O Reino de Deus entre nós

Autor: Andreas Ding

Meditação sobre Marcos 1, 21-28

A graça do nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus, nosso Pai, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos nós. Ámen.

Estamos a viver numa época em que a violência e a morte aumentam: há guerras legitimadas por doutrinas extremistas políticas, atentados legitimadas por doutrinas extremistas religiosas, há um desemprego estrutural e um empobrecimento de grandes partes da população em quase todas as nações, causado por uma economia injusta, e existem tantas outras formas de violência contra refugiados, imigrantes, contra crianças e mulheres. Parece que os poderes do mal estão a ganhar cada vez mais força.

E parece que a palavra da Igreja cristã, o anúncio da salvação, a proclamação do Reino de Deus, o convite para uma vida diferente, uma vida com justiça, em amor e esperança, parece que o anúncio da mudança da ordem imposta pelos senhores do mundo, não causa efeito nenhum.

Quando o mundo ainda se interessa pelo que acontece na Igreja, parece estar mais virado para os grandes espectáculos dela, como por exemplo a morte de um papa e a eleição de um novo, ou as Jornadas da Juventude Católica no ano passado na Colónia, Alemanha, que mereceram transmissão directa pela televisão. Mas a mensagem da Igreja parece não ter nada de interesse que justifique uma maior atenção.

Como o mundo não se interessa pela palavra das igrejas (ou se calhar a sua palavra não lhe diz nada), as igrejas estão a viver cada vez mais para dentro delas, as energias concentram-se mais na manutenção do status quo, nas tentativas de encontrar caminhos para a sua sobrevivência, discutem-se questões administrativas e financeiras… e fica-se por aí.

Muitas igrejas na Europa, continente em que as igrejas em geral estão em declínio, estão a reflectir sobre elas mesmas, tentam ganhar um perfil mais moderno, elaboram estratégias de evangelização. Também nós, Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal, também a Igreja Evangélica Alemã em Portugal, já fizemos várias tentativas de reflexão sobre a Evangelização em Portugal. Pois sabemos que o mundo, que as pessoas precisam de uma reposta sobre como enfrentarem os problemas que as afectam.

Mas parece que nada resulta, parece que estamos como que bloqueados, parece que também a palavra por nós pronunciada não causa efeito na sociedade.

O que está a acontecer? Qual poderá ser a razão de tudo isso?

Talvez a palavra do Evangelho de hoje possa dar-nos uma resposta: “Jesus e os discípulos foram depois para Cafarnaum. No sábado, Jesus entrou na sinagoga dos judeus e começou a ensinar. Os que o ouviam ficaram muito admirados com o seu ensinamento, porque falava como quem tem autoridade e não como os doutores da lei. Nisto, apareceu na sinagoga um homem possuído dum espírito mau, o qual, aos gritos, disse a Jesus: «Que é que tu queres de nós, Jesus de Nazaré? Vieste aqui para dar cabo de nós? Eu bem sei que tu és o Santo que Deus mandou!» Jesus repreendeu-o: «Cala-te e sai desse homem.» O espírito mau sacudiu fortemente o homem, deu um grande grito e saiu dele. Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros: «Que será isto?» Outros diziam: «Isto é ensinamento novo, mas apresentado com autoridade! Pois ele até dá ordens aos espíritos maus, e eles obedecem-lhe!» E a fama de Jesus espalhou-se rapidamente por toda a Galileia.”

O que é que acontece aqui? Jesus entra na sinagoga em Cafarnaum e é convidado a interpretar as Escrituras, a fazer uma pregação. E fá-lo de tal maneira que os ouvintes ficam admirados: fala “como quem tem autoridade” e “não como os doutores da lei”, como os estudiosos, os profissionais da religião.

O texto aqui não nos diz o que Jesus falou. Mas estamos dentro do contexto do primeiro anúncio da Boa Nova, uns versículos antes: “Chegou a hora! O Reino de Deus está próximo.” (versículo 15) Ou, como Jesus disse mais tarde: “Na verdade, o Reino de Deus já está no meio de vocês.” (Lucas 17, 21) Portanto, continua Jesus no Evangelho de Marcos, “arrependam-se dos pecados”, ou seja: convertam-se, mudem de vida e creiam na Boa Nova, acreditem que Deus tem um projecto de salvação, um projecto de plenitude de vida, um projecto de felicidade para todos vocês, todos nós.

Chegou a salvação. Chegou a libertação de tudo o que nos prende ao antigo, libertação de tudo aquilo que impossibilita a vida nova em Deus. E estando nós libertados, a nossa vida muda-se. É um convite que nos abre uma nova dimensão de vida que ultrapassa de longe tudo o que conhecemos até agora. A esta nova dimensão de vida, a esta maneira diferente de viver a vida, Jesus chamou “Reino de Deus”.

Reino de Deus é onde reina Deus, onde reina a sua opinião sobre nós: vocês não são perfeitos, mas vocês são os meus amados, vocês são os meus escolhidos para viverem uma vida plenamente satisfatória.

Reino de Deus é onde Deus, pelo seu amor incondicional, cria novas relações: Uma nova relação dele comigo. Uma nova relação minha comigo próprio, aceitando-me assim como sou, fraco e forte, feio e bonito, às vezes mais e às vezes menos construtivo, às vezes mais e às vezes menos perfeito. E uma nova relação minha com o outro, aceitando-o assim como é, fraco e forte, feio e bonito, às vezes mais e às vezes menos construtivo, às vezes mais e às vezes menos perfeito.

É para esta nova dimensão da vida, para novas relações, satisfatórias e enriquecedoras, não mais asfixiantes – Deus comigo, eu comigo, eu com o outro -, é assim para a plenitude da vida que Deus nos convida.

E estas novas relações levam à uma mudança de vida: agora podemos mudar de vida, podemos desaprender as coisas que não têm nada a ver com Deus: a marginalização, a exclusão dos que são diferentes, o olhar negativo para os que não são como nós, que não correspondem à nossa expectativa, o criticar, o quase nunca ver o positivo que também existe, o pensar no poder, o cortar das iniciativas dos outros. Podemos mudar de vida, podemos ter vida nova, porque a hora chegou! O Reino de Deus está no meio de nós.

Assim foi, assim é a pregação de Jesus de Nazaré. E os ouvintes reconhecem neste anúncio do Reino de Deus, reconhecem nele autoridade, ao contrário do que acham dos exegetas habituais e dos seus discursos. Reconhecem nele autoridade, porque sente que aqui está a falar alguém com o coração cheio, a falar da sua experiência de vida, com o coração de um Filho agradecido ao Pai que ama a todos, sem excepção. Que não impõe regras para alguém ser amado, que aceita incondicionalmente, que chama, que tem um projecto de vida em plenitude para todos.

E estas palavras não são só palavras bonitas que tocam o coração. São palavras traduzidas em acções, são assim palavras transformadoras. É um projecto de vida em plenitude também para o homem que de repente entra no meio da celebração, possuído dum espírito mau.

E o espírito mau, representante das forças do mal, da morte e do pecado, que é a diminuição da vida, este espírito nota logo a ameaça que Jesus de Nazaré, o profeta, o Santo de Deus, o Cristo, significa para ele, ameaça para o seu reino, seu domínio sobre os seres humanos: “Que é que tu queres de nós? Vieste aqui para dar cabo de nós?”

É a restrição de vida de uma pessoa que se manifesta aqui, é o domínio da morte, de tudo que impossibilita a vida em plenitude. Mas a palavra é: chegou a hora da salvação e da libertação, o Reino está no meio de vocês. E a palavra traduzida em acção é que Jesus expulsa o espírito mau, abrindo assim novos caminhos de vida. Jesus ajuda ao homem a voltar para a esfera de Deus, fonte de vida, ajuda sem condições, sem pedir antes uma profissão de fé, sem pedir que antes mude de vida. Jesus simplesmente age perante o estado miserável em que o outro está, e, pelo seu amor, ajuda-o a encontrar vida nova.

Existe assim uma congruência entre as palavras do anúncio do Reino de Deus e a sua realização por acções. Jesus é autêntico, pois a palavra corresponde à acção, a acção corresponde à palavra. Não vive com uma fachada, a pregação e a vida não ficam separadas, mas convergem, é ele, assim como ele é: Vive e ensina o Reino de Deus, por palavras e acções, é congruente. É por isso que os ouvintes reconhecem a sua autoridade, ao contrário dos doutores da lei.

E talvez ao contrário de nós? Deve haver alguma razão porque as nossas igrejas na Europa estão a ficar cada vez mais com menos expressão na sociedade, com cada vez menos autoridade reconhecida. De quem será a culpa, se podemos falar em culpa.

A culpa não me parece ser do mundo em que vivemos, não é da secularização ou de outros fenómenos da modernidade ou pós-modernidade. Pois é exactamente neste mundo, assim como ele é, que somos chamados a testemunhar o amor de Deus, é este mundo, assim como ele é, o destinatário da Boa Nova.

A culpa também não me parece ser de Deus, embora ninguém possa excluir a possibilidade de Deus se ter retirado da sua Igreja na Europa, de estar ausente por um tempo. Mas como não podemos ter certeza disso, temos que ver a última hipótese que resta: a culpa é nossa. O que não está a correr bem no nosso meio, em que ponto estamos errados? Por que é o nosso ensino, por que é que a nossa mensagem de Igreja é muitas vezes como a dos doutores da lei, sem autoridade, ou seja, sem força transformadora?

Será que a nossa mensagem de Igreja (e não estou a falar somente das pregações dominicais dos pastores, mas de toda a palavra e acção de cada membro da Igreja, de cada estrutura da Igreja), será que a nossa mensagem é a do Reino de Deus, do amor incondicional de Deus, do perdão, da misericórdia, do convite para uma vida nova, relações novas, satisfatórias para todos?

Ou não será muitas vezes a nossa mensagem uma que enfatiza o medo, o pecado, as forças da morte, o inferno, o castigo de Deus? Mensagem que fala da salvação, isso sim, mas que impõe condições aos seres humanos? Tipo: tens que ser assim e assim para seres aceite, tens que fazer isso e aquilo para seres amado? Que restringe o acesso à Igreja ou aos seus cargos, impondo condições, de uma suposta pureza sexual, por exemplo. Ao contrário do que Jesus ensinava e fazia.

Será a nossa mensagem, portanto, a do Reino de Deus, como Jesus de Nazaré o pregava e vivia, ou a nossa proclamação do Reino de Deus misturado com o nosso reino de regras e normas humanas? Mais ainda: serão a nossa mensagem e a nossa vivência do Reino de Deus congruentes? Ou será a nossa vivência concreta uma mera repetição, uma cópia das estruturas do mundo?

Ou seja: não acontece também no nosso meio que acabamos o culto e logo depois comentamos a maneira como o outro ora, a sua vida moral, o que faz ou não devia fazer, deixando, muitas vezes, partes da verdade fora ou até inventando uma verdade nova? Não acontece também no nosso meio que celebramos um culto antes do nosso Sínodo, fazemos uma oração antes de iniciarmos uma reunião da Comissão Executiva ou do Conselho da Comunidade e logo depois falamos e agimos, repetindo as normas do mundo: atitudes autoritárias e secretismos, intrigas e más-línguas, desconfianças relativamente a tudo e todos, lutas por pequenas parcelas de um suposto poder e tantas outras coisas que nos arrastam para bem longe da realidade do Reino de Deus?

Não nos enganemos: quando há uma discrepância entre o que Jesus proclama como Reino de Deus e a nossa mensagem, quando há uma discrepância entre as nossas palavras e as nossas acções, deixamos de ser congruentes. Assim pronunciamos, talvez, palavras bonitas, mas serão palavras ocas, palavras sem poder de transformação. Podemos até achar que ninguém vai notar a nossa incongruência, a nossa falta de autenticidade, porque fica tudo num círculo restrito, no círculo fechado dentro de certos grupos da igreja ou da Igreja em si, mas não é bem assim: os outros de fora notam na nossa maneira de ser, nossa maneira de estarmos com eles que alguma coisa não está certa.

Eu tenho a impressão que isto infelizmente acontece muitas vezes na nossa vida e na vida da Igreja: somos incongruentes, pouco autênticos, há uma discrepância entre a palavra e a acção. E é assim que ficamos sem autoridade. Que perdemos credibilidade. Que deixamos passar mais uma oportunidade de proclamar a Boa Nova do Reino de Deus. A culpa é nossa.

Mas há uma esperança, há uma solução para nós: Jesus Cristo continua a estar presente no nosso meio, Jesus Cristo continua a agir. Continua a anunciar o Reino de Deus, continua a combater as forças da morte, presentes também no nosso meio, continua a expulsar os espíritos maus presentes também na nossa vida. Estes pequenos espíritos do autoritarismo, da intriga, desconfiança, rancor, da luta pelo poder e os tantos outros.

Acredito no milagre que pela graça de Deus poderá acontecer novamente, também na vida de cada um de nós e na vida da Igreja: que, quando os reconhecermos como tais, quando assumirmos a sua existência, estes espíritos maus, que causam a falta de autenticidade, a falta de congruência, serão expulsos por Jesus Cristo; que Jesus assim nos vai abrir novos caminhos de vida nova. Vida nova para cada uma e um de nós, vida nova para a Igreja, e assim vida nova para o mundo.

A libertação do mundo será então uma questão da nossa libertação. Ou com as palavras de Ruben Alves, pastor presbiteriano brasileiro: “Todo o universo criado espera, com ardente expectativa… que se retire o véu que esconde os filhos de Deus… Sim, nós também esperamos, no fundo do peito, o momento em que Deus fará a magia de nos transformar em seus filhos. E aí, então, o nosso corpo estará livre. Liberdade do corpo: Salvação!” (paráfrase de Romanos 8, 18-25). Libertação prometida, libertação já realizada em Jesus Cristo, em favor de todos nós. Ámen.

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