir de seus próprios valores, concepções ou categorias.
Dentro desta perspectiva, ao buscarmos compreender o fenômeno IURD não tivemos a intenção em estabelecer juízos de valores , principalmente porque se trata de uma abordagem científica. Para a frustração de alguns, não tivemos a preocupação de julgar a probidade ou não de seus líderes, apontar manipulações e explorações dos fiéis, perceber possíveis jogadas de marketing de um empreendimento pentecostal ou desvelar as verdadeiras intencionalidades de seus fundadores dentro de uma perspectiva de uma religião de mercado . Ao fazermos esta opção não judicativa [12] , é-nos claro que a fizemos não porque estas abordagens sejam totalmente equivocadas ou que não devam ser levadas em consideração. Mas sim, que elas nos pareceram facetas limitadas de um fenômeno chamado IURD que nos sugere ser bem mais amplo – não que tenhamos aqui a pretensão de abarcar tal fenômeno com esta nossa abordagem.
Assim sendo, nem “contra” e nem “a favor” desta igreja, interessou-nos saber em que mundo o seu fiel está. Como ele vive neste mundo ? E como ele vê este mundo ? Qual é a experiência da criação de sentido que ele [13] vivencia dentro de sua igreja. De antemão, podemos lembrar apesar de óbvio que, para ele, os casos de manipulação, as intencionalidades, a improbidade e as más intenções dos líderes simplesmente não existem e são inconcebíveis, pelo menos assim o serão enquanto ele estiver dentro da igreja.
Ora, para tentar nos aproximar também desta experiência do fiel da IURD, temos que ter bem claro que se está lidando, mais uma vez, com uma outra lógica. E também aqui, para compreendermos melhor esta experiência do fiel , necessitamos nos distanciar mais uma vez de uma perspectiva excessivamente externa e crítica, que visa detectar as contradições e manipulações nas estratégias dos dirigentes da IURD e a passividade e credulidade de seus membros.
referencial epistemológico que nos orientou enormemente na busca destas outras lógicas , foram as ferramentas da antropologia e da psicologia . Contudo, o enfoque que dividiremos aqui com o leitor será quase que exclusivamente o antropológico e bem menos o psicológico. O que pretendemos aqui, é levar o leitor até o mundo da IURD apontando suas concepções, idéias, visões e experiências de sua membresia que vem crescendo a cada dia.
Nesta perspectiva, observamos que quando começamos a entrar paulatinamente nesta lógica e no universo da IURD e a percebê-los mais de perto, vem à tona a existência de três aspectos – aspectos que aparecem sempre presentes e interligados na experiência religiosa dos fiéis dentro da IURD. São eles a conversão, o exorcismo e a cura [14] . Quando lidamos e observamos a propaganda, os rituais, os testemunhos formais ou informais dos membros e a fala dos pastores vemos sempre, inevitavelmente, a presença destes três elementos.
Exorcismo, conversão e cura estão presentes no dia-a-dia, perpassando todos os níveis de discursos e práticas com uma grande fluidez, demonstrando como que estão amplamente incorporados nas vivências de seus membros, obreiros e pastores. Estes elementos balizam todas as falas ou vivências de cada um dos membros da IURD e tudo que ocorre dentro dela, mesmo que os fiéis não se dêem conta desta força reguladora de uma forma clara: o que se curou ou não se curou, o que não se acreditava e começou a se acreditar… as desgraças, os malefícios feitos pelos demônios, doenças que surgiram… as entregas a Deus… curas que ocorreram com a expulsão do demônio, o processo de aceitação e não aceitação de Jesus, a entrada na igreja, a saída de outras vidas perdidas, de outras religiões. Enfim, todas essas manifestações adquirem nexo, inteligibilidade, sentido quando estruturadas sob a direção desta tríade que as organiza dentro da chave interpretativa de conversão, exorcismo e cura.
Esta proposta de criarmos o conceito de uma tríade a partir destes elementos, surgiu pela constante presença e articulação dos mesmos em todas as experiências dos fiéis na IURD. Pensamos em algo que tivesse um sentido de unidade mas que, ao mesmo tempo, tivesse seus elementos distintos. Exorcismo, conversão e cura estão presentes em tudo dando não só um sentido totalizante para o fiel e suas experiências, como também uma coerência para as mesmas. O que nos remete a uma outra e fundamental experiência psicológica quando nos remetemos ao aspecto da vivência religiosa, ou seja, a experiência da totalidade , de algo absoluto, pleno de sentido. Uma experiência que dá àquele que a vivencia uma coerência que extrapola dados lógicos ou objetivos e concilia aspectos aparentemente inconciliáveis numa dimensão totalizante .
Ora, nesta igreja o conceito de doença adquire um sentido mais amplo: são problemas físicos, desemprego, problemas familiares, drogadições, problemas mentais ou emocionais, pobreza…(isso mesmo, o fiel tem que se curar da pobreza!) e todos estes elementos são, segundo a concepção desta igreja, contrárias ao plano que Deus reservou para o seu fiel pois, afinal de contas, Deus não quer que seus filhos sofram. Se são contrários ao Seu plano divino, são artimanhas únicas e exclusivas do demônio e de seus sequazes ou seja, passíveis de serem exorcisadas , isto é, curadas pela IURD, representante de Deus.
Mas não basta apenas o exorcismo em si, este também está associado principal e basicamente a uma entrega a Jesus, mas não a um “Jesus na cruz, morto e sofrendo” e sim a um “Jesus Cristo vivo”, num lugar onde de fato “Jesus Cristo é o Senhor!” ou seja, na IURD. Esta entrega a Jesus se dá através de uma conversão à proposta simbólica religiosa da Universal. Se as doenças adquirem uma conotação diferente do senso comum, sem dúvida alguma, e não poderia ser diferente, o tratamento e a cura também são experienciados de forma distinta deste mesmo senso comum.
Como observamos que todos os movimentos da IURD ocorrem dentro desta lógica triádica, vimos que até mesmo os resultados onde aparentemente contribuiriam para uma quebra de suas concepções, acabam reforçando seu próprio esquema simbólico. Casos por exemplo onde não se obtém uma cura dentro desta dimensão triádica, são explicados e aceitos pela lógica da falta de fé , pela ausência de uma verdadeira entrega à Jesus ou à igreja – não se converteu de fato.
Um fenômeno interessante e muito comum entre os neopentecostais, que também deparamos na IURD, foi a existência de uma população flutuante de outras igrejas neopentecostais bem como de pessoas ditas atéias ou de outras denominações afro-brasileiras, católicas e espíritas. Estas pessoas procuram a IURD numa dimensão bem utilitarista ou até mesmo desesperadora em que “só a Universal pode resolver”. Ao mesmo tempo, esta dimensão de exclusividade salvífica reforça uma supremacia no campo religioso onde a IURD adquire a marca de uma “igreja forte” (BIRMAN, 1996:104). As pessoas vão nesta igreja buscando uma cura de uma doença bem específica: um emprego, o marido alcóolatra, o sofrimento da alma , um problema de saúde. Assim que estas pessoas obtém alguma cura (ou não), elas param de freqüentar a IURD.
Somos levados a crer que mesmo entre os flutuantes, a tríade proposta de exorcismo conversão e cura esteja presente. Pensamos, contudo, que se o flutuante flutua , é porque não há de fato uma conversão , mas uma re-conversão , um re-conhecimento de um universo simbólico pré-existente via sincretismo religioso que a IURD trabalha e re-elabora em seu corpo simbólico, fazendo com que o flutuante orbite em torno da IURD sem grande estranheza, propiciando assim uma cura . Aliás, o que temos observado quase sempre, do ponto de vista simbólico, é que a inserção na IURD não ocorre com grandes traumas ou passagens (MOREIRA, 1996:4).
Assim, podemos observar claramente que uma característica da IURD é que ela é eminentemente sincrética e nunca seria o que é sem esta característica marcante. Ela absorve inúmeras vertentes da religiosidade e do sincretismo brasileiros numa espécie de efeito esponja de expressões religiosas que granjearam alguma popularidade no campo religioso brasileiro, coadunando aspectos pré-modernos e modernos que compõem o nosso ethos identitário (SANCHIS, 1994:51) (SANCHIS,1997;110).
Se tudo isso é intencional ou não, é difícil sabê-lo e também de pouco valerá para o mundo experiencial do fiel. O fato é que a IURD não inventa quase nenhuma novidade, mas um dos méritos de seu sucesso talvez, possa ser atribuído a esta genial e bem articulada colcha de retalhos que forma a sua identidade. Sim, uma colcha de retalhos extremamente encaixada com aquilo que Bittencourt chamou de matriz religiosa brasileira [15] . Uma matriz que se apresenta com aspectos de catolicismo ibérico e magia européia vindas com a colonização; religiões e magias africanas e indígenas; espiritismo e até mesmo um catolicismo romanizado (BITTENCOURT,1994:24).
Dentro desta perspectiva da existência de um efeito esponja , é interessante observar como que a IURD tem assimilado elementos de outras culturas quando realiza o seu trabalho missionário em outros países. Lá, o demônio por exemplo adquire novos contornos ou nomes se adaptando de acordo com o imaginário da simbologia religiosa local (MOREIRA, 1998:3-4). Neste andar camaleônico , a IURD tem conseguido caminhar com um trabalho missionário em diversos outros países. Contudo, notamos que ela tem obtido maior aceitação justamente nos países de elementos culturais e históricos semelhantes ao nosso, como os africanos e os latinos.
Além das características observadas acima, percebemos a existência de outros elementos basilares no mundo iurdiano que se encaixam e se inter-relacionam com a vivência da tríade proposta. Por estarem dentro da IURD, são eles também articulados dentro de uma dimensão sincrética e ligados a matriz religiosa brasileira. Desta forma, detectamos e estabelecemos quatro grandes pilares, mais uma vez não necessariamente genuínos à IURD, mas articulados de uma forma específica e particular por ela, que fazem parte daquilo que podemos chamar de universo universal . Seriam eles: o simbolismo de dinheiro, a guerra santa, a realidade do mal e as doenças divinas.
O simbolismo do dinheiro:
Talvez um dos aspectos que mais chamam a atenção logo de início a um observador da IURD, é a forma com que o dinheiro é utilizado e, provavelmente, é o elemento que mais é discutido e questionado pelas pessoas de fora e pela mídia . De antemão, é sempre bom lembrar que os fiéis desta igreja não concebem em hipótese alguma, que estariam sendo manipulados por seus dirigentes na exploração de dinheiro – e dentro de nossa abordagem, nem é nosso objetivo tentar provar se esta afirmação é verdadeira ou falsa.
A grande dificuldade que se tem para compreender a inserção do dinheiro na IURD, é que ele adquire funções e qualidades completamente diferentes para quem a freqüenta. Alguns autores (FERNANDES, 1983:53) (VOGEL, 1987:13) já apontaram para o fato de o dinheiro possuir um significado muito maior e bem diferenciado quando inserido num ritual. Nestas situações, o valor monetário do dinheiro passa a ser um valor que não é levado tanto em consideração ou, então, é até esquecido. E é dentro desta perspectiva que devemos trabalhar para tentar compreender o seu significado dentro da IURD.
Uma das formas de se circular o dinheiro na IURD seria através da obrigação do dízimo . Nesta obrigação há uma justificativa e referendamento bíblico [16] para tal prática, que não é só presente nesta igreja. Contudo, justamente por ser uma prescrição divina, o fato de não estar em dia com o seu dízimo representa pesadamente para o fiel o ato de roubar de Deus , já que o dízimo é a parte reservada a Ele . Além disso, ser dizimista adquire uma conotação identitária que distingue o membro do não-membro, demonstrando claramente um sinal de pertença à igreja. Dentro desta perspectiva, somente o dizimista poderá pleitear de fato uma vida abençoada por Deus.
Numa outra categoria de circulação de dinheiro, encontram-se as ofertas que não abstém em momento algum o fiel do seu dever para com o dízimo, ao contrário, é algo que vai além deste. Na oferta, o dinheiro adquire a conotação de canal de comunicação , de intermediação e barganha com o sagrado, numa forma direta com Deus.
As ofertas são utilizadas especificamente nas correntes , que são dias específicos da semana dedicados a objetivos também específicos: Segundas-feiras, corrente da prosperidade ou dos empresários ; terças-feiras, curas divinas ou da saúde ; quartas, louvor ou dos filhos de Deus ; quintas, problemas familiares ou da família ; sextas, libertação que é basicamente manifestações dos demônios e suas expulsões; sábados, louvor e agradecimento ; domingos, louvor . Todas as correntes ocorrem nos horários mais variados que começam das seis e vão até às vinte e uma horas [17] .
O fiel que começa a fazer sua corrente, sabe que ela não pode ser quebrada e que durará um período determinado de tempo, durante várias semanas. Nas correntes, o fiel tem que ir naquele dia estabelecido da semana de acordo com seu objetivo. Assim sendo, não se dá uma oferta na segunda-feira se você está querendo resolver alguma questão de ordem familiar.
Na nossa opinião, o aspecto simbólico mais contundente da oferta está no fato dela implicar no risco do fiel. Quanto maior a oferta em dinheiro, maior será o risco de sobrevivência de quem a dá, se o fiel se arrisca é porque ele tem fé em Deus. Se tem fé n’Ele a ponto de arriscar sua própria sobrevivência, Ele não irá lhe decepcionar. Estabelece-se assim um pacto coercitivo direto com Deus, em que Ele não poderá ficar impassível diante de uma fé demonstrada desta forma tão evidenciada.
No ato da oferta, Deus se transforma em credor do ofertante e terá que honrar seu compromisso com seu filho. Porém, se houver dúvida ou apego do membro nesta hora, o que pode ser ardilosidade do demônio, Deus não o abençoará porque não se está firme na sua fé – o que fecha mais uma vez uma coerência simbólica. Certa vez um pastor disse em uma reunião da igreja: “Fé é fácil de falar que tem… todo mundo fala que tem fé! Quero ver você provar que tem. Não basta ter fé, tem que ser louco! Se você não tiver fé, não adianta nem tentar que vai perder tudo, depois não venha falar que eu não avisei. O que sempre dizem não ‘ é dando que se recebe ’?”
Rompe-se aqui com a passiva tradição popular da promessa , em que esta é cumprida se a graça for alcançada através da intermediação dos santos. Na oferta, ao mesmo tempo que o contrato com Deus é direto, sua prática se aproxima dos trabalhos dos cultos afro-brasileiros realizados para as entidades de seu panteão, onde já se estabelece um objetivo a ser atingido de uma forma mais incisiva a partir de uma magia coercitiva .
Além destes aspectos, dentro da IURD, ofertar e dar o dízimo possuem conotações exorcísticas. Se você demonstra a sua fé através das ofertas e dá a parte que cabe a Deus através do dízimo, mais dificilmente será tentado pelo demônio. É comum nos rituais exorcísticos da IURD, os demônios manifestados e dominados pelos pastores recolherem de um forma humilhante as ofertas e os dízimos dos fiéis.
Na IURD, o dinheiro é visto, além destas conotações simbólicas acima, como algo não sujo. Ao contrário, é manipulado pelos fiéis como algo que dá prazer e que é bem vindo pois, sofrimento, pobreza e doença não fazem parte dos planos de Deus e sim dos do Demônio. Assim, a Teologia da Prosperidade é amplamente pregada nesta igreja, rompe-se com a idéia de que de que sofrimento e pobreza são caminhos para redenção. O paraíso é o aqui e agora e se não está sendo, é porque alguma coisa está errada! Não há muito uma preocupação escatológica e a idéia é tomar posse ( GOMES, 1994:232) de tudo que Deus reservou para os seus filhos neste mundo e não em outro lugar distante da realidade do fiel. Nesta perspectiva, os filhos de Deus estão destinados a serem prósperos, saudáveis, felizes e vitoriosos em todos os seus empreendimentos terrenos.
A questão mais interessante, que reforça esta lógica teológica e simbólica da IURD, é o fato de realmente muitos conseguirem se reestruturar econômicamente, adquirindo um maior conforto e tranqüilidade financeira nunca experienciados outrora.
A guerra santa
Apesar da conotação em que o foco de todo o processo de libertação do fiel é diante e relacionado diretamente com um Deus vivo , ou através de seu filho, nas entrelinhas podemos perceber que extra IURD nulla salus . Nas concepções desta igreja, estamos em plena era do demonismo, em que o demônio e seus representantes estão ocupando todos os lugares do mundo e somente ela poderá verdadeiramente combatê-lo e salvar as pessoas.
Rompendo com o ensimesmamento tradicional evangélico e com as tradições históricas em que as camadas mais pobres são cordatas e submissas, a IURD usa uma lógica aguerrida em que se o demônio está no mundo, vamos tomar este mundo para libertá-lo. Se o demônio possui uma rede de Tv, vamos ter também; se possui jornais e rádios, vamos adquirir também; se aquele prédio era um cinema de filmes pornográficos, vamos transformá-lo em um templo que honre a Deus… é uma lógica que serve para entrar no mundo, nas gráficas, bancos ou empresas. Aliás, um dos aspectos que distingue os membros da IURD é que eles refutam os tradicionais e estereotipados usos e costumes de aparente santidade, que eram tidos como sinais de conversão e pertencimento ao pentecostalismo. (MARIANO, 1996:125). Com pouquíssimas exigências em comparação às outras igrejas evangélicas, os membros da IURD não se destacam muito com seus costumes e hábitos do resto da população não evangélica.
Se estamos em plena era do demonismo, estabelece-se uma política de uma guerra santa plena, em que todos os fiéis são vistos e vivem como guerreiros do Senhor . O tempo todo e em tudo que se faz, este aspecto bélico religioso em relação ao mundo está presente.
Qualquer proposta ecumênica é vista como diabólica e as religiões católicas, afro-brasileiras e kardecista são tidas como enganadoras e representantes religiosas máximas do demônio. Ao mesmo tempo, a IURD se coloca como a única escolhida e capacitada de enfrentar estas religiões demoníacas e é reconhecida, mais uma vez, como uma igreja forte entre todas as evangélicas: "Todo evangélico sabe que tá na Bíblia que não devemos fazer idolatria, mas ninguém fazia nada… até que o pastor da igreja chutou aquele ídolo que chamam de Aparecida, todo mundo queria fazer isso mas não tinha coragem" disse-nos um membro da IURD.
O aspecto que entendemos como interessante nesta relação de enfrentamento é que a IURD, ao mesmo tempo que combate estas religiões, reafirma-as como importantes porque são demoníacas. Afirmando o lado demoníaco destas religiões, reafirma-se ao mesmo tempo a necessidade da existência da própria IURD, como única combatente capaz das mesmas.
Além disso, ao mesmo tempo que combate, ela absorve elementos e concepções das inimigas , mais uma vez numa dimensão sincrética. Curiosamente na IURD, como nos rituais das religiões afro-brasileiras, utiliza-se o sal grosso, a arruda, o fechamento de corpo bem como a invocação das entidades para que se manifestem, contudo aqui para o objetivo é o exorcismo. São muitas as melodias tradicionais católicas cujas letras são modificadas e cantadas nas reuniões da IURD (BONFATTI, 1996:5), Paul Freston (FRESTON, 1994:138) já observou também como que o ritual das correntes se assemelha com a prática das novenas católicas. O uso da famosa água fluidificada nas religiões kardecistas também está presente dentro dos rituais e programas de televisão da IURD.
Mais uma vez, observamos elementos simbólicos que contribuem numa inserção nesta igreja sem grandes passagens simbólicas , traumas ou disrupções . Não existe uma inauguração de um novo sistema simbólico mas sim, um re-arranjo e uma re-significação de elementos já re-conhecidos pelos fiéis dentro do campo religioso brasileiro . O que nos remete novamente a uma vivência de sensação de totalidade e não uma construção, mas de re-construção de sentido muito grande.
A realidade do mal
A questão do mal nunca foi algo muito bem trabalhado na nossa cultura e estamos vindo lidando com ela de uma forma quase que exclusivamente racional não muito satisfatória. Pois, o mal, ainda é e sempre foi, algo que intriga e incomoda o homem. Desde a ascenção do cristianismo, com a teologia cristã, o ocidente vem tentando lidar com esta dimensão sem muito sucesso (KOLAKOWSKI, 1985:11).
Dentro deste contexto, apesar de todos os esforços, temos trabalhado nos últimos séculos com a visão árida de que o mal não existe, sendo que o que existiria seria a ausência do bem [18] . Contudo, partindo desta perspectiva, parece que ainda não conseguimos avançar em direção a um conforto ou alívio razoáveis diante deste grande “enigma” (RICOER, 1988:26). Um enigma que a teologia e a filosofia consideram “um desafio sem igual” (idem:21) pois a “visão estritamente moral do mal” deixam o homem “sem resposta” (idem:34).
Distante desta dimensão extremamente racional e longíngua da realidade de nosso povo, a IURD se aproxima da nossa cultura, mais uma vez ligando-se a matriz religiosa brasileira de uma forma sincrética, trazendo o mal e o demônio para o cotidiano de seus rituais e concepções. Ela rompe radicalmente com estes artifícios teológicos e filosóficos que lidam com o mal. Aliás, tudo que é racional ou intelectual não é muito bem aceito por esta igreja, já que a única dimensão verdadeira é a bíblica e a única verdade é Jesus Cristo [19] .
Sim, o mal é uma realidade viva e atuante na vida das pessoas através de seu criador, o demônio. O que justifica mais uma vez a necessidade da IURD como única combatente possível contra este grande inimigo da obra de Deus. Ela não só o reconhece como também o exorciza, convertendo e curando as pessoas. A figura do demônio está tão presente nesta igreja que sem ele a IURD não poderia ser o que é.
Geralmente associado às religiões afro-brasileiras, o demônio e seus representantes se alojam em qualquer lugar possível. Ele se instala no corpo das pessoas causando doenças, nas carteiras de trabalho impedindo que seu portador obtenha emprego, na cama de casal levando marido e mulher a brigarem ou terem dificuldades sexuais. Pode entrar na vida das pessoas através de hereditariedade, isto é, se o pai ou a mãe já participaram de algum ritual de magia; se alguém em casa freqüentou ou freqüenta terreiros; por trabalhos de magia realizados contra a pessoa; por ingestão de bebida ou comidas enfeitiçadas [20] .
Para este demônio tão presente, atuante e devastador a IURD oferece uma tecnologia exorcística para lidar com o mesmo. Esta tecnologia é exercida através de dois tipos de exorcismos estabelecidos por nós: o sem incorporação e o de incorporação . Esta diferenciação estabelecida foi necessária diante da constatação de que muitos membros não tinham aquela clássica manifestação de entidades quando baixam , tão comuns nos cultos mediúnicos afro-brasileiros, considerados na IURD como manifestações demoníacas.
Já que o demônio é real e está no mundo, tentando se alojar em tudo e de diversas forma, a IURD oferece um grande arsenal simbólico exorcístico para ele: é o shampoo, o óleo santo, a rosa ungida, a lâmpada que deve ser acesa em algum cômodo da casa, a chave, a espada plástica, o retalho do manto sagrado, a foto do marido ou do filho problemático. Além disso, o demônio é tão real que pode-se facilmente entrar em contato com o ele através de sua dor de cabeça, da sua falta de emprego, com o marido alcóolatra ou com o seu problema de saúde… o demônio se manifesta numa multiplicidade de modos e por isso, pode ser percebido e exorcisado de diversas maneiras na IURD.
Em relação ao exorcismo de incorporação , seria o contato e manifestação direta do demônio através de possuídos de forma semelhante as entidades do panteão afro-brasileiro. Contudo, observamos a busca intencional das manifestações das entidades para um exorcismo direto, característica que marca a IURD como, mais uma vez, uma igreja forte que não tem medo de invocar e enfrentar os demônios. Este tipo de exorcismos são experiências sempre realizadas dentro dos templos e, na grande maioria das vezes, dentro de seus rituais. Os passos que são percorridos dentro destes rituais são invariavelmente os mesmos: a invocação e provocação das entidades demoníacas, sua manifestação, resistência e deboche da entidade, o controle da mesma, a revelação de seu nome, de como entrou na vida do possuído, dos males causados, e finalmente a humilhação e a derrota com a expulsão do demônio.
Um dado interessante é que quando a entidade se manifesta o possuído perde sua consciência e ela grita, baba, rosna, se debate e revela aspectos íntimos do possuído que em outras circunstâncias não ocorreriam. Porém, julgamos também de grande importância dentro destes rituais, o fato destas experiências exorcísticas serem entendidas não só como experiências do possuído, mas, também, de uma assistência que não incorpora estas entidades mas que participa como expectador atuante deste ritual. Já que os demônios que são expulsos na frente da assistência, fazem parte da mesma legião daqueles que atrapalham a vida dos espectadores.
As doenças divinas e a terapêutica universal
Todos os discursos e práticas observadas dentro da IURD e por seus membros levaram-nos a perceber a presença constante de dois reinos.
Um, que é o nosso mundo onde habitamos, vivemos e sofremos com nossas mazelas e misérias como as doenças, os conflitos e as felicidades humanas – poderíamos chamá-lo de mundo material .
O outro , que seria mais real ou verdadeiro que aquele que podemos ver e tocar, seria o mundo espiritual . Este segundo, é considerado o lugar onde tudo verdadeiramente acontece influenciando direta e profundamente o primeiro em que vivemos, já que este é visto apenas como o campo de batalha de uma guerra espiritual. Nas concepções iurdianas todos os eventos que ocorrem neste nosso mundo são conseqüências e reflexos deste outro mundo, o espiritual . (AZEVEDO, 1996:4).
O demônio, que habita o mundo espiritual com outras entidades, está o tempo todo procurando se manifestar interferindo no nosso mundo material. Neste nosso mundo, tudo que podemos ver ou conceber como doenças é considerado pela IURD como manifestação desta entidade maléfica no nosso corpo ou na nossa psique . Ele não é somente o causador como também dá os seus sinais de possessão através do nervosismo, dor de cabeça, insônia, medo, desmaios, todos os tipos de vício, nas doenças que os médicos não descobrem as causas, visões de vultos, audição de barulhos e vozes, depressão, desejos de suicídio e problemas de ordem psíquica ou mental.
Nas categorias universais, todas as doenças são divinas – isto é, espirituais , não humanas ou transpessoais – e causadas pelo demônio via indireta ou direta. Sendo assim, todas são passíveis de serem tratadas através dos procedimentos exorcísticos da igreja. Muitos testemunhos de fiéis falam de curas de doenças físicas como câncer, Aids, problemas de pele, dores, úlceras… alguns aparentemente de ordem psicossomática e de difícil observação, já que seria necessário uma formação médica para um acompanhamento mais profundo e adequado. Contudo, como psicólogo que somos, chamaram nossa atenção outros fenômenos de curas observados e relatados por alguns membros da IURD.
Assim, do ponto de vista psicológico e não mais do antropológico , lidamos com estes interessantes fenômenos que denominamos não de curas como os membros da IURD o fazem, mas de suspensão . O termo cura , além de ser algo bastante discutível e complexo na psicologia, implicaria também em observações de longos períodos, testagens e acompanhamentos constantes – o que tornaria praticamente impossível qualquer conotação conclusiva do ponto de vista científico. Porém, mesmo levando em consideração estes fenômenos como suspensão , não podemos nos furtar de perceber a singularidade dos mesmos.
Assim, o que vimos e acompanhamos diversas vezes na IURD, foram justamente relatos de suspensão de fenômenos como alucinações , delírios , uso e dependência de diversas drogas como álcool , maconha e cocaína ; recuperação da capacidade laborativa , de socialização , do restabelecimento de laços familiares , afetivos e, principalmente, de um reencontro de sentido da vida dentro de uma dimensão transcendente . São biografias que encontram, de uma certa forma, um espaço dentro da IURD para serem elaboradas, contadas e recontadas. Neste refazer-se , cada um que dá o seu testemunho, reconstrói sua vida e ajuda a reconstruir a vida de quem o ouve. Revivendo se reelabora a biografia, escutando se reencontra sua história, vendo o sentido que o outro consegue dar às suas mazelas vê-se a possibilidade de reorientar a própria vida. O que se observou na maioria das vezes é que a IURD vem fornecendo instrumental para esta reelaboração e criação de sentido, sem se desfazer das experiências vividas pelos fiéis anteriormente, mas, sim, redimensionando-as.
Quando iniciada a escuta dos depoimentos de alguns membros da IURD ouvimos a descrição de suas trajetórias sempre conturbadas e sofridas de vida, antes de chegarem à igreja, deparamos com um interessante fenômeno. Pois, na tentativa de se resguardar de um certo preconceito intelectual de profissional da psicologia, notou-se que a IURD consegue oferecer, de certa forma, uma terapêutica para seus membros que contribuiu com algum resultado positivo em suas vidas.
Contudo, notamos que ao propor refletirmos sobre uma terapêutica oferecida pela IURD, a partir de um referencial psicológico, deparamos com algo bastante complexo, ao qual esta proposta relaciona-se e, em decorrência desta complexidade, encontra limitações. Afinal de contas, sempre que se propuser analisar qualquer fenômeno, a partir do ponto de vista da psicologia, estaremos lidando com inúmeras facetas , por vezes explícitas ou não, principalmente quando a esta se alia um outro fenômeno, também complexo, que é o religioso. Fica claro então, sem dúvida, que esta intenção e este campo de atuação se complexifica ainda mais numa miríade de possibilidades, o que remete a perceber que a possibilidade de não se ver todas as facetas é quase que inevitável.
Consoante a isso, não podemos deixar de se perceber e concordar também quando a psicologia aponta que existem elementos alienantes e infantilizantes na experiência religiosa. Uma vez que esta acaba sendo usada como alienação ou como anestesia de elementos conflitivos da personalidade.
Levando estas questões em conta, o que não podemos deixar de perceber, nas observações e entrevistas, é que existem certos aspectos dentro dos rituais, concepções e visões de mundo da IURD que proporcionam situações terapêuticas para quem a procura. Compreendemos que estes aspectos terapêuticos , e não psicoterapêuticos [21] , tenham ou favoreçam a uma certa eficácia no que se refere às curas percebidas e narradas dentro desta igreja. Evidentemente, esta eficácia não contempla a todos, porém a IURD vem crescendo e este tem sido o aspecto mais alardeado por ela como sua grande oferta .
Assim, apesar de termos conhecimento das estratégias de marketing utilizadas pela IURD (CAMPOS, 1997: 221-236) na oferta de seus produtos e que esta busca de uma eficácia no meio religioso reflita, também, uma ineficácia diante de um sistema de saúde falido para uma grande maioria empobrecida (BITTENCOURT, 1994:25), compreendemos que seja limitado afirmar que a busca ou alguma eficácia da IURD esteja ligada apenas a questões sócio-econômicas ou à marketing. Além disso, levamos em conta, também, uma certa manipulação por parte dos pastores no discurso dos fiéis, que são por vezes estereotipados (CORTEN, 1997:284), que sempre falam da existência de uma eficaz terapêutica universal. Mesmo com todos estes aspectos, é inevitável que não se leve também em conta o sentido e as reconstruções de vida que os membros da IURD experienciam.
Somos levados a pensar que, além destas questões, existam também aspectos que a psicologia possa auxiliar para uma maior compreensão de alguns fenômenos, ditos de cura , que ocorrem dentro da IURD. Entendemos que esta igreja consegue, intencionalmente ou não, estabelecer um espaço terapêutico , de escuta , aceitação e elaboração de diversos aspectos da psique de seus membros; o que de certa forma ajudaria a compreender estes fenômenos de suspensão.
Assim sendo, além de explicada enquanto fenômeno de marketing , manipulação de elementos do sincretismo religioso brasileiro e exploração dos fiéis, propomos que o fenômeno IURD esteja também associado aos elementos psicológicos de seus rituais, de suas concepções religiosas e na sua oferta de sentido psicológico que ela possibilita aos seus membros.
Apontamos e desenvolvemos quais aspectos seriam estes, que contribuem para a formação de uma terapêutica universal, como eles atuam, se interagem e são articulados na IURD em um outro trabalho (BONFATTI, 1998:100-156). Elencar e explicar aqui estes aspectos, em forma de artigo, não seria viável pela complexidade do tema.
O fato é que a IURD, mais uma vez, intencionalmente ou não, consegue dar sentido para o sofrimento de seus fiéis e por mais estranho e duvidoso que tudo isso possa parecer, afirma Mariza Soares,
existem (situações) em que a pessoa se converte e realmente sua vida melhora, começa a trabalhar, pára de beber, etc. Esses casos, sempre que contados, provocam uma reação estranha nas pessoas. Muitos falam dos crentes com uma certa inveja, até. No fundo, eles têm consciência de que a vida das pessoas melhora, só que não conseguem explicar por que (…) (SOARES, 1990:101) [22]
Cecília Mariz, também já observou uma certa eficácia das igrejas pentecostais na recuperação, principalmente de homens, de quadros de alcoolismo. Segundo ela, “as declarações de pentecostais ex-alcoólatras apontam para elementos destas igrejas, religiosidade e espiritualidade, que facilitam a superação do alcoolismo.” (MARIZ, 1994b:204).
Quer queiramos ou não, a IURD consegue, de uma forma própria, responder as questões que são fundamentais para o ser humano. Como outros grupos religiosos que conseguiram ganhar universalidade, a IURD, combinando aspectos pré-modernos, modernos, pós-modernos, sincréticos e afinados com a matriz religiosa brasileira de uma forma peculiar, tem conseguido, numa linguagem religiosa, restabelecer aquilo que Jung apontou psicologicamente em seus pacientes como falta :
não houve um só (paciente) cujo problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa. Aliás, todos estavam doentes, em última análise, por terem perdido aquilo que as religiões vivas ofereciam em todos os tempos, a seus adeptos, e nenhum se curou realmente, sem ter readquirido uma atitude religiosa própria, o que evidentemente, nada tinha a ver com a questão de confissão (credo religioso) ou com a pertença a uma determinada igreja. (JUNG,1983:509) [23]
Jung, desta forma, não só evidencia a importância da dimensão religiosa como função psíquica (SILVEIRA, 1984:141-153), mas, também, como expressão da psique . Dentro do pensamento junguiano, compreendemos que a IURD, tal qual foi descrita, vem oferecendo a muitos indivíduos a possibilidade e os meios para esta experiência psicológica. Aí estaria, também, nesta nossa reflexão, a razão de seu sucesso e crescimento.
É bem verdade que a IURD e o movimento neopentecostal brasileiro são bem mais complexos do que pretendemos apontar aqui. Tentamos elencar categorias estabelecidas por nós como a tríade de conversão-exorcismo-cura , o simbolismo do dinheiro, a guerra santa, a realidade do mal, as doenças divinas e a terapêutica universal numa tentativa de dividir com o leitor nossos limitados mapeamentos de um território tão amplo. Esperamos, nesta tentativa, que o leitor tenha plena consciência que um mapa nos dá apenas uma visão superficial e que o território quando percorrido, é bem mais rico.
Contudo, acreditamos, se tivermos sido claros, que tenhamos conseguido pelo menos atingir o objetivo de levar o leitor a ter alguma visão, mesmo que limitada, do mundo iurdiano . Esperamos, talvez pretensiosamente, que o leitor benévolo tenha começado a se familiarizar com as categorias e com as experiências dos fiéis que se norteiam e se nutrem deste mundo , bem como com os elementos simbólicos que estão, inexoravelmente, cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia e no campo religioso brasileiro.
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