O testemunho da família cristã no mundo contemporâneo

Autor: Drª Maria do Rosário e Eng.º Roberto Carneiro
Conferência do casal Drª Maria do Rosário e Eng.º Roberto Carneiro
Jornadas Internacionais da FICPM

(…) Sem a virtude, o homem é a criatura mais perversa e a mais cruel, a mais abandonada aos prazeres dos sentidos e a todos os seus desregramentos (…) Aristóteles, Política

UM TEMPO DE MUDANÇA, UM TEMPO DE INTERPELAÇÃO[1]

Vivemos um tempo especial.

A vertigem tecnológica apossou-se do quotidiano. A velocidade a que se processa a mudança é imparavelmente ascendente e dificulta a interiorização das crises. O futuro apresenta-se, cada vez menos, como a projecção do passado.

Esta é a “era da descontinuidade”, nas palavras de um notável analista da contemporaneidade, P. Drucker.

Neste turbilhão, a família – instância comunitária eminente e, como tal, a um tempo produto e fautor da “relojoaria social” – é “apanhada” na transição de milénio entre “dois fogos”, dois estilos de sociedade. Desde sempre situada na linha divisória entre permanência e mutação, entre conservação e inovação, a família e a sua função educativa vêem-se submetidas a tensões sem precedentes. Elas são bem o espelho de todas as contradições que se abatem sobre as nossas sociedades; mas, dito isso, também é importante verificar que sobre elas repousam todas as esperanças de melhoria da sociedade futura. Na idade do conhecimento e da informação torrenciais a educação readquire uma posição de grande destaque nas visões estratégicas do porvir colectivo. Na era da fractura social exposta, a família é convocada para recuperar o seu papel inequívoco de motor de solidariedade e de semeadora de coesão social.

Na anterior sociedade, estável, simples e repetitiva, a memória dominava o projecto, os princípios transmitiam-se imutáveis, os modelos exemplares conservavam-se como arquétipos. Era o primado da estrutura sobre a génese.

Na nova sociedade, instável, inventiva e inovadora, o projecto sobrepõe-se à memória, o futuro domina o passado, os modelos são constantemente postos em causa. É o primado da génese sobre a estrutura.

No ambiente turbulento em que vivemos, longe do equilíbrio e perpassado de incertezas, o importante parece passar pelas competências de gestão de fluxos, já não pela arcana aptidão para administrar stocks. Os dinamismos sociais afiguram-se mais relevantes do que os patrimónios acumulados. Todos sem excepção – governos, empresas, famílias, organizações políticas, instituições da sociedade civil, indivíduos – enfrentam o repto premente de se reorganizarem em função de ambientes cada vez mais inteligentes e, em consequência, polvilhados de entes cada vez mais interactivos e ciosos de autonomia.

Para uma geração em transição, refém da ideologia da novidade, a memória perde relevância, a família sente-se quantas vezes desorientada, a própria educação propende a mudar de horizonte: de retrospectiva passa a prospectiva. Em conformidade, o projecto familiar e educativo assume utilidade na exacta medida em que apetrecha o indivíduo como agente de mudança.

Num mercado globalizado, marcado por uma espiral de oferta de produtos e de serviços, não basta cantar laudas à multiplicidade de opções. É insuficiente celebrar o estonteante labirinto de caminhos que a sociedade dot.com proporciona ou a vertiginosa encruzilhada de hipertextos que polvilha o reino da comunicação multimédia. A simples abundância de escolhas, ou a mera melhoria das condições materiais de vida, não torna os homens necessariamente melhores ou mais sábios.

Com efeito, viver é escolher … e não é possível escolher todas as direcções ao mesmo tempo. O risco seria não conseguir chegar a nenhum lado. Mesmo a errância como destino só teria sentido caso ela fosse o fruto de uma opção livre, consciente e deliberada.

Qualquer processo de escolha consciente pressupõe critério, capacidade de eleição do importante sobre o acidental, clareza na percepção dos fins, sentido dos valores alicerçantes de uma concepção de vida.

O dealbar do novo século reclama, por isso, uma refontalização da família e da educação como reflexo e projecto de uma cultura, enraizada na memória mas aberta ao devir. Esta densificação cultural do projecto humano demanda a sabedoria das sínteses, a correcta sinalização dos fins e a detecção do fio-de-Ariana que garante segurança à aventura do desconhecido. A família foi e é o “lugar de memória” por excelência, onde o velho se casa como o novo, o antigo confere “espessura” ao presente fugaz, onde o tempo é sinónimo de estabilidade/continuidade ao invés de ruptura e voracidade. Neste preciso sentido a família é ainda hoje o principal gerador de uma cultura de processos e de afectos num ambiente ditado por uma cultura de resultados e de utilidade.

Dito de outro modo, trata-se de reinventar uma nova Paideia, vocábulo que, na rica tradição helenista, é sinónimo, a um tempo, de Humanidade, de Educação e de Cultura. Ora, não existe Paideia sem compromisso. Desde logo, compromisso de cada indivíduo, consigo próprio e com um projecto claro de vida, para se tornar plenamente pessoa. Mas, fundamentalmente, compromisso com os seus grupos sociais de pertença e com a sociedade como um todo para se tornar cidadão de corpo inteiro, na realização de deveres e de direitos de participação que são irrenunciáveis a uma consciência cívica bem formada. E, ainda, compromisso dos cristãos e das famílias cristãs com a resposta ao desafio de interpretar o mundo, de ir ao seu encontro sem medo[2], de aperfeiçoá-lo, e de o aproximar do ideal que há 2000 anos nos foi legado como alfa e omega da história.

Mas para aí chegar precisamos de comunidades fortes. Ninguém é uma ilha; muito menos, a sinfonia do destino humano pode ser tocada tão só por intérpretes solistas.

À teia de relações entre actores numa sociedade e, sobretudo, ao conjunto de recursos sociais que ela gera – obrigações e expectativas – tendo em vista a manutenção da sua coesão e a construção de bases de confiança entre os seus membros, chama-se hoje capital social. Aos principais actores sociais e comunitários pede-se redobrado empenhamento na formação e disseminação de capital social.

Na verdade, nenhuma comunidade subsiste e se desenvolve apropriadamente sem dispor de capital social em abundância e na ausência de um thesaurus mínimo de empreendorismo social capaz de o orientar em benefício do bem comum.

Família, Igreja e Escola são as três instâncias sociais que mais podem contribuir para a geração desse corpus crítico de capital social. Enquanto na primeira prevalecem as aprendizagens do coração, isto é baseadas no afecto e na cumplicidade, na segunda emergem as aprendizagens de fé, que combinam a força do mistério com o discernimento da razão, enquanto na terceira têm lugar as aprendizagens da mente, que aliam cognição a estabilidade emocional. Umas e outras são indispensáveis ao proporcionado desenvolvimento da personalidade humana, ou seja, a uma educação integral da pessoa, bem como ao delicado equilíbrio das sociedades.

Cícero, um dos grandes teorizadores da civilização romana e o mais helénico dos latinos, enunciou os três princípios fundamentais – “imortais”, na nomenclatura do nosso saudoso Prof. Manuel Antunes – da educação social: Gravitas, Pietas, Simplicitas.

Todos e cada um dos termos dessa trilogia contêm uma intencionalidade cidadã, estão imbuídos de um sentido de Formação para a Cidadania. Vale a pena lembrá-los ainda que sucintamente.

Gravitas, reporta-se à aquisição de uma consciência plena de responsabilidade pessoal perante os outros e face aos imperativos do destino comum, vivido em partilha. É sinónimo de seriedade e de honestidade para equacionar as grandes questões da Cidade.

Pietas, nomeia o sentido de respeito, com afectuosidade, pelos direitos essenciais de todos – deuses, famílias e pessoas, na acepção de Cícero – que se manifesta sob a forma de um vínculo que liga cada um aos objectivos de coesão do grupo. Esse misto de afecto, respeito e sujeição, direitos e deveres, amor e temor, é a característica dominante de Eneias, herói de Virgílio e símbolo de Augusto.

Simplicitas, designa a capacidade de reconhecer o valor autêntico de cada pessoa e de cada coisa na vida. É o rigor como norma, a medida exacta das coisas, o critério na escolha, o discernimento das causas importantes e da hierarquia dos factos.

Muito mais recentemente, os séculos XVII e XVIII legaram-nos os fundamentos indispensáveis da moderna teoria e praxis económica.

A extraordinária multiplicação da capacidade humana de criação de riqueza verificada no decurso da segunda metade do século XX é a prova – se necessário fora – da importância desses pensadores e do sistema de produção-consumo que, sobre as suas teorias, foi sendo estruturado com assinalável sucesso.

Expressões máximas dessa influência podem ser encontradas no individualismo neoclássico e na teoria da competição perfeita no mercado. Um e outra confiam na mão invisível para corrigir excessos e para regular os mecanismos de distribuição de riqueza na sociedade. É sumamente interessante notar – passados todos estes anos – que muitas destas posturas, como a teorização de Hobbes sobre as virtudes do interesse próprio, surgiram como antídotos ao fundamentalismo religioso e étnico que desencadeava paixões dificilmente compatíveis com o bem público e reclamava lealdades de grupo fechado, em manifesta contradição com o interesse da comunidade mais vasta. O culto do individual como virtude nasce, pois, por reacção ao pecado do fanatismo grupal, mas é ao longo dos séculos erigido em alavanca única do progresso mercantilizado em que mergulhou a nossa narrativa presente.

Ora, a verdade é que o ser humano não se rege apenas pelos comportamentos do homo economicus, ou, na sua reincarnação contemporânea, do homo globatus, profundamento solitário na sua relação individual com o mundo “internetizado”: o síndroma “sozinho no mundo” é verdadeiramente assutador! Efectivamente, são conhecidas as milenares polémicas entre Epicuristas e Estóicos, campos que extremavam a oposição entre interesses individuais e valores comunitários. Essas duas naturezas profundas da alma humana mantêm-se hoje em tensão. Na realidade, se não oferece hoje dúvida a superioridade do modelo de mercado para a produção e transacção de bens económicos, também é verdade que repousa na densidade de recursos sociais o factor explicativo da coesão das comunidades e das suas relações íntimas de confiança.

A nossa civitas contemporânea é infinitamente diversa e complexa.

No decurso das últimas décadas o económico sobrepôs-se ao social. Não espanta, assim, que vivamos um tempo dominado pelo individualismo e pela busca do máximo consumo pessoal. Por isso, a história das nossas cidades é também, em larga medida, uma narrativa de exclusão, fragmentação, violência e destituição de valores cívicos. O mercado, na sua ânsia de eficiência, polariza e discrimina sem apelo nem agravo, desde que deixado à solta, sem regulação nem compensação. Por seu turno, o Estado providencial – poderoso Leviathan no ideal utópico de Hobbes – revelou-se manifestamente incapaz de gerir a economia ou de assegurar a equilibrada distribuição dos bens sociais.

A sociedade de indivíduos, feita de egos isolados e incapazes de construir nexo entre si, é uma sociedade-mosaico a 24 horas, desintegradora do espírito de comunidade e das bases do capital social que lhe fornece a matriz estruturante.

Uma sociedade individualista não subsiste à conflitualidade centrifugadora que, inevitavelmente, se instala no seu interior. À negação do papel do religioso na esfera pública – confinando-o ao perímetro do espaço privativo de cada um – resulta um enorme empobrecimento cultural da sociedade. Perde-se igualmente o papel codificador de valores de civilização desempenhado pelas Igrejas ao longo de séculos incontáveis e o factor aglutinador de comunidades que ele continuadamente representou. Essa é a dimensão trágica da “descristianização” do mundo.

Na verdade, é impossível negar o papel central dos valores cristãos na formação do nosso espaço civilizacional, aquele que é correntemente designado como de Mundo Ocidental. A proposta cristã – universal e intemporal na sua essencial sabedoria – está na raíz de todos as grandes taxonomias de valores ditos ocidentais: justiça, solidariedade fraterna, valor da vida, dignidade inviolável da pessoa humana, direitos humanos, sentido do transcendente, superioridade do espiritual sobre o material, respeito pelo outro, liberdade com responsabilidade, primado do serviço, …

É a cristianização do mundo e da cultura que marca a mais fantástica viragem na história. Inaugura-se um novo tempo, uma nova cosmologia, um novo ordenamento, um novo logos. O Homem Cristo confere dimensão eterna ao Homem Adão.

Ora, a verdade é que vivemos ainda sob o influxo dessa extraordinária novidade: a vinda de Cristo e a Boa Nova que Ele nos anuncia. Foi há “apenas” dois mil anos que esse evento ocorreu, acabamos de dar início ao terceiro milénio da era cristã sob o signo de uma mera iniciação na caminhada para a Redenção.

A narrativa do futuro – coincidente com a inauguração de um novo século e milénio – merece uma história substancialmente diferente. Se o cristianismo predominar, isto é, se o social, o cultural e o humano adquirirem prioridade sobre o económico, veremos inaugurado um tempo inclusivo, onde todos podem habitar a cidade e nela buscar a sua felicidade pessoal na dignidade e na concertação de interesses com todos os demais concidadãos. Será o retorno à Paideia sob a forma de um novo humanismo cristão.

Para aí chegar, terá de ocorrer uma autêntica conversão de consciências, uma reconciliação entre dois mundos, dois pólos e dois discursos que permanecem antagonizados na nossa cidade moderna: solidariedade vs competição, perdão vs ofensa, misericórdia vs egoísmo, distribuição vs acumulação, ideal vs pragmatismo, bondade vs predação, paz vs guerra, valores vs relativismo.

A felicidade lite inspirada no consumo ilimitado ou na falácia tecnológica já nada tem para oferecer de duradouro à contingente condição humana. O século XX, extraordinário na tradução inventiva do génio humano e no alargamento das fronteiras do conhecimento, foi também o tempo dos mais horrendos holocaustos, um “século curto” na pesada qualificação de E. Hobsbawm.

A construção de um horizonte de sustentabilidade para as sociedades humanas reclama uma nova ética de vida e de relacionamento entre os homens, assim como uma vontade de agir que nela encontre esperança. Hoje, pensar com determinação o futuro e não desistir de influenciar a história com base numa proposta clara de valores constituem imperativos cristãos.

Está na nossa responsabilidade redescobrir e desvendar a novidade radical contida no “rosto de Cristo”.[3]

À Igreja, aos cristãos, às famílias cristãs, pede-se que sejam corajosamente proféticos em razão da missão a que são inequivocamente convocados.

UM TEMPO DE MUDANÇA, UM TEMPO DE APRENDIZAGEM

Este é mesmo um tempo especial. Tão especial que nem tempo sobra para olhar e pensar.

É tudo tanto, é tudo tão rápido. Como escolher, quando escolher, que escolher.

A vertigem do segundo que dura, a sedução das múltiplas modas, o encanto do acesso tão, tão facilitado.

A família composta por pai, mãe e filhos, onde cada um desempenha um conjunto bem claro de papéis diferenciados (o pai que garante o sustento e é o chefe de família, a mãe que garante a esfera privada) parece parte dos compêndios de história, e as orientações que a ela se referem, por assentarem neste modelo dito histórico, parecem desajustadas, fora das realidades quotidianas.

E, todavia, a família é a instituição onde aprendemos a realizar escolhas fundamentais. Desde logo, as escolhas de vida, as opções ditadas pelo amor que não pelo interesse. Mas igualmente as escolhas de futuro, ainda que estas impliquem o diferimento de gratificação ou de prazeres presentes. Como dizia um dos personagens principais de um filme actual, colocado perante as opções mais difíceis ou as avaliações mais complexas, “eu escolho a nós”, ou seja, “renuncio a escolher simplesmente eu”. Este é um dos valores mais perenes da família como verdadeiro estaleiro de solidariedade humana.

APRENDER A DISCERNIR é uma resposta imprescindível da família aos desafios que nos afrontam.

As mudanças contemporâneas têm um impacto especial e determinante na organização das famílias.

Ao longo dos tempos foi-se consolidando uma ideia de família assente numa aliança, alicerce do projecto. Por assim dizer, as famílias como que representavam uma entidade, nova, onde os dois se diluem. Ou pelo menos, representavam um projecto de dois.

No entanto, hoje pode-se dizer que é cada vez menos assim. Não é um projecto, nem é de dois. Antes sim, são dois projectos, de dois. Os valores são cada vez mais os valores do individuo, os seus direitos, as suas liberdades e garantias.

A forma como fomos e somos educados valoriza o primado do eu, favorece a competição, des-significa o sentido de serviço.

E assim nós constituimos família, na perspectiva do meu eu.

Mas constituir-se em família significa, sem dúvida, alguma cedência, que terá que se verificar para que haja construção.

Cedência que representa sempre dádiva.

A construção do projecto comum, partilhado, é talvez a primeira questão que se coloca ao casal e é talvez a mais difícil.

Porque não é fácil dar.

Porque não é fácil abdicar de partes do meu eu.

Mas a família é o lugar, sem igual, onde se é convocado a dar. A construção do lar, da Igreja doméstica (uma verdadeira Ecclesia nuclear) como significativamente a nomeamos em linguagem sacramental e simbólica, representa esse compromisso infatigável de repressão do egoísmo individual, do pequeno imperador que transportamos interiormente.

Por isso, essa é a instância onde procuramos ensinar os filhos a serem melhores, a desenvolver consciências justas e rectas, a crescerem na bondade e no discernimento.

Construir quotidianamente um lar é APRENDER A VIVER JUNTOS[4] mesmo quando poderia ser mais apetecível e cómodo seguir o caminho pessoal.

APRENDER A VIVER JUNTOS é, sem margem para demissões, a determinação de nos ajudarmos a toda a hora, em todas as dificuldades, ainda que individuais, a capacidade de nos dizermos uns aos outros que nenhum de nós está sozinho em nenhum momento da vida. É ainda o compromisso de nos ajudarmos uns aos outros a fazer de cada um – não apenas os filhos, mas também os pais, avós, bisavós, netos ou bisnetos – uma pessoa melhor e, por essa via, mais feliz.

A família é um bastião de culturas de resistência[5]. São escassos lugares de pertença que nos solicitam a sermos pessoas melhores e dadivosas.

Porque nada no mundo exterior ajuda – os empregos são de dificil acesso, fortemente competitivos e exigentes, quase sempre incompatíveis com fórmulas de vida comum mais humanizadas. Um bom posto de trabalho, uma promessa de carreira, uma garantia de contrato exigem total disponibilidade – de horários, de interesses, de projectos. A comunicação social valoriza constantemente o mais forte, o vencedor, o êxito financeiro ou a ascensão na escala material da vida. Os incentivos ao sucesso profissional e social passam ao lado das prioridades familiares.

O que sobra para constituir família, ter filhos, criar filhos, é quase nada ou mesmo nada.

O investimento na formação pessoal tão duramente realizado ao longo de muitos anos tem que ter a máxima rentabilidade, tem prioridade sobre a família. Os “elevados custos de oportunidade” no mercado da feroz competição profissional que nos rodeia não se compadecem com o “investimento” na construção da família ou na opção absorvente dos filhos. Na impiedosa equação dos retornos os tesouros do mundo falam mais alto do que os benefícios imateriais da qualidade de vida familiar.

A prevalência do homo economicus na cultura hodierna leva-nos a querer acumular sem tecto aparente. A angústia cresce, ao invés de descer, com o progresso material: quanto mais conseguimos ter mais nos falta ter. Quanto mais fazemos e trabalhamos, mais nos falta fazer, mais longinquo se nos apresenta o horizonte do que fica por trabalhar.

APRENDER A FAZER, as coisas certas, no lugar necessário, no tempo apropriado, segundo a hierarquia equilibrada, é uma aquisição da família, instância essencial de transformação do homo faber em homo sapiens sapiens (a dobrar também porque feito, pelo menos, a dois …).

A emancipação das mulheres tão duramente alcançada não tem retorno.

As famílias contemporâneas constroem-se a partir desta nova realidade – mulheres que trabalham fora de casa, mulheres que têm menos filhos e passam menos tempo em casa. E de homens que ainda não aprenderam que a construção da sua família é também tarefa que lhes pertence[6].

A vertigem do eu sobrepõe-se no projecto de vida de cada um. A relação partilhada dura o segundo da compatibilidade possível e não mais. O divórcio é assim e de forma crescente e continuada a solução para os desencontrados projectos individuais.

Ter família, ser família é cada vez mais uma afirmação voluntarista, é cada vez mais o resultado de uma construção determinada. Conciliando conquistas, evitando perdas.

A sociedade começa pouco a pouco a descobrir, que para além dos indivíduos, depende essencialmente das famílias. Elas são o seu cimento e o seu sedimento.

APRENDER A CONHECER como a dimensão relacional é indissociável da felicidade pessoal, como o indivíduo, sendo imperfeito e ainda que limitado, só se torna perfectível na vida partilhada e na busca de complemento humano, como na interface entre o indivíduo e a sociedade o valor acrescentado da mediação familiar é necessário, tudo isso representa um repto decisivo para a sobrevivência ética das nossas comunidades actuais.

Não basta evoluir biologicamente. Não chega progredir em conhecimento. Não é suficiente ascender em padrões de fruição e conforto material.

A procura da felicidade[7] brota de um conhecimento reflexivo, feito de sabedoria de vida, e que é em si mesmo generativo, isto é, criador de sobressaltos de consciência.

A mera evolução mecanicista, ao sabor das modas e das correntes, na ausência de projecto é menorizante. Só da permanência em família pode brotar uma evolução consciente na medida em que o projecto de vida não se esgota em metas individuais mas, outrossim, procura objectivos nobres de construção grupal que acrescentam intenção e significado à simples existência individual[8].

A sociedade pouco a pouco vai definindo formas múltiplas (se bem que ainda insuficientes) para que homens e mulheres possam voltar a viver em família, queiram formar famílias – avós, pai, mãe, filhos, netos, todos solidários num projecto comum.

No entanto as solicitações, as múltiplas solicitações contemporâneas continuam a apelar a modelos de comportamento assentes no efémero, no fácilmente descartável e substituível.

Construir uma família, viver em família, é edificar um projecto que se quer estável, durável, que resiste às provações, à moda, às múltiplas solicitações veiculadas pelos media.

Os casais precisam de estabilidade para terem filhos. Os filhos precisam de mãe e de pai, que assumam as suas funções parentais, para que possam crescer e assumir progressivamente as suas múltiplas autonomias. Os netos precisam dos avós para alcançar o sentido da profundidade temporal e compreender a sabedoria do envelhecimento humano ou o seu reverso do carácter efémero de uma juventude quantas vezes soberba. Só no confronto do novo e do velho é que se aprende a amar o frágil e a adquirir a verdadeira consciência da grandeza contida na contingência humana.

Nesta medida, diziam os filósofos mais sábios que a medida definitiva da condição humana está contida não tanto no que se faz na plenitude da força da vida mas mais significativamente no que se continua a sonhar e a fazer acontecer no mais ínfimo reduto da fraqueza que inexoravelmente nos invade no ocaso da existência. A constância no serviço ao outro, a persistência em, sendo-se frágil ajudar o forte, é um admirável atributo da capacidade de construir felicidade seja qual for a estação da vida.

Por tudo isso, também, a família é locus do APRENDER AO LONGO DA VIDA E COM A VIDA: a conhecer o que se foi, o que se é e o que se virá a ser, numa misteriosa continuidade biológica e espiritual que faz a unidade indestrutível do género humano; a descobrir a impiedosa rendição de gerações que está na génese da história cíclica da humanidade e da consequente necessidade de transmissão patrimonial – espiritual e material – de pais para filhos em contexto de continuidade familiar.

O valor superlativo de estar e de permanecer em família é assim uma aprendizagem matricial que, obviamente, só pode entretecer-se e consolidar-se em ambientes familiares estáveis. Uma aprendizagem que não é fruto do acaso ou da circunstância; antes, é o produto de um esforço continuado onde todos aprendem permanentemente em todas as etapas do projecto de vida em comum.

Nesta comunidade de incessante aprendizagem a edificação da felicidade está na proporção directa do valor da fidelidade. Com efeito, sem fidelidade aos valores do agregado, sem fidelidade conjugal, sem fidelidade ao dever de educar os filhos, sem fidelidade humana aos progenitores, a felicidade não é sustentável, correndo o risco de se consumir na voragem da fogueira das infidelidades em que mergulhou a mercantilização das relações de troca utilitárias.

APRENDER A FIDELIDADE surge, assim, como aprendizagem fundamental a ter lugar no seio da família, a qual é também condição sine qua non dos propósitos de estabilidade que alicerçam a família robusta e duradoura.

A fidelidade como percurso e a felicidade como meta são grandes finalidades do projecto de família, em todos os tempos. A família que é sede de projecto é também, por definição e vocação, mentora de sentido para a vida, motor de profecia, criadora de futuros melhores.

Porque se quer, porque se acredita, porque se tem vontade.

Mas também porque se tem esperança, porque se acredita no amor, na alegria, na capacidade de dar e de aceitar.

Mas também porque se é apoiado por uma sociedade nova que se desdobra em soluções e políticas de acolhimento dos novos comportamentos e formas organização da vida das famílias de forma a permitir o surgimento de uma família democrática, estável e funcional.

Mas também porque a Mãe Igreja lê finalmente os sinais dos tempos e é guia e amparo para que homens e mulheres se revejam nos seus ensinamentos e construam projectos de vida solidários e partilhados.

Uma Nação forte é aquela que é feita de famílias sólidas e obreiras (“a boa árvore mede-se pelos seus frutos”). Uma Igreja pujante é aquela que assenta em famílias cristãs, conscientes do valor do seu testemunho e combatentes na realização dos seus ideais.

Falamos de famílias que se encontram conscientes dos sinais dos tempos e dispostas a responder prontamente, realizando todas as aprendizagens que lhes são próprias e peculiares.

Temos em mente famílias que APRENDEM A SER numa comunidade de testemunho, plena de desígnio e fonte de uma cultura de vida.

Abraçando com determinação a missão de perpetuar a forma mais antiga de estar e de transformar o mundo e a sociedade, designamos famílias que aprendem a sê-lo promovendo o seu amadurecimento interior, procurando sem fraquejar o crescimento interior de cada um dos seus membros integrantes.

Aprender a ser com as outras famílias na perspectiva do fortalecimento do associativismo familiar, que nos une nos combates fundamentais e na realização daquele sonho de uma “única família humana” de que nos fala o Livro do Génesis.

Aprender a discernir.

Aprender a viver juntos.

Aprender a fazer.

Aprender a conhecer.

Aprender ao longo da vida.

Aprender a fidelidade.

Aprender a ser.

Estamos em presença de um temário que é simultaneamente um ideário para as famílias do 3º milénio. Dito de outro modo, impõe-se uma aposta clara de cada família na educação e na formação dos seus membros; educação e formação que têm por destinatário o reduto mais precioso da essência do ser humano: a consciência humana.

Duc in altum é a exortação profética do Santo Padre para o novo milénio[9].

O mandato é, sem dúvida, interpelante para a consciência de cada cristão. Mas ele tem de ser interpretado com igual veemência na consciência de cada família cristã ou comunidade de fiéis.

Faz-te ao largo, deixando que o Espírito sopre e fecunde a tua acção familiar, e que Nossa Senhora, Mãe de Deus e dos homens, te proteja e inspire constitui-se como missão irrenunciável para a resposta aos desafios do nosso tempo.

Se tivermos confiança, como aconteceu com o Apóstolo, a faina será produtiva e as redes encher-se-ão de peixe.

“A esperança é a virtude dos tempos trágicos”, ouvimos um dia dizer ao Cardeal Poupard, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura.

O habitáculo renovado da esperança reside na família; esta, por seu turno permanece a célula mais básica da sociedade humana. A família é a fonte, agora e sempre, de esperança para a sociedade.

Num contexto de desânimo e de generalizada demissão, viver a esperança é, sem margem para dúvida, um traço de identidade da família cristã.

A família é o lugar de onde se vê o futuro; da família cristã vê-se a esperança da humanidade.

A vertigem do tempo

Tensões e contradições

Memória e projecto, génese e estrutura

Novidade e agentes de mudança

Viver é escolher…

A refrontalização da família e da educação

Cultura de processos e de afectos

Por uma nova Paideia: tornar-se pessoa e cidadão

A construção do capital

…Família, Igreja e Escola

Os três princípios de Cícero

Gravitas
Pietas
Simplicitas

O reino do individualismo neoclássico

Do homo economicus ao homo globatus

A polarização do mercado e a falência do Estado Providência

A Sociedade de indivíduos

As Igrejas como codificadores de valores

Os valores cristãos na matriz do Mundo Ocidental

A novidade cristã

A conversão na cidade moderna

O horizonte de sustentabilidade das sociedades humanas e a contemplação do rosto de Cristo

Velocidade, vertigem e sedução

A escolha fundamental na família: nós ou eu?

Aprender a discernir

Um projecto de dois ou dois projectos de dois?

A dádiva e a partilha

A construção da Igreja doméstica

Aprender a viver juntos

Culturas de resistência

Os elevados “custos de oportunidade” da dedicação à família

Aprender a fazer

Os novos papeis das mulheres

A família como afirmação voluntarista

Aprender a conhecer

A felicidade como horizonte …

… e desafio de uma evolução consciente

Família e estabilidade familiar

Amar o frágil e defender o ínfimo na família

Aprender ao longo da vida e com a vida …

… significa um esforço continuado para o projecto de vida em comum

Aprender a fidelidade

Uma sociedade nova “amiga” da família

Uma Nação forte feita de famílias sólidas, uma Igreja pujante assente em famílias cristãs

Aprender a ser

Uma família que aprende

Um temário para o 3º milénio …

… Duc in altum …

… um mandato interpelante

A esperança como virtude

A esperança: um traço de identidade cristão

A família cristã, esperança da humanidade

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[1] Este capítulo representa uma adaptação e alargamento do Prefácio ao livro em fase de publicação:

R. Carneiro (2001), Fundamentos da Educação e da Aprendizagem, Porto: Fundação Manuel Leão

[2] “Não tenhais medo” é, recordemo-lo, a desassombrada divisa do pontificado do Papa João Paulo II que, ao longo de mais de 20 anos dela dá permanente e vivo testemunho.

[3] O rosto de Cristo e a necessidade premente de O contemplar são, aliás, temas centrais da Carta Apostólica (Novo Millenio Ineunte) com que João Paulo II anuncia o caminho do novo milénio.

[4] É relevante lembrar que este é um dos quatro pilares da aprendizagem para o século XXI enunciados no livro Educação: Um Tesouro a Descobrir, editado pela UNESCO em 1996, em resultado do trabalho da Comissão Internacional para a Educação no século XXI coordenado por Jacques Delors.

[5] Culturas de resistência nos termos em que M. Castells caracteriza as culturas que no fim do milénio são portadoras de sementes de futuro sem se vergarem ao peso opressor dos modismos.

[6] Circunstância que levou a que um dos arautos do “fim da História”, F. Fukuyama, viesse a proclamar a emancipação da mulher e a sua consequente entrada no mercado de trabalho como o grande factor de ruptura das sociedades actuais.

[7] “The pursuit of happiness” expressão de T. Jefferson, retida na Magna Carta Americana, que sintetiza magnificamente a gesta da humanidade. A prossecução da felicidade é aqui entendida não num sentido hedonista (a felicidade como soma de prazeres), mas num sentido ético (a felicidade como soma de virtudes) (Ética a Nicómano, liv. I a V, Platão), in Diogo Freitas do Amaral (1999), História das Ideias Políticas, Vol.I, Coimbra: Almedina.

[8] Na certeira palavra de A. Giddens: “No one would have any reason to live, if they didn’t have something that was worth dying for…”.

[9] Atente-se na palavra plena de actualidade e de força de João Paulo II na Carta Apostólica Novo Millenio Ineunte:

“No início do novo milénio quando se encerra o Grande Jubileu, em que celebrámos os dois mil anos do nascimento de Jeus, e um novo percurso de estrada se abre para a Igreja, ressoam no nosso coração as palavras com que um dia Jesus, depois de ter falado às multidões a partir da barca de Simão, convidou o Apóstolo a «fazer-se ao largo» para a pesca: «Duc in altum» (Lc 5,4). Pedro e os primeiros companheiros confiaram na palavra de Cristo e lançaram as redes. «Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe» (Lc 5,6).

fonte: http://www.cpm-portugal.pt/CPMComoViver1.htm

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