Poderão esses ossos reviver?

Autor: Selma Rosa
“Eu me expresso ao expressar o mundo; eu exploro minha própria sacralidade ao tentar decifrar o mundo”, escreve Gouvêa Franco. É assim que encontramos Ezequiel: tentando – como nós – decifrar o seu mundo, o seu tempo, a situação do seu povo, de sua gente. Não é isso o que também muitos de nós deseja? Decifrar o mundo, a igreja, os caminhos e descaminhos da vida; procurando às vezes ousada, arrogante ou humildemente decifrar o próprio Deus?
A história conta que após um longo processo de instabilidade, ameaças e cerco, finalmente os babilônicos invadiram Jerusalém, saquearam a cidade e provocaram um colapso na vida econômica, política e religiosa de Israel. Alguns fugiram ou morreram de doença ou fome; outros foram exilados e outros executados. Tudo ficou seriamente comprometido: a economia, a segurança, a terra, a estabilidade, a fé, a esperança, o ânimo, a lucidez, a sensatez, a capacidade de organização. Sem que o soubessem, aqueles desterrados tornavam-se tema de uma tela assustadora e envolvente. Os contornos da cena são decifrados por Ezequiel por meio de uma visão: a visão de um vale, um vale cheio de ossos secos. Um vale onde as ausências estão tão presentes que o profeta parece ser incapaz de apostar na vida.
Será que esses ossos poderão reviver? É a inquietante voz percorrendo cada veia daquele sacerdote. Uma força maior o havia levado para aquele lugar. E por fé, descrença ou mera humanidade, ele circula, observa a realidade: uma nação devastada, um povo enfraquecido e confuso, um Deus vencido,o templo destruído e um rei derrotado. Cada um de nós é desafiado a fazer o mesmo: observar a realidade, pois um dia, a mão de Javé pousou sobre nós!
O que vemos no vale de ossos secos? De que ausências e presenças ele é composto?
1. No ano passado, fomos violentamente tirados do nosso torpor diário, quando, pela imprensa, ficamos conhecendo o Monstro da Áustria e a “Casa do horror”; ou ainda quando tomamos conhecimento acerca da empresária Silvia Lima, de Goiânia, que torturava a própria filha adotiva, de 12 anos;
2. Vimos líderes que se autoproclamam apóstolos serem presos e depois a exposição pública dos inúmeros processos contra eles bem como o humilde patrimônio, conquistado com muita fé na boa fé ou ignorância do povo e questionável temor a Deus;
3. As facilidades da tecnologia também nos permitem acessar uma das casas do pastor dos pobres, construída em Campos do Jordão, com 2mil metros quadrados, 35 cômodos e avaliada, na ocasião, em 6 milhões;
4.O documentário Bagaço, produzido em 2006, denunciou a situação desumana dos cortadores de cana de Pernambuco (retrato da situação desses trabalhadores no Brasil) que precisam, para sobrevivência, cortar 10 toneladas de cana por dia a 0,14 centavos o metro (250ms=6 toneladas);
5. Difícil aceitar a atitude do Arcebispo de Olinda, “que excomungou os médicos e a família da menina de 9 anos, de Alagoinha (a 230 km de Recife), que fez um aborto após ser estuprada e engravidar de gêmeos”. Ou ainda a postura do Papa em recente visita à África, o qual condenou o uso de preservativo num país devastado também pela aids. Vale lembrar que “No país, a incidência de estupros é epidêmica como a própria síndrome, e as duas estão vinculadas”;
6.Incômodo saber que em Londrina “A ameaça é o crime mais comum contra a mulher,” de acordo com a atual Delegada Elaine Riberito;
7. Desafiador conviver com o fato de que o consumismo e a luta pela hegemonia fizeram dos EUA o principal responsável pelo aquecimento global. Mesmo assim, carregamos estampado no peito o belo slogan Let’s save the planet.
8. Fácil escolher as fofocas de Hollywood e os discursos de prosperidade a encarar os problemas, dificuldades, fome, pobreza na América Latina; fácil julgar, condenar, oprimir, fazer acordos e conchavos , deixar a vaidade vencer e nos convencer de que “somos melhores porque somos filhos do rei”. Difícil é trazer a verdade à luz.
É correto, portanto, afirmar que o vale de ossos secos manifesta-se por meio da violência, da fome, da desigualdade social, da opressão, do lucro, da avareza, da ganância, da falta de amor, de escrúpulos, de ética, do moralismo, da hipocrisia, de líderes que se tornaram sucesso absoluto, usando, “em nome de Deus,” a infalível receita: prosperar sempre e cada vez mais! Todos esses são elementos presentes na sociedade e nas igrejas, fazendo dos espaços sagrados também profanos.
Os exilados estão enfraquecidos; as forças que os sustentavam foram abatidas pelo medo, incerteza, derrota e pela falta de esperança. É assim que muitas vezes nos sentimos também. Algumas pessoas sofrem mais, outras menos, outras quase nada. Algumas enfrentaram ou enfrentam na própria carne as investidas da morte, do desemprego, da fome, da falta, da solidão. Outras já se sentiram desencantadas: consigo mesmas, com a igreja e passaram a questionar suas convicções mais profundas ou até a própria presença do sagrado no caminho.
Após a tentativa de decifrar a realidade, a voz percorrerá também as nossas veias: poderão esses ossos reviver? Com Ezequiel não foi diferente. Quando isso acontecer, é preciso lançar-se sobre as verdades divinas e profetizar, acreditar. Foi para isso que Deus um dia nos tocou! Não foi para que nos tornássemos abastados, mas ricos em misericórdia, piedade e fé.
Tendões, carne, pele, espírito, osso com osso! Vem, alento, dos quatro ventos, e sopra sobre esses cadáveres para que revivam.O vale de ossos secos foi o local do encontro, da reconstrução, da organização. Uma reforma muitas vezes não é o suficiente. É preciso alterar cada dimensão da vida. É o Espírito de Deus que faz reviver, que restaura as forças, anima, põe-nos de pé apesar da nossa fraqueza, derrotas e decepções. É ele que faz que o perdão seja oferecido, que a tolerância seja a medida da misericórdia, que a esperança jamais se apague, É Ele que faz acontecer o insuportável e maravilhoso barulho da vida revelado no abraço, nas mãos que se estendem e alcançam o outro, nos atos de justiça, na resistência de cada um diante dos sistemas que promovem a morte e a opressão. E a morte só acontece quando vence o conformismo, a alienação e a passividade.
O barulho dos ossos transforma-se nos sons da própria vida quando a justiça é feita, quando a beleza é contemplada, quando a oferta é maior que o interesse pessoal; quando o olhar está satisfeito com aquilo que tem; quando o desespero pela partilha é superior ao da aquisição, quando celebra-se o Batismo e a Ceia do Senhor, sacramentos pouco lembrados em muitas igrejas.
Esses são os movimentos e ruídos do espírito sobre a humanidade, dizendo que, apesar de tudo, trazemos em nós também a capacidade de sermos bons.
“Poderão esses ossos reviver?”
“Profetizei o que me fora mandado. Penetrou neles o Espírito, reviveram e se puseram de pé.”

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