Sobre a condenação do teólogo JON SOBRINO

Autor: Roberto Zwetsch *




O que nos encantou naquelas leituras foi, se bem me recordo, duas coisas: em primeiro lugar, a ênfase no Jesus histórico, naquele que caminhou junto aos pobres da Palestina anunciando-lhes o reino de Deus e despertando uma nova esperança. Em segundo lugar, a idéia do seguimento ou discipulado como fundamental para compreender a fé de Jesus, a fé que se realizou em sua história humana e divina, ao mesmo tempo. O que diferenciou Jesus em seu tempo é que ele, decididamente, compreendeu a Deus e sua justiça, não de forma abstrata e ahistórica, mas desde e para os pobres reais com quem se encontrava nas vilas e cidades da Palestina.

Agora este teólogo, que desde então tem aprofundado como poucos aquele esboço de cristologia em inúmeros livros de primeira qualidade, é condenado ao silêncio pela Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano. Lamentável e, desde um ponto de vista protestante, um grande equívoco. Sobretudo, quando estamos às vésperas da V CELAM – a grande Conferência dos Bispos Católico-Romanos da América Latina que irá realizar-se em maio deste ano, na cidade de Aparecida do Norte, SP, Brasil. É bem estranho que esta condenação a um teólogo que estudou em profundidade a vida e obra de Jesus e suas repercussões na vida dos pobres, ocorra no momento em que a conferência irá justamente enfocar o tema "Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida".

Jung Mo Sung, um dos jovens teólogos brasileiros que conhece bem a obra de Sobrino, afirmou em artigo que a questão central nesse caso não é o que tem sido dito na imprensa. Isto é, que Sobrino não teria deixado suficientemente claro em suas obras a divindade de Jesus para realçar em demasia a humanidade e sua opção pelos pobres.

A hipótese de Mo Sung é outra e se baseia em informes também do Vaticano. Ele escreveu: "O verdadeiro problema que a obra de Sobrino suscita não é o fato de ele não ter explicado com a devida ênfase a divindade de Cristo, mas ter assumido que o problema primeiro e primário do pobre é a fome, a morte antes do tempo. O que parece ser muito óbvio para quase toda a sociedade, afinal a pobreza é uma questão econômica e social". E a razão estaria no fato de que a cúpula da Igreja Romana não aceita este conceito de pobre. Pois isto exigiria uma conversão da igreja que ela, ao que parece, não está disposta a realizar. O que está por trás dessa punição é, também, o teor do que se estará discutindo na Conferência dos Bispos em Aparecida, isto é, a compreensão do papel da Igreja Católica Romana no mundo e a sua relação com o reino de Deus.

De certa forma, Sobrino passa a ser agora, involuntariamente, o símbolo de um recado do Vaticano aos que ainda guardam boa lembrança do Vaticano II (1962-1965) e dos encontros dos bispos em Medellín (1968) e Puebla (1979). Muitos cristãos de diferentes igrejas desejariam ardentemente voltar a reencontrar-se com uma igreja no caminho da luta pela superação da pobreza, da fome e da violência que massacra os povos e lhes impõe uma forma de vida completamente alheia aos desejos do Deus de Jesus. Pobres sim, diz Roma, mas somente sob a ótica de pessoas que ainda não conhecem a Cristo. A fome, a pobreza, a injustiça não podem se tornar o foco central da mensagem da igreja.

Ora, se a igreja cristã espiritualiza desse jeito o evangelho do Crucificado que se identifica com os crucificados do nosso tempo, é de se perguntar se ela compreendeu o que diz Mateus em seu evangelho, repercutindo as palavras de Jesus: "Tive fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber, era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me" (Mateus 25.35s). Esta palavra de Jesus se tornou critério, na América Latina, para a compreensão do papel da igreja no mundo. Sua missão se define a partir do serviço aos pobres no sentido lato e não metafórico do termo.

É isto que estará em jogo nos bastidores da V CELAM e certamente terá repercussões também no âmbito ecumênico entre as demais igrejas cristãs. Afinal, a palavra de Jesus compromete a todas as pessoas que confessam seu nome. Sobrino merece mais respeito do que sua igreja lhe está dando neste momento, por sua trajetória humana, teológica e social.

Certamente, o princípio misericórdia que deu título a um dos livros de Jon Sobrino deverá ser resgatado nesse momento de dor e incompreensão. Para Sobrino, a misericórdia está na origem do divino e do humano. Deus é misericordioso para com as pessoas e seu desejo mais fundo é erradicar o sofrimento injusto para restabelecer a alegria (evangelho, literalmente, quer dizer, boa notícia!). Por isto, é no exercício da misericórdia que melhor entendemos ao Deus de Jesus. E a misericórdia não deve ser confundida com simples assistencialismo ou benemerência. Pois a misericórdia divina é altamente conflitiva. Quando falamos de um Deus crucificado que resgata o sentido de vida do ser humano, estamos denunciando os poderes que neste mundo crucificam os pobres. Por isso, não cabe ingenuidade ou falsas promessas na mensagem cristã. Hoje, na América Latina, assumir o rosto de uma igreja misericordiosa significa voltar a assumir decididamente a luta dos pobres contra a pobreza e as causas da injustiça e da violência.

São Leopoldo, 15 de março de 2007.

* Professor de Teologia Prática e Missiologia da EST – Escola Superior de Teologia em São Leopoldo. Secretário-executivo de CETELA – Comunidade de Educação Teológica Ecumênica Latino-Americana e Caribenha


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