Autor: Robinson Cavalcanti
Cidadania
Somos cidadãos do reino de Deus e igualmente cidadãos dos Estados terrenos. Deus é o Senhor do universo, Senhor da história, Senhor das nações e dos Estados. Sobre todos exerce sua providência e sobre todos derrama a sua graça comum. Na história humana se processa a história da salvação. Apesar da queda, cada ser humano é portador de uma lei no coração. Israel e a Igreja não são o reino de Deus, mas seus porta-vozes, vanguardas e exemplos. A Igreja tem também um ministério profético como consciência da nação.
A tarefa docente da Igreja inclui a formação integral do ser humano, amadurecido no processo de santificação. O santo é um ser consciente, maduro, sadio, responsável. É chamado a ser um cidadão exemplar, em suas opiniões, palavras, atos e votos. A Igreja e os cristãos adquirem uma atitude crítica – à luz da Palavra e iluminados pelo Espírito Santo – diante da “des-ordem” do mundo e dos seus sistemas de corrupção, iniqüidade, injustiça, mentira, violência e opressão. O Estado e os sistemas políticos e econômicos são marcados por pecados sistêmicos e estruturais. Fazer o jogo desses sistemas seria uma manifestação de mundanismo e de carnalidade.
Um cristão omisso, desinformado, desmotivado para a cidadania é sinal de que há algo de errado com a Igreja. Os chamados são enviados, são diferentes e fazem diferença. A presença política da Igreja e dos cristãos é um ato de obediência à vocação. Nessa presença há vocações específicas diante das necessidades e das possibilidades.
Eleições
Somos 15% dos cidadãos brasileiros e do seu eleitorado. Percebe-se, entre nós, uma crescente tomada de consciência. As recentes eleições evidenciaram um avanço no processo de consolidação de um Estado democrático de direito em nosso país, com liberdade de informação, pluripartidarismo e alternância no poder. A percentagem de evangélicos eleitos também cresceu.
Ressaltando a importância da renovação de assembléias legislativas, governos estaduais e do Congresso Nacional, com uma nova correlação de tendências político-partidárias, o foco principal foi, sendo dúvida, a presidência da república. Tivemos três candidaturas principais de oposição (Lula, Ciro, Garotinho), uma candidatura governista não plenamente assumida (Serra) e duas candidaturas de protesto (PSTU, PCO). O primeiro e o segundo turnos indicaram uma clara vontade nacional pela mudança, pelo encerramento de um ciclo.
A candidatura Lula, já no primeiro turno, expressou uma aliança, ampliada no segundo turno pelos partidários de Ciro e Garotinho, bem como por setores dissidentes dos governistas. Embora o Partido dos Trabalhadores seja hegemônico, o seu programa de governo não é o programa do PT, mas um consenso do conjunto de partidos que o apoiaram, na busca de um pacto ampliado pela sociedade civil, na construção de um projeto nacional. Os cristãos devem participar desse processo, não para tirar vantagens para si ou para suas igrejas (corporativismo), mas para promover o bem comum, com os sinais possíveis do reino de justiça e paz.
O futuro governo estará limitado pelo poder imperial internacional (EUA + G-8), pelo enfraquecimento da capacidade interventora do Estado, tendo de se mover dentro dos limites do capitalismo, procurando reduzir as suas perversidades e não, ainda, substituindo-o por um modo de produção solidário, de todo o povo.
Desafios
É dever dos cristãos participar, sugerir e fiscalizar. Para tanto, reconhecemos as nossas debilidades. Os evangélicos compartilham do baixo grau de educação política que caracteriza o Brasil. Some-se, por um lado, a abstenção, os votos nulos e em branco. Acrescentem-se os votos vendidos por dinheiro, comida, favores e promessas. E, ainda, os votos do medo e da ignorância diante de notícias falsas sobre candidaturas. Temos um quadro ainda preocupante.
O ensino sociopolítico das Sagradas Escrituras ainda é pouco exposto em nossas igrejas. A história política do cristianismo – mundial e brasileiro –, com seu conteúdo e seus exemplos, é desconhecida da maioria dos evangélicos.
A falta de memória dificulta a construção de uma identidade. Muitos acham normal o clientelismo, o franciscanismo (“é dando que se recebe”). Deus, com certeza, cobrará dessas lideranças evangélicas as inverdades disseminadas que promoveram o medo, bem como dos que encaram o Estado apenas como um espaço de busca de privilégios ou de favores, e não de testemunho moral e de serviço.
A eleição do presidente Lula vai demonstrar o caráter falso e preconceituoso das maledicências políticas veiculadas entre nós.
É importante, pois, que fora do calendário eleitoral, sejam promovidos cursos de formação política para os evangélicos. A nossa expressão quantitativa deve se projetar em uma expressão qualitativa — cristãos preparados e éticos capazes de uma participação co-beligerante com outras forças sociais na promoção de valores.
Há, por fim, fatos mais preocupantes: a) a visão estreita de que o político é apenas o partidário e o eleitoral; b) o número elevado de candidatura de pastores e não de leigos; c) as chamadas “candidaturas oficiais” (de evangélicos ou não).
Estes são sinais de um estágio ainda atrasado, se comparado com países de democracia avançada, que os evangélicos ajudaram a construir.
Somente seremos sal e luz para a nossa sofrida nação: a) quando as igrejas se tornarem espaços de vocações políticas e de preparação para o exercício responsável da democracia; b) quando as igrejas se tornarem espaço pluripartidário e de livre exame; c) quando não mais existirem “candidaturas oficiais” nem “apoios oficiais” de denominações a candidatos a eleições majoritárias; d) quando não mais se divulgar entre nós informações inverídicas; e) quando não se der entre nós a troca de votos por favores.
Vencendo as tentações teocráticas, avancemos nesse processo de santidade no mundo, confessando os nossos pecados, aprendendo da história e dependendo do Deus da história.
——–
Robinson Cavalcanti é bispo da Diocese Anglicana do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada.
Fonte: Revista Ultimato
Jan/Fev 2003/XXXVI
Faça um comentário