Autor: Paulo dos Santos Nascimento
Notas sobre a igreja evangélica brasileira e sua tarefa.
1. Reino de Deus e missão: notas preliminares
Não há dúvida: “Jesus pregou o Reino, a Igreja prega Cristo. O pregador agora é pregado” . Desde o início as primeiras comunidades cristãs precisaram pensar sobre o problema de sua missão. Todavia, a tradição sinótica (Marcos, Mateus e Lucas) teve o cuidado de preservar, ainda que envolta em sua própria maneira de interpretar o “evento Jesus” (Bultmann), o centro da pregação do mestre galileu: o reino de Deus . Na opinião de J. Jeremias, a expressão “reino de Deus” (basiléia tou theou, em grego) trata-se de uma das expressões exclusivas da fala de Jesus. Isso não quer dizer que ela não seja encontrada em outras literaturas religiosas, mas quer dizer que ninguém a utilizou antes com tanta freqüência nem com a mesma acepção utilizada por Jesus. Nos lábios de Jesus, a expressão “reino de Deus” está assim distribuída nos evangelhos:
a) em Marcos 13 vezes
b) nos ditos de Mateus e Lucas 9 vezes
c) além disso, em Mateus 27 vezes
d) além disso, em Lucas 12 vezes
e) no evangelho de João 2 vezes
Não existe unanimidade quando se trata de discernir exatamente o que Jesus queria dizer com “reino de Deus”. Ao que tudo indica, nem mesmo os evangelhos souberam pontuar uma definição unânime da expressão. Na atividade e na pregação de Jesus o reino de Deus pode ter muitos significados e aplicações. Em relação ao presente vivido por Jesus, ele poderia ser: 1) a restauração da saúde das pessoas a partir da expulsão de demônios (Mt 12,28; Lc 11,20); 2) uma dimensão íntima e subjetiva da presença interior do reino nos indivíduos (Lc 17,20-21); 3) algo com uma grande potencialidade de proliferação (Mt 13,31-33; 44-52; 20,1-16; 22,1-14); ou 4) estar relacionado com as virtudes e a ingenuidade da infância (Mt 18,1-5). Em segundo lugar, o reino de Deus, na pregação de Jesus, pode ser compreendido escatologicamente, indicando um novo tempo (eon), ou um novo estado de relações marcado pela equidade e pela justiça, cujo poder está unicamente nas mãos de Deus (Mc 1,15; Lc 10,11; Jo 18,36). Em nenhum instante da atividade e da pregação de Jesus o reino de Deus é identificado com qualquer ideologia política ou religiosa em particular, nem com nenhuma forma de instituição do tipo de um judaísmo renovado ou uma nova religião extraída do seio do antigo judaísmo. O reino de Deus pode perpassar as formas institucionais da religião, como também essas mesmas formas institucionais podem ser expressões do anti-reino de Deus. Essa é uma possibilidade escandalosa que deve estar sempre presente na consciência de qualquer forma institucional de cristianismo. A possibilidade de se constituir num anti-reino não ficou restrita aos intérpretes oficiais da Lei dos dias de Jesus (veja Lc 11,45-52), mas é uma tentação perene com a qual as igrejas nem sempre têm sabido lidar. Reclamar para si o status de identificação substancial e exclusiva com o reino é já situar-se no campo do anti-reino, é embriagar-se de uma hybris anticristã e anti-evangélica. Lembremos: o reino é de Deus, e não dos homens.
O escândalo do anti-reino é uma possibilidade assustadora para as formas institucionais do cristianismo, inclusive para o protestantismo evangélico brasileiro. Mais acima chamamos o projeto nazista de anti-reino. Tantas outras ideologias políticas poderiam, semelhantemente, ser adjetivadas da mesma forma, porque castradoras da vida, da liberdade e da dignidade humana de sociedades e de indivíduos. Contudo, não raro o anti-reino se fez presente na história por via das formas institucionais do cristianismo. De outra maneira, é escandaloso ter que admitir que, historicamente, o reino tenha sido afirmado por meio de movimentos, pessoas e instituições distantes das representações oficiais da cristandade. Sempre que a vida foi afirmada, sendo elevada à dignidade que lhe cabe, o reino de Deus esteve presente. Afinal, cremos no princípio pneumatológico de Jesus: “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). Onde o Espírito sopra aí a vida é afirmada, e nunca castrada, visto que “onde está o Espírito, aí há liberdade” (2Co 3,17), nas palavras de Paulo . Nessa direção consideramos as palavras de Leonardo Boff (1975, p. 82) dirigidas à realidade latino-americana especificamente, emblemáticas e aplicáveis à experiência cristã e religiosa como um todo:
Nesse nível podemos, crítica e verdadeiramente, constatar que o nome cristão na América Latina serviu, não poucas vezes, para legitimar situações de poder que injustiçavam grande parte da população e que, por isso, eram anticristãs. Representações oficiais do cristianismo se prestaram, as mais das vezes inconscientemente, a sacramentar e a fetichizar um poder ou um regime estabelecido. A utilização do nome cristão aqui é ilegítima; é usurpação. Outras vezes, movimentos ou pessoas que não se agregaram explicitamente ao nome cristão, na verdade, se moveram na esfera radical daquilo que é verdadeiramente cristão. A meditação de Mateus 25 [v. 31-46] na parábola do Juízo Final esclarece o que estamos aqui insinuando. Nem sempre o verdadeiramente cristão emerge onde ele assim de denomina e se autoproclama.
Refletir sobre o significado do reino de Deus, ontem e hoje, significou e significa refletir sobre o conceito de missão evangélica. Como dito acima, já para as primeiras comunidades cristãs essa tarefa não foi fácil. Foi o sentido conferido pelas primeiras comunidades à pregação de Jesus sobre o reino de Deus que determinou sua atividade e seu senso de missão. O livro de Atos dos Apóstolos revela qual era o senso de missão presente no proto-cristianismo, representado por Pedro, Tiago e João, dirigentes da comunidade judaico-cristã de Jerusalém. Para aquela comunidade, missão tinha a ver com os ideais de restauração do judaísmo. Daí sua resistência ao projeto de universalização da experiência messiânica – resistência descrita com lucidez pelo autor de Atos no episódio da pré-evangelização de Cornélio (veja At 10,1-16). Paulo seria o responsável por estender espacialmente a dimensão desse projeto, empreendendo uma evangelização programada nas províncias do Império Romano. No entanto, apesar de esticar espacialmente a experiência messiânica aos povos gentios, isso não quer dizer que Paulo tenha universalizado a idéia de reino de Deus como enfocada por Jesus. Em todas as epístolas que lhe são atribuídas (incluindo as consideradas dêutero-paulinas) essa expressão aparece senão por 10 vezes .
Isso dá uma pequena dimensão da dificuldade sempre presente na hist&oacut
e;ria do cristianismo quanto ao sentido da missão evangélica. Os distintos conceitos de missio ecclesiae – missão da igreja – presentes nas diferentes igrejas no Brasil compartilham dessa dificuldade que sempre existiu quanto à definição da natureza do trabalho das igrejas. Parece correto dizer que desde os primórdios a ênfase no reino de Deus dada por Jesus vai sendo negligenciada, já que a Igreja, ou melhor, as igrejas, vão entendendo a si mesmas como a manifestação visível e substancial desse reino. Por isso, agora, no lugar do reino, só há lugar para se pregar o Cristo. O segredo da definição da missão está na compreensão que as igrejas têm de si mesmas. Apenas uma igreja que não entenda a si mesma como plenitude do reino poderá desenvolver um senso de missão parecido com a ênfase de Jesus. Assim, até hoje, pelo menos no interior do protestantismo evangélico brasileiro, perduram as discussões eclesiais refletidas nessas questões:
a) A missão das igrejas reflete-se na sua tarefa pura e simplesmente religiosa, no sentido de plantar as sementes de uma salvação futura e metafísica no coração das pessoas?
b) A missão das igrejas tem por fundamento a atividade social, no sentido de promover ações de libertação, igualdade e justiça, enfatizando sempre o valor da doação e da caridade?
c) A missão da igreja pressupõe sua condição de uma cidadela separada do mundo, em descontinuidade com a toda cultura presente, sendo protótipo da cidade de Deus, para onde as pessoas devem vir quando necessitarem de consolação para as ambigüidades da vida em sociedade?
d) A missão da igreja pressupõe que ela seja parte constitutiva do mundo, estando ligada organicamente a este, sendo mais uma de suas ferramentas na parafernália do bom andamento da máquina chamada “sociedade”?
e) A missão da igreja é a de um guia, ou de uma mãe que conduz seus filhos na senda da verdade, em meio à completa escuridão das ideologias, filosofias e demais religiões concorrentes, presentes com abundância no mundo?
Num quadro bem-humorado essas questões estariam assim:
a) Igreja metafísico-platônica?
b) Igreja político-militante de esquerda?
c) Igreja castelo-divino da consolação?
d) Igreja oficina mecânica social?
e) Igreja mater et magistra?
Na prática, encontramos igrejas evangélicas cuja auto-compreensão engloba apenas uma dessas questões, seja a a, b, c, d ou e. Há igrejas apenas no modelo a. Outras apenas no modelo c, e etc. Noutras, dá-se uma amálgama desses elementos: igrejas marcadas pelos itens b e d. Outras caracterizadas pelos itens a e c. A fragmentação e a relativa independência existente entre as igrejas protestantes permitem essa variedade de auto-compreensões que não ocorre no catolicismo. No entanto, o que considero mais importante na auto-compreensão eclesiológica não é saber qual dos modelos corresponde à eclesiologia bíblica (se é que ela existe) ou à Igreja verdadeira (do ponto de vista da estrutura eclesiológica). Não há como deduzir nenhum modelo eclesiológico do NT, uma vez que este apresenta apenas as fases germinais da organização estrutural das primeiras comunidades. Mais importante, em termos eclesiológicos, é que cada igreja tenha a capacidade de refletir constantemente sobre a sua auto-compreensão e consequentemente sobre o seu sentido de missão. Numas igrejas temos visto essa preocupação mais que noutras. Em algumas delas, a atualização do conceito de missão se dá de forma condizente com os clamores do mundo moderno. Noutras, nem tanto. Cabe-nos avaliar dentro do contexto maior do cristianismo, até que ponto o protestantismo evangélico no Brasil tem tido essa capacidade de reavaliação, e, se o tem feito, a quais conclusões tem chegado.
2. Modelos históricos de reavaliação do conceito eclesiológico de missão
2.1 Reavaliação do conceito de missão no contexto Católico: de Trento ao Vaticano II
Ao leitor ainda preso às categorias anticatólicas tão presentes no imaginário protestante brasileiro deve parecer insana uma comparação eclesiológica com aquela igreja. Tal metodologia, na verdade, não é minha. A tradição sinótica preservou um aspecto interessante da pedagogia de Jesus o qual desejo copiar aqui. Refiro-me ao uso pedagógico do exemplo “dos que não são” para ensinar “aos que são”. Trocando em miúdos, os evangelistas preservaram a memória onde os ímpios e pagãos são descritos por Jesus como “modelos de fé” para os Filhos de Abraão . Nessa pedagogia, de acordo com algumas parábolas e encontros de Jesus com o diferente, os samaritanos, os romanos e os gregos são apresentados sacrilegamente (aos olhos do judaísmo e do imaginário judaico de então) como exemplos de compaixão e de fé, ou seja, como exemplos de praticantes das grandes virtudes do reino, esperadas dos Filhos de Abraão (veja Mt 8,5-13; Lc 10, 25-37; Lc 17,11-18). Não se trata de uma pedagogia programada. Simplesmente nasce do encontro fortuito com o diferente e do reconhecimento humilde de suas virtudes. O que em Jesus nasce casualmente, em Paulo aparece mais sistematizado como parte de sua teologia, como nesta declaração: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são, a fim de que ninguém vanglorie na sua presença” (1Co 1, 27-29).
Dessa maneira, no meu modo de ver, a Igreja Católica apresentou uma incomparável capacidade de reavaliação do sentido da missão em relação ao protestantismo evangélico no Brasil neste último século. Obviamente, vários fatores concorreram para isso, sendo o principal a estrutura eclesiológica unificada do catolicismo, ao lado da relativa independência das inúmeras denominações e comunidades evangélicas neste país. Por hora, não nos cabe empreender uma avaliação mais pormenorizada desses porquês.
A Igreja Católica que entrou no século 20 é ainda uma igreja fortemente marcada pelo espírito do Concílio de Trento, que, como já fora observado, consagra-se às medidas para a Contra-reforma. Trata-se de uma Igreja cuja auto-definição principal revela sua verdadeira pretensão: ser Mater et magistra. Nesse modelo está presente a tentadora posição de controladora da vida social, junto ao aparelho estatal, como presente em todo período colonial e padroado. Politicamente, trata-se de uma igreja sempre disposta a confirmar a ideologia da situação, opressora ou não, e legitimar religiosamente o status quo. Liturgicamente conservadora, sobretudo no uso do latim como língua da liturgia. Eclesiasticamente, o modelo piramidal – Magistério/relig
iosos/fiéis – predomina, embora não tenha sido superado ainda hoje. Em termos de missão, o grande chamado eclesial é o de administração da grande Cristandade e a preservação do passado e da Tradição. As relações inter-religiosas são tensas uma vez que as demais religiões estão para essa igreja como concorrentes, como descaminhos, quando não como heresias da pior espécie, cuja perseguição e o extermínio representam ações lícitas. As relações sociais são vistas no sentido de preservação dos bens simbólicos dessa grande Cristandade, e por isso a mentalidade de conflito em relação aos poderes de opressão inexiste.
Numa fantástica coletânea de artigos dedicados à memória de Dom Helder Câmara, José Comblin caracteriza a “igreja tridentina”, isto é, esta igreja que temos definido como uma igreja arraigada pela influência do espírito pós-Trento, a partir da atuação do bispo fiel a este modelo, que Comblin considera ultrapassado . Na denúncia do “bispo tridentino”, aparecem, para aquele autor, as principais faces dessa igreja:
a) O bispo tridentino é antes de qualquer coisa um administrador: administra o clero e os bens da Igreja, fiscaliza, nomeia, transfere, coordena, castiga, recompensa, estimula uma Igreja estabelecida e considerada como essencialmente estável. Atua dentro de uma Igreja cujo atributo principal é a imutabilidade;
b) O bispo tridentino governa a Igreja com o Direito Canônico na mão. (…) No modelo tridentino, a evangelização do mundo não faz sentido. Supõe-se o mundo já evangelizado, que já passou o tempo da evangelização e que basta agora a disciplina;
c) O linguajar eclesiástico [tridentino] é incompreensível, mesmo para a maioria dos católicos. (…) O linguajar eclesiástico não é ouvido porque não diz nada. Repete a mesma coisa de sempre .
Todavia, o Concílio Vaticano II (1962-1965) representou um importante marco na reavaliação não só do conceito de missão, mas em toda auto-compreensão daquela igreja. É notório que esse concílio ecumênico da Igreja Católica se deu num período de profundas turbulências e transformações no panorama político-social latino americano. Tal período é marcado pelo forte levante das forças políticas de esquerda, sobretudo com a Revolução Cubana e os anseios socialistas que rondavam os países latino-americanos. Concomitantemente, trata-se também de um período de afirmações das forças políticas mais reacionárias, como nas ditaduras instaladas em vários desses países, incluindo o Brasil (1964). Numa palavra, a realidade latino-americana começava a sentir os efeitos reversos das expectativas desenvolvimentistas e a radicalização de um capitalismo cada vez mais dependente das grandes potências norte-atlânticas. No contexto europeu, distintamente dessa realidade de dependência dos países latino-americanos, os grandes dilemas dizem respeito ao processo já em andamento de uma secularização sempre crescente e o sentimento de não-tutelagem por parte da sociedade. É nesse contexto de clamores globais que se dá o Vaticano II. Surge como uma tentativa de adaptar a ação e a presença católica aos clamores do homem contemporâneo. Trata-se do “concílio da abertura”, onde a identidade de uma igreja superposta à sociedade necessita ser revogada para dar lugar a uma encarnação da atividade eclesial à vida e aos clamores da situação. A passagem de Yves Congar parece refletir bem o espírito que alimentou o Vaticano II:
Se a Igreja quer enfronhar-se dos verdadeiros problemas do mundo atual e esforçar-se por esboçar uma resposta…, deve abrir novo capítulo de epistemologia teológico-pastoral. Em vez de partir unicamente do dado da revelação ou da tradição, como geralmente o fez a teologia clássica, deverá partir de fatos e indagações, recebidos do mundo e da história (citado por Gutierrez, 1976, p. 24).
Muito embora este tenha sido o espírito motivador do Vaticano II, não desprezo as críticas dos próprios teólogos católicos quanto às in-apropriações desta igreja em relação às discussões desse concílio. Muitos foram e são críticos em relação a um suposto regresso à mentalidade tridentina após o Vaticano II, e entre esses menciono Leonardo Boff, Dom Helder Câmara, o próprio José Comblin e João Batista Libânio . No entanto, ainda que a Igreja não tenha colhido em toda sua extensão as discussões e as decisões do Vaticano II, isso não anula a importância do mesmo quanto à reavaliação do sentido da missão e suas implicações eclesiológicas. Menciono a seguir uma lista considerável de novas estruturas eclesiais alimentadas pelos ventos do Vaticano II. São elas: a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada por Dom Helder Câmara e que constitui um importante avanço nas relações episcopais no sentido de unificar num organismo institucional o episcopado do vasto Brasil e que hoje é responsável pelas anuais Campanhas da Fraternidade; a Conferência do episcopado latino-americano em Puebla (1968), cujas decisões mais importantes inflamaram os anseios da Teologia da Libertação por voltarem-se todas para a realidade de opressão e miséria das maiorias nesses países; o Movimento Bíblico, cuja grande contribuição fora recolocar a Bíblia na mão do povo (embora a liberdade interpretativa esteja sempre sob os rigores do Magistério); as milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) espalhadas pelo Brasil e cujos anseios, de acordo com Leonardo Boff, refletiam uma nova maneira de ser Igreja (Católica) no Brasil – uma eclesiogênese -, mais descentralizada em termos de poder, mais afeita à participação efetiva dos leigos e mais engajada nos problemas concretos das maiorias pobres; as diversas Pastorais Civis, como a Pastoral da Terra, Carcerária, Universitária e da Criança, que representam a encarnação da igreja nos dilemas mais profundos da sociedade civil; além dos muitos grupos sem vínculo institucional, porém imbuídos do mesmo espírito e amparados pela participação de representantes oficias da Igreja, como as Comissões Justiça e Paz e o Conselho Indigenista Missionário.
Não resta dúvida que todas essas novidades eclesiais geradas sob a influência e as expectativas do Vaticano II representem um importante avanço na auto-compreensão e na reavaliação do sentido de missão e de presença no mundo. Em relação àquela “igreja tridentina” superposta à sociedade, a igreja do Vaticano II deseja ser, segundo o apelo de Congar, uma igreja enfronhada nos verdadeiros problemas do mundo e sedenta por lhes apresentar uma resposta condizente.
Mais uma vez, se concretamente não se vê no catolicismo de então a encarnação desses ideais em toda sua plenitude, e se restam ainda fortes resquícios da igreja tridentina, não se nega que as novas estruturas eclesiais mencionadas representem um avanço eclesiológico inigualado pelo protestantismo até agora.
2.2 Reavaliação do conceito de missão no contexto Protestante:
da síndrome dos números à eclesiologia integral
Nossa avaliação até aqui, embora esteja preocupada em fazer as devidas relações com o todo do fenômeno protestante em nível mundial, deve ater-se à realidade desse fenômeno no Brasil. Destarte, desde já vale ressaltar uma das mais importantes constatações acerca disso: nunca houve “O Protestantismo Brasileiro”, como um grupo homogêneo, coeso, um bloco sólido e unificado que representasse a fé protestante por aqui. Já sua inserção no Brasil se dá de maneira parcelada, em blocos, em tipos que sucederam um ao outro em sua chegada ao Brasil. Das muitas tentativas de tipologia do fenômeno protestante no Brasil, creio ser a mais ajustada aos nossos dias a classificação de Martin N. Dreher, por alcançar a totalidade das igrejas evangélicas brasileiras, mesmo aquelas que não pertençam a nenhuma convenção, junta ou corpo denominacional organizado. Sem me estender nessa tipologia, menciono rapidamente, por ordem de aparecimento, os cinco tipos protestantes apresentados por Dreher: (1) protestantismo de imigração; (2) protestantismo de missão; (3) pentecostalismo; (4) neopentecostalismo; e (5) grupos transconfessionais .
No entanto, mesmo sem nunca ter tido uma unidade estrutural, as igrejas protestantes brasileiras estiveram desde cedo unidas por um “princípio invisível” que a todas perpassava: o sentimento de antagonismo ao catolicismo, que temos chamado de anticatolicismo. Interpretado como o elemento de atraso da sociedade brasileira, o catolicismo sempre se constituiu como o principal adversário dessas igrejas , levando-as a instituir o proselitismo como uma de suas principais atividades eclesiais. Chegado ao Brasil sem um povo, a necessidade do crescimento numérico por meio do proselitismo sempre constituiu um desafio à sobrevivência dessas igrejas. De outra maneira, o catolicismo também sempre se constituiu como uma espécie de “contra-imagem” do que representa ser cristão. Se o católico é aquele que fuma, bebe, joga e não economiza, o protestante é aquele não pratica nada disso. Se ao católico é aconselhável participar ativamente da vida política do país, ao protestante cabe uma participação passiva, reduzida quando muito à oração pelas autoridades, que, segundo essa fé, são sempre instituídas por Deus. Em termos atuais, trata-se de uma espiritualidade reacionária, perigrinacionista, que mais legitima o status quo do contesta-o.
Todavia, chegamos ao século 21 e as coisas já não andam do mesmo jeito. Muito dessa identidade foi revisada pelas formas emergentes do protestantismo evangélico brasileiro de agora, que já se vê fortemente presente na política do país, e que vai trocando cada vez mais seu ranço anticatólico por outros ranços, que só o tempo dirá se válidos ou não.
Aqui cabem alguns questionamentos importantes:
a) Quais chances tiveram as igrejas protestantes no Brasil para reavaliar o sentido de sua missão?
b) Se a identidade protestante de grande parte do século 20 já não pode ser totalmente comparada à de agora, em que consistiu tal revisão e em que isso implicou para o conceito de missão?
c) Em que sentido o novo conceito de missão do protestantismo evangélico brasileiro condiz com os anseios e clamores da atual conjuntura?
d) Há ainda alguma nova síntese a se realizar no protestantismo evangélico brasileiro?
Quero apresentar sucintamente minha avaliação frente a esses questionamentos:
1. À questão a são possíveis, no mínimo, duas respostas. Uma tem a ver com elementos relacionados ao próprio protestantismo brasileiro internamente. A outra tem a ver com sua relação com o todo do protestantismo no mundo. Indubitavelmente o protestantismo evangélico brasileiro perdeu uma enorme oportunidade de reavaliação do sentido da missão evangélica quando muitas de suas forças institucionais abafaram os movimentos progressistas que começavam a ensaiar novos modelos eclesiológicos mais integrais em meados da década de 1950 e início da década de 1960. Tratava-se de grupos de estudantes e também muitos pastores tocados pela necessidade de ajustar as atividades eclesiais de suas igrejas ao forte apelo da sociedade, já marcada intensamente pela miséria e desigualdade. A Conferência do Nordeste em 1962 é a demonstração mais persuasiva desse anseio, que, infelizmente, se viu abafado pelas representatividades oficias e gestoras dessas igrejas, sobretudo em função do golpe militar de 1964. Esses acontecimentos representavam o anseio de revisão do conceito de missão evangélica e da presença e atuação dessas igrejas no país. Outro evento, este já de porte mundial, que marcou uma interessante oportunidade de revisão missiológica por parte do protestantismo em todo o mundo, foi o Congresso de Lausane, em 1974. De acordo com o teólogo equatoriano C. René Padilla, um dos resultados mais valiosos do Congresso foi o Pacto de Lausane, um documento de 2700 palavras, em quinze seções, redigidos sob a direção de John Stott . Conforme Padilla (2005, p. 10), “com este Pacto os evangélicos tomaram posição contra um evangelho mutilado e um conceito estreito da missão cristã”. Não obstante, é sabido que no seio do protestantismo evangélico brasileiro quase nada se colheu desse evento. Mais ousadamente, eu diria que pouquíssimos, mesmo entre os líderes evangélicos, sabem desse evento. Infelizmente.
2. À questão b pode-se responder da seguinte maneira: a identidade protestante de agora, no meu modo de ver, é ainda mais alienante que outrora, quando o anticatolicismo constituía sua principal marca. De maneira simplificada e descontraída, pode-se dizer que os protestantes brasileiros deixaram de lado sua inimizade com os “ídolos do catolicismo” para se amigarem com os principais “ídolos da cultura moderna”: o poder, o dinheiro e o mercado. Certamente isso traz conseqüências inevitáveis para o conceito de missão dessas igrejas. Embora a ânsia proselitista permaneça sendo uma de suas marcas, juntamente com a síndrome dos números (abertamente refletidas em todos esses novos modelos eclesiológicos importados como a Igreja em Células, o Igreja com Propósitos, e afins), é parte integrante do conceito atual de missão nessas igrejas a relação estreita e institucionalizada com o poder de Estado, com a gerência de setores do mercado capitalista e com a gerência de uma parcela da imprensa, enquanto importante poder de formação de opinião p&uac
ute;blica. Alienadas da vocação evangélica, tais iniciativas eclesiais constituem-se sem exceção como co-promotoras da exclusão social geradas por todas essas faces de manipulação do poder que listamos acima.
3. Quanto à questão c, restrinjo-me a dizer que tal reavaliação do conceito de missão e presença da igreja no país, como visualizado no protestantismo evangélico de agora, pouco condiz com os anseios e necessidades da sociedade brasileira. O protestantismo evangélico brasileiro de agora cresce assustadoramente em termos numéricos, mas cada vez mais diminui em termos de representatividade relevante em meio à sociedade. Os índices apresentados pelo IBGE no Censo 2000, que apontavam naquela época para 15,6%, isto é, quase 26 milhões de cristãos evangélicos no Brasil, ainda não apresentaram seu fruto em termos de mudanças estruturais na sociedade brasileira. Por outro lado, em lugar das mudanças na sociedade acompanharem o crescimento evangélico no Brasil, este tem sido acompanhado pela descredibilidade sempre crescente das formas institucionais de religião, sobretudo em virtude da atividade política da “bancada evangélica” e dos incontáveis escândalos em todas as áreas envolvendo líderes de diferentes denominações.
4. A questão d é a mais desafiadora de todas. A ela dediquei todo um artigo num outro lugar . Apresento aqui, resumidamente, as conclusões a que cheguei naquela oportunidade. Fora o elemento institucional que me liga ao protestantismo de missão, creio ser este o grande portador da chance de produzir as novas sínteses protestantes no Brasil, e isso por alguns motivos mais que pessoais. O primeiro desses motivos é a irreversível fragmentação dessas igrejas (batista, presbiteriana, metodista, episcopal, etc.) rumo à sua extinção enquanto instituições religiosas. Por mais que este prognóstico se revista de um pessimismo intolerante, deve-se pensar que tal pessimismo está calcado na realidade cotidiana dessas igrejas, confirmada por qualquer pesquisa estatística nessa área. Trata-se, também, de uma questão de sobrevivência. Ao ver-se nessa “encruzilhada existencial”, o protestantismo de missão no Brasil pode encontrar o caminho de uma nova síntese que ao mesmo tempo lhe revitalize e seja condizente com os anseios e clamores da sociedade brasileira, espoliada pelas inúmeras modalidades de injustiça e exclusão que existem. Em segundo lugar, apenas o protestantismo de missão pode realizar tal síntese partindo de dois momentos de reflexão séria: primeiro, a reflexão acerca da esterilidade dessa missiologia evangélica atual, para que essa seja uma tentação que não o seduza; segundo, tal síntese exige o destronamento da própria ideologia desse protestantismo de missão, atada ainda às suas matrizes norte-atlânticas, caracterizadas principalmente pela flutuação em relação aos problemas mais sérios da sociedade brasileira. Sob essas condições, ou seja, na renúncia aos modelos de crescimento numérico convencionados de maneira incondicional pela maioria das igrejas de hoje e na renúncia também de sua própria maneira de ser igreja, o protestantismo de missão pode experimentar uma nova vitalidade, mais afeita ao espírito evangélico e mais engajada nas mazelas deste país.
Vale insistir na tese de que o melhor conceito eclesiológico de missão não é aquele que é deduzido de maneira mais inequívoca do NT, mas aquele que é capaz de reavaliar-se sempre à luz dos novos desafios do contexto. Enquanto o protestantismo evangélico no Brasil não se der conta dessa verdade, o exemplo “dos que não são” continuará servindo “aos que são”, como ensinou com paixão Jesus de Nazaré.
3. Pistas para a pastoral
É enorme o desafio que os/as pastores/pastoras e líderes protestantes têm no Brasil em termos de missão. Como essas igrejas não contam com uma estrutura unificada como no catolicismo, cabe a cada uma delas elaborar por si mesmas essas reavaliações. O Brasil dispõe de todos os aspectos negativos que convocam à vivência de um evangelho mais integrado e inserido socialmente. Perduram entre nós os piores indicadores sociais, resumidos na péssima distribuição de renda, na péssima ocupação da terra e o conseqüente problema da habitação, na criminalidade galopante, nas péssimas condições de saúde da maioria da população, acrescidos ao insistente problema da educação. Todos esses indicadores sociais desfavoráveis ganham realce na realidade urbana. Ali os contrastes deixam de ser estatísticas frias e assumem as cores vivas e quentes em imagens que nos enchem de indignação e retratam fielmente os níveis de desigualdade que grassam em nossa sociedade. Em minha opinião, é profundamente escandalizador que essa realidade toda não conste em nossos programas missionários. Mais ainda, a ausência dessa inserção denuncia silenciosamente que a alcunha de “evangélicos” é usurpação do termo. Qualquer leitura atenta dos Evangelhos evidenciará que o alvo da libertação é todo o homem e o homem todo, incluindo a realidade que lhe cerca .
Para que não transpareça a idéia de que essas igrejas devem diluir sua identidade em função dos desafios sociais (deixamos claro que não é essa nossa posição no capítulo 2), cabe iniciar essas pistas à pastoral relativas à reelaborarão do conceito de missão dizendo que permanece sendo imprescindível a dimensão do anúncio das Boas Novas do Evangelho ao homem como sujeito, pecador e carente de redenção pessoal. Não prescindimos da idéia de que a experiência do Evangelho se configura como um chamado pessoal a cada homem e a cada mulher. Como o fermento que leveda toda massa, a partir dos encontros pessoais esse projeto de uma nova sociedade vai ganhando corpo, e a antecipação histórica do reino pode ir sendo ensaiada. O homem, sujeito privado e solitário em sua experiência pessoal, necessita conectar-se novamente à fonte de onde se encontra alienado e distante, e essa experiência só se dá no nível da subjetividade, jamais podendo resultar de esforços objetivos a ele impostos. É como convicção pessoal e alimentado somente por isso que o sujeito pode compreender e cooperar nesse plano maior que prevê uma nova realidade. Não se consegue isso por procuração nem por objetivações de quaisquer espécies. Por tudo isso é imprescindível aquele modelo de evangelização sujeito a sujeito, onde os aspectos da redenção pessoal são enfatizados. Essa é, a meu ver, uma das conquistas perenes do Protestantismo e nenhum programa de revisão do conceito de missão pode prescindir dela.
Todavia, aos teólogos/teólogas, pastores/pastoras e líderes que conduzem essas igrejas já extrapolou o momento de perceberem qu
e tal modelo de evangelização é somente um dos aspectos da missão, não sendo nem mesmo o prioritário, já que não há hierarquias e prioridades na missão eclesial conforme os Evangelhos. Caso as igrejas compreendam a si mesmas não mais como concretizações do reino, mas como ensaios antecipatórios da nova humanidade, o conceito de missão e de evangelização necessitará elastecer-se. Reiteramos a sugestão de Yves Congar quanto à necessidade de que as igrejas têm de “enfronhar-se dos verdadeiros problemas do mundo atual e esforçar-se por esboçar uma resposta, abrindo novo capítulo de epistemologia teológico-pastoral. Em vez de partir unicamente do dado da revelação ou da tradição, como geralmente o fez a teologia clássica, deverá partir de fatos e indagações, recebidos do mundo e da história”. A missão deverá incluir uma reverberação das dores do mundo no interior das igrejas. Em linguagem bíblica trata-se de “se alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram” (Romanos 12,15), e em nosso caso os motivos são muitos mais abundantes quando se trata de chorar com os que choram. O modelo missionário fundado no arquétipo da Arca de Noé – bem vivo nas igrejas do protestantismo evangélico brasileiro – onde a Igreja “flutua em direção à salvação sobre as ondas bravias da humanidade” deve ser abandonado. No lugar dele, urge a irrupção de um modelo onde as igrejas “mergulhem nas águas e sintam junto com os demais a possibilidade da morte”, e assim sintam-se motivadas a dar sua contribuição conjunta na salvação de todos. Mas, na prática, como é possível seguir a indicação de Congar e enfronhar-se dos verdadeiros problemas humanos?
Primeiro, tal tarefa só é possível a partir de um conhecimento lúcido das chagas estruturais que afligem a sociedade. Cada contexto particular apresentará uma configuração distinta que merecerá tratamento diferenciado. Isso, entretanto, não se faz sem um adequado instrumental de análise. Tradicionalmente a Filosofia sempre constou como parceira privilegiada no diálogo com a fé e com a Teologia. A partir da década de 1950 teólogos protestantes se deram conta de que a Filosofia havia se tornado insuficiente enquanto parceira epistemológica da fé para confrontar a realidade de cativeiro, de subdesenvolvimento e de dominação em que se encontravam os países latino-americanos. Desde então as Ciências Sociais têm sido encaradas como o instrumental analítico que mais se adequada à perspectiva cristã e evangélica de leitura da nossa realidade continental. As Ciências Sociais compreendem em seu quadro a Sociologia, a Economia e a Ciência Política. Os dados que essas análises fornecem acerca da realidade social são extremamente fecundos para a Teologia e para a missão engajada por dois motivos: (1) por descreverem com precisão as anomalias sociais com dados estatísticos e análises especializadas; (2) e, além disso, por apresentarem as causas estruturais das disfunções sociais. Pastores/pastoras e líderes fazem muito bem em acessar a esses dados e pesquisas. Perverterão assim seu chamado e vocação? De nenhum jeito! Instrumentalizarão o Evangelho em função de causas estranhas? De forma alguma! Do contrário, se utilizarão de instrumental analítico especializado que converge para os mesmos temas e prioridades evangélicos: a dignidade da pessoa humana (e da sociedade) como imagem de Deus .
Em seguida a esse momento de leitura da realidade mediado pelos devidos instrumentais de análise, pode-se empreender um programa de inserção nas instâncias organizadas da sociedade civil. Tem sido uma enorme tentação para líderes evangélicos optarem pela inserção na institucionalidade político-partidária. Quero evitar toda polêmica em torno dessa atitude e apontar as institucionlidades organizadas da sociedade civil com outra via de inserção social, tais como as ONG’s, as associações de bairros, os centros comunitários, os Conselhos Municipais de Saúde e Educação e etc. Em minha maneira de ver, a inserção social por essa via oferece algumas vantagens de ordem prática e de ordem moral. Do ponto de vista da práxis, a presença de pastores e pastoras nessas organizações põe-nos diretamente conectados com a realidade popular. Nesses encontros e reuniões tem-se a oportunidade de ouvirem-se relatos, partilhar-se idéias, dividirem-se anseios pessoais e comunitários que podem lançar pistas interessantes à uma práxis engajada e relevante. Já do ponto de vista moral, a inserção nessas instâncias da sociedade civil por parte de pastores e pastoras proporciona menos chances de corrupção pessoal ou de submissão a ideologias contrastantes com a ideologia pessoal do pastor ou da pastora. Num contexto de desconfiança crescente no tocante à idoneidade das autoridades religiosas, isso não deixa de ser uma grande vantagem. Não obstante, não compreendemos essa tarefa como sendo exclusiva a pastores/pastoras e líderes. Na verdade, trata-se de um chamado concomitante a toda comunidade de fé, incluindo aqueles e aquelas que não possuem status de liderança.
Tudo isso implica no rompimento de uma das históricas dificuldades das igrejas que compõem o protestantismo evangélico no Brasil: a eliminação das fronteiras entre igreja e sociedade. Nesse imaginário subjaz ainda a imagem da Arca de Noé, da Cidade de Deus em antagonismo com a cidade dos homens, para usar linguajem agostiniana . Uma honesta reavaliação do conceito eclesiológico de missão deve levar esse problema em consideração. Constitui escândalo o fato de que os “sem voz” não encontrem na comunidade do Evangelho lugar para sua voz. Falam ali o catedrático, o diplomado, o candidato, mesmo quando não são membros formais. Não falariam também aqueles a quem Jesus comparou a si próprio? Não falariam ali o pobre, o nu, o doente, o forasteiro, com quem Jesus identificou-se diretamente (Mateus 25,31-46)? É dever de pastores/pastoras e líderes abrir esse capítulo da dinâmica de suas comunidades. Afinal, creio que seja veraz a afirmativa de que “a Igreja, em muitas partes, constitui o único lugar legal onde se pode exercer a palavra livre e crítica, e onde se podem realizar os laços mínimos de sociabilidade” (BOFF, op. cit., p. 43). Se isso já vem acontecendo em termos das “membresias” das igrejas locais, por que não estendê-lo à comunidade como um todo? Também as experiências que já se fazem nesse sentido têm-se mostrado profundamente profícuas, e em lugar de corromperem o Evangelho, resgatam sua dimensão profético-periférica e fontal junto aos pobres.
Para finalizar essa seção de pistas à missão eclesial-pastoral, sugere-se aos pastores/pastoras a promoção sistemática de atividades pr&aa
cute;ticas que não só remediem os fatos da desintegração social, como a pobreza, o analfabetismo, a fome e o problema das drogas, por exemplo, mas também previnam contra esses fatos e promovam libertação. Essas atividades podem constar do cronograma eclesial, assim como constam as atividades evangelísticas e discipulares. Geralmente essas igrejas contam em seu quadro de membros com profissionais de áreas específicas que podem oferecer seus serviços nessas atividades, como médicos/médicas, enfermeiros/enfermeiras, assistentes sociais, e etc. É dessa forma que a comunidade vai construindo paulatinamente uma práxis integrada e relevante, e vai se tornando parceira da comunidade no processo de humanização condizente com o Evangelho. O pentecostalismo parece ter invertido a fórmula basilar da Teologia da Libertação, que versava sobre a opção preferencial pelos pobres. Tem-se dito que a Teologia da Libertação fez opção preferencial pelos pobres e os pobres fizeram opção preferencial pelo pentecostalismo. Não seria o momento de uma nova inversão preferencial de todo protestantismo evangélico brasileiro em relação aos pobres?
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