Autor: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Introdução
Entre a redação do livro de Malaquias e a dos primeiros textos neotestamentários não houve produção literária judaica? Sim, houve! Muitos foram os livros escritos neste período, contudo, eles não foram inseridos no cânone do Antigo Testamento Hebraico que os protestantes também adotam.
Estes conjunto de obras que não figuram nos cânones hebraico e protestante são chamados de apócrifos. Apócrifo significa literalmente “coisas ou escritos ocultos”. Este termo é utilizado para denominar os livros judaicos que foram rejeitados, primeiro pelo judaísmo, ainda na antiguidade, e, depois, pelo protestantismo por que não foram considerados sagrados. Alguns deles – Tobias, Judite, A Sabedoria de Salomão, Eclesiástico ou a Sabedoria de Jesus ben Sirac, Baruque e A Carta de Jeremias, I e II Macabeus e acréscimos aos livros de Ester e Daniel (Susana, Bel e o dragão, o Cântico dos três jovens) – são denominados pelos católicos como deuterocanônicos e encontram-se nas Bíblias deste grupo religioso. Assim, ainda que estes livros tenham sido lidos e estudados pelos cristãos por séculos, com a reforma protestante e o nascimento das igrejas evangélicas, optou-se por seguir a determinação judaica.
Além desses deuterocanônicos, houve uma grande produção literária judaica, elaborada entre os séculos III a. C. a II d.C., que não foi reconhecida como revelada nem pelos líderes judeus nem pelos primeiros cristãos e ainda não o é, hoje, aceita pelos católicos como tal. Este grupo de livros são chamados de pseudepígrafos. Este termo significa, literalmente, falsos sobrescritos, ou seja, falsas alegações de autoria. Eles são, portanto, assim denominados porque atribuem sua autoria a um personagem bem conhecido pelos judeus, tais como Adão, Enoque, Moisés, Baruque etc.
Estas obras foram compostas por judeus que se encontravam na Diáspora, ou seja, vivendo no Egito e na Síria, ou na própria Palestina, por elementos ligados às chamadas seitas judaicas, como os essênios e fariseus. Dentre o conjunto de obras produzidas neste período, encontram-se Testemunhos, Textos de sabedoria, Biografias, Livros proféticos e outros, tais como Carta de Aristeas, O Testamento dos 12 Patriarcas, Ascensão de Isaías, Salmos de Salomão, Vida de Adão e Eva etc.
Os judeus não incorporaram os deuterocanônicos e os pseudepígrafos no seu cânone por vários motivos, dentre eles destacamos: a convicção que todos os livros sagrados teriam sido escritos até Esdras; a pouca fidelidade dos textos aos costumes judaicos e a aplicação da lei mosaica; por terem sidos escritos em grego; porque incorporaram crenças helenísticas; o uso, ou não, que já se fazia destes textos nas sinagogas no século I d. C.; por possuírem um acentuado tom escatológico; porque dentre as diversas seitas judaicas surgidas a partir do século II a.C. e que produziram textos, só os fariseus sobreviveram após a Guerra Judaica que assolou a palestina entre 64-70 d.C. e foram os membros desta seita judaica, portanto, os responsáveis finais pela escolha dos livros. Os evangélicos, concordando com estes critérios, acabaram por também rejeitá-los.
A seguir, vamos apresentar as principais características destes livros, principalmente no tocante às inovações teológicas que incorpora ou consolida.
Os apócrifos e a literatura apocalíptica
Estas obras, ou seja, os textos chamados apócrifos, deuterocanônicos ou pseudepígrafos, também são conhecidos como textos apocalípticos devido ao seu conteúdo. É do verbo grego, que significa revelar ou descobrir, que vem a palavra apokalypsis, apocalipse, que significa revelação. Desta palavra surgiu o adjetivo apocalíptico, que passou a ser empregado para designar esta literatura, nascida primeiro no judaísmo, que é o que nos interessa aqui, mas também, posteriormente, no cristianismo.
Segundo uma crença, corrente entre os judeus dos últimos séculos antes de Cristo, os céus “se tinham fechado” e o Espírito de Deus não havia mais descido sobre nenhum chefe ou profeta após a morte de Ageu, Zacarias e Malaquias. Neste sentido, a partir do III século a. C., alguns movimentos religiosos dentro do judaísmo se dedicaram a salvaguardar a sua história e manter vivos seus costumes, bem como reafirmar a crença no futuro, e o fizeram utilizando livros. Estas obras, portanto, buscavam mostrar que a trajetória de Israel não havia terminado e que seu papel na história do Universo ainda mantinha-se vivo. Assim, através deste escritos, reafirmava-se a importância do povo judaico e a esperança em dias melhores, a despeito dos céus se encontrarem “fechados”, a ausência de um Estado organizado ou de um grande líder político.
Estes livros apresentavam um personagem, na maioria dos casos tratava-se do próprio narrador, que se considerava inspirado pelo Espírito de Deus. Ele era apresentado ascendendo aos céus, seja através sonhos, visões, arrebatamento, ou pela inspiração direta do Espírito Santo, entrando em contatos com os mistérios divinos. São estes mistérios que ele anuncia, descrevendo suas visões e as interpretando. Vejamos, por exemplo, uma passagem da obra apocalíptica Livro dos Segredos de Enoque:
Aconteceu que, depois de Enoque ter falado com os filhos, os anjos o levaram em suas asas ao primeiro céu, e o puseram nas nuvens. E aí eu olhei, e olhei, e olhei outra vez mais alto e vi o éter, e eles me puseram no primeiro céu e me mostraram um grande mar maior que o mar da terra (Cap. III).
(…) ” Este lugar, ó Enoque, é preparado para os justos, os que se abstêm de todas as formas das ofensas que vêm daqueles que exasperam sua alma, que preservam seus olhos da iniqüidade e que fazem julgamentos justos (…) ( Cap. IX).
O escritor apocalíptico é aquele que acredita estar revelando os segredos sobre a origem do mundo e o seu fim. Porém, como oficialmente a revelação já terminara, os verdadeiros autores atribuíam seus textos à autoria de outros, buscando garantir uma certa antigüidade às suas obras e, por extensão, sua aceitação junto ao público. É importante realçar que eles não acreditavam estar mentindo, pois se consideravam uma espécie de “comentadores” de preceitos já revelados ou novos porta vozes que reforçavam e relembravam, ao povo, antigos ensinamentos.
A literatura apocalíptica, contudo, sistematizou e divulgou uma série de idéias inovadoras, desenvolvidas a partir da teologia anterior, devido ao contato com outras culturas, em especial o helenismo, e como respostas às dificuldades vividas em então. Os judeus, após o exílio babilônico, foram dominados por vários povos, sofreram perseguições e guerras. Vamos destacar as que consideramos mais significativas.
Em primeiro lugar, quanto à concepção de história, que passa a ser considerada mais do que uma série de acontecimentos sucessivos vividos por Israel, mas um todo que se iniciara com a criação do mundo e se prolongara até a instauração do reino escatalógico. Assim, segundo esta visão da história, há uma constante relação entre o Passado e o Futuro. O Passado é visto como o ponto de partida, o gênese, a criação; o Futuro é o fim, o momento de instauração de um “novo céu e de uma nova terra”.
Um segundo aspecto a sublinhar é a forma como o presente é retratado: como o palco do combate entre a luz e as trevas, o bem e o mal. Deste modo, figuram nessas obras anjos e demônios.
Em terceiro, há que destacar que não obstante o tom pessimista de tais textos, que apresentam de forma negativa o presente e anunciam que tudo está se degradando, neles reafirma-se a crença na salvação, que não visa só aos judeus, mas a todos os homens. Cabe, porém, ao povo judeu um papel preponderante na instauração deste novo mundo, pois, segundo estes livros, deste povo virá o Messias, ou Messias, que salvará a Humanidade. Assim, no Testamento dos 12 Patriarcas lemos:
Obedecei a Levi; em Judá sereis redimidos. Não vos levanteis contra estas dois tribos, porque delas surgirá a Salvação de Deus. Deus suscitará de Levi um Sumo Sacerdote e de Judá, um rei e homem. Este salvará as tribos de Israel e todos os homens (Test. Simeão – caps. 7:1-2).
Assim, mesmo em meio as dificuldades, crescia a crença, entre os judeus, que Deus providenciaria a Salvação através de um Messias. Esse Messias, que em alguns momentos é um Sacerdote ou guerreiro ou até são duas pessoas, um rei e um sacerdote, viria das tribos de Levi e Judá. Com o advento do Messias, acreditava-se, a missão histórica de Israel estaria cumprida.
Estes livros, portanto, buscavam motivar o povo, restaurar as suas esperanças, afirmando que apesar da presença crescente do mal no cotidiano, havia uma garantia de vitória final.
Conclusão
A literatura apocalíptica, apesar de não manter uma total unidade teológica, já que compreende livros produzidos em diversos espaços e momentos, marcou profundamente o judaísmo, chegando a influenciar os primeiros cristãos. Com esta literatura, a sociedade judaica afirmava-se viva, cumprindo sua vocação histórica, mesmo que, politicamente, encontrava-se arruinada. Através destes textos, o judaísmo se coloca mais aberto às outras nações, pois a salvação apresentada nas obras apocalípticas não se restringia às tribos de Israel, mas a todas os povos. Desta forma, estes livros são ricos testemunhos dos séculos em que o judaísmo sofreu influências diversas, resistiu e se adaptou à uma nova realidade cultural.
Para saber mais:
ROST, L. Introdução aos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo Testamento e aos manuscritos de Qumran. São Paulo: Paulinas, 1980.
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