O que é o evangelismo?

Autor: Timóteo Carriker
A palavra “evangelho” passa para português do termo latino, evangeliu, que, por sua vez, vem do palavra grega, euangélion, que significa “boa nova”. Ao acrescentar o sufixo, -ismo (de origem grega) ou -ação (de origem latina) surgem as palavras evangelismo e evangelização que traduzem igualmente a palavra grega, euangelízo (euvaggeli,zw). Portanto, apesar de algumas tentativas de distinguir entre estes dois termos,[1] não há diferença essencial pois têm a mesma origem. Ambos efetivamente se referem ao anúncio do evangelho, isto é, das boas novas que Deus ressuscitou Jesus de entre os mortos.

O evangelismo ou a evangelização, no cerne, envolve o anúncio da intervenção de Deus na história humana, especificamente a ressurreição de Jesus de Nazaré duma morte por crucificação, uma pena que lhe foi atribuída por motivos políticos e religiosos. Ao ressuscitar Jesus e entre os mortos, Deus o vindicou, efetivamente estabelecendo não só a sua inocência, mas também a sua posição como Filho de Deus e realizador das promessas de Deus nas Escrituras para os judeus e para todas as etnias do mundo (Romanos 1.1-6). Portanto, o evangelismo possui essencialmente um caráter narrativo, promissório e histórico.

Como anúncio é uma narração. É um relato feito por testemunhas e assim é uma atividade verbal e pessoal. Por isso no Novo Testamento a atividade evangelística que mais se sobressai é o testemunho (Atos 5.32; 1 Coríntios 15.5-11).

Entretanto, por envolver o testemunho o evangelismo não é meramente subjetivo, relativo à experiência de cada um. Baseia-se na realização histórica de promessas específicas feitas no Antigo Testamento a respeito dum novo período na história humana demarcada pela vinda do Messias. Estas promessas também se destacam no evangelismo (Atos 2.25-32; 3.18, 24; 1 Coríntios 15.3-4).

Então, o evangelismo é um anúncio, sim, e é pessoal no sentido de ser transmitido por pessoas transformadas pelos eventos narrados na mensagem proclamada. Mas, é também histórico. Por mais pessoal que seja, a mensagem possui um conteúdo essencial, sem o qual a mensagem não seria mais evangelística. E este conteúdo se refere à crucificação e a morte duma pessoa que viveu e morreu de fato, e igualmente de fato foi ressurreto por Deus (Atos 2.23; 5.30; 10.39; 13.29; Deuteronômio 21.22-23; Gálatas 3.10-13; 1 Pedro 2.24). O caráter histórico e verificado destes eventos completam a nossa definição das três características necessárias do evangelismo: é um anúncio de promessas divinas realizadas na morte e na ressurreição de Jesus de Nazaré, agora proclamado Jesus Cristo.

Além destas características essenciais do evangelismo, pode-se acrescentar um pré-requisito necessário e duas conseqüências inevitáveis do evangelismo, ou do evangelho. O prerrequisito é a exigência do arrependimento e da fé (Atos 2.38; 3.19; 10.43; e 13.38-39). É necessária a disposição e a decisão de abandonar a velha maneira egoística de viver e igualmente deve-se pôr a confiança e a fé em Jesus, o Deus que salva, o nosso Senhor. Tal mudança de rumo demonstrado incialmente pelo batismo, que nas palavras de Paulo, ilustra a morte da vida anterior e o nascimento duma nova vida em Cristo (Romanos 6.4). Assim Deus estabelece um pacto pessoalmente com o convertido. Mas “pacto pessoal” não deve ser entendido dum modo individual. A selo deste pacto que o batismo exterioriza envolve, como na aliança do Antigo Testamento exteriorizada pela circumcisão (Colossenses 3.11-12), o convertido e “toda a sua casa”. É conseqüência da fé daquele que crê, mas se alarga para abranger a sua família toda (Atos 16.15, 33; 18.8), não como salvação mecânica, automática, e isenta de fé pessoal por parte do resto da família, mas como promessa de cercar aquela família com as bênçãos de que tal fé pessoal que propicia um ambiente favorecido para cada um assumir seu compromisso com Deus no momento oportuno.

As conseqüências inevitáveis do evangelismo são o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santo. Não é apenas o que Cristo realizou uma vez no passado. Mas ainda hoje, quando alguém é atingido pelo evangelho, seus pecados são lançados por Deus no fundo do mar, esquecidos e enterrados por Ele, e ainda recebe o precioso presente duma renovação completa pela entrada do Espírito Santo na sua vida (Atos 2.38). Maravilhoso Deus!

Estes são os contornos do evangelismo, sua definição essencial, seu pré-requisito necessário e suas conseqüências garantidas. Trata-se principalmente duma mensagem sobre algo que Deus realizou, não algo que nós fazemos ou decidimos. Por isso, em última análise não se pode avaliar o evangelismo nem em termos de resultados e nem em termos de métodos (Stott, 1982, pp. 39-40). Nem sempre sabemos dos resultados. Mesmo assim ocorre evangelismo onde o evangelho é anunciado (Atos 8.4, 25, 40). E nem sempre as boas notícias são bem recebidas. Mas não é nem por isso que não houve evangelismo. O sentido bíblico de “evangelizar” não é “ganhar almas” mas simplesmente anunciar as boas novas, mas desejando resultados positivos.

Também não é o método que determina se o evangelismo ocorreu. O anúncio que constitui o evangelismo pode ser através duma pregação, duma dramatização, da imprensa, da mídia, ou simplesmente duma conversa informal da familia ao redor duma mesa.

Assim entendemos o evangelismo. Mas não terminamos as observações com a definição do termo. Ainda é necessário relacionar e distinguir o “evangelismo” de outro termo, “missão”, pois alguns trocam livremente os dois termos enquanto outros lhes atribuem conotações diferentes.[2]

Uma definição de “missão” ou de “missões” é bem mais complicada que a definição do evangelismo. Isto se deve à falta dum termo bíblico do qual a palavra em português explicitamente dependa. Pensa-se nos dois verbos gregos que conotam a idéia de enviar: pémpo (pe,mpw) e apostéllo (avposte,llw). Estes dois verbos, e às vezes outros, são frequentemente traduzidos em latim com o verbo mittere e é desta palavra que derivamos em português “missão” ou “missões”.

Então, a definição de missões ou de missão não surge dum ministério ou duma dimensão de ministério explicitamente identificado no Antigo ou no Novo Testamento. Por isso e porque há referências bíblicas ao evangelismo, é preferível pensar em missão como teologicamente sinônimo ao evangelismo. Uma visão bíblica amplia o evangelismo para incluir as áreas de ministério frequentemente associadas somente a idéia de missão. Isto é diferente de restringir a idéia de missão à dimensão do evangelismo que é a proclamação verbal, cujo alvo é a conversão pessoal. Enquanto a proclamação verbal é central à uma definição bíblica do evangelismo, como propomos acima, não é a circumferência ou o limite do evangelismo.

Dezesseis das dezoito características do evangelismo, elaboradas por um dos maiores missiólgos deste século, David Bosch, ajudam a ilustrar a necessidade de ampliar nossa noção do evangelismo (Bosch, 1991, pp. 412-420)[3]:

Primeiro, “o evangelismo pode ser visto como uma ‘dimensão essencial da toda a atividade da igreja’” (p. 412). Efetivamente esta perspectiva exige a rejeição do conceito de evangelismo no Pacto de Lausanne, como um de dois segmentos de missão, o outro sendo a ação social. Este ponto de vista que Bosch nos apresenta também exige a rejeição da distinção que Bosch faz entre o evangelismo e a missão.

Segundo, “o evangelismo envolve o testemunho daquilo que Deus tem feito, está fazendo, e fará” (pp. 412-13). Encontramos nesta afirmação a influência da teologia reformada na missiologia de Bosch. “O evangelismo…não é uma chamada para realizar algo, como se o reino de Deus se inaugurasse pela nossa resposta ou frustrasse pela ausência de tal resposta” (p. 412). Aliás, nem se deve entender o evangelismo ou missões como o alvo último da igreja. Um dia a missão da igreja se acabará, mas não a adoração a Deus e o louvor da Sua glória. Missões ou evangelismo são teologicamente penúltimos, mesmo que sejam cruciais a um fim maior. Desenvolveremos mais este tema no capítulo entitulado, “o evangelismo, prioridade?”

Terceiro, “mesmo assim, o evangelismo tem por fim uma resposta” (p. 413). O apelo para o arrependimento e a conversão permanece básico ao evangelismo.

Quarto, “o evangelismo sempre é convite” comunicado com alegria, nunca coerção ou ameaças (p. 413).

Quinto, “aquele que evangeliza é uma testemunha, não juiz” (p. 413). Jamais somos capazes de avaliar perfeitamente quem aceita e quem rejeita o nosso testemunho, muito menos julgar quem, ao rejeitar nosso testemunho, está rejeitando Cristo.

Sexto, “embora devamos ser modestos a respeito do carácter e eficácia do nosso testemunho, o evangelismo permanece um ministério indispensável” (p. 413-14). Não é um ministério periférico, nem tampouco opcional.

Sétimo, “o evangelismo somente é possível quando a comunidade que evangeliza — a igreja — é uma manifestação radiante da fé cristã e exibe um estilo de vida atraente” (p. 414). Ser e fazer no evangelismo são inseparáveis. O testemunho de vida da igreja possui significância evangelística, ou positiva ou negativa. Tal “personalidade” evangelística, e não somente atividade evangelística, está ligada firmemente a uma da “marcas” essenciais da igreja: a sua apostolicidade.

Oitavo, “o evangelismo oferece às pessoas a salvação como um dom presente e junto com isso, a segurança de bênção eterna”. Entretanto, o gozo pessoal da salvação nunca foi um tema bíblico central….É praticamente incidental. Somos chamados para sermos cristãos não simplesmente para receber a vida, mas para dá-la” (p. 414).

Nono, “o evangelismo não é proselitismo” (p. 414-15). A tentação da construção de impérios denominacionais tem que ser evitado no evangelismo. Desenvolveremos mais este tema no capítulo entitulado, “evangelismo ou proselitismo?”

Décimo, “o evangelismo não é sinônimo da extensão da igreja” (p. 415). Durante alguns anos, eu estudei princípios e estratégias para o crescimento da igreja no Fuller Theological Seminary e apreciei o seu valor diagnóstico e pragmático para a avaliação do desempenho do ministério de igrejas específicas. Ao mesmo tempo concordo com Bosch que “o enfoque do evangelismo deveria estar não na igreja, mas na introdução do reinado de Deus.”

Décimo-primeiro, “distinguir entre o evangelismo e o recrutamento de membros não é sugerir que não há ligação entre os dois” (pp. 415-16). O crescimento numérico é importante. Mais importante ainda é o crescimento encarnacional.

Décimo-segundo, “no evangelismo, ‘somente pessoas podem ser desafiadas, e somente pessoas podem responder’” (p. 416). Aqui, Bosch defende a dimensão pessoal do evangelismo. Mas uma distinção entre pessoal e individual teria sido útil. Enquanto o evangelismo desafia pessoas e entidades pessoais, tais pessoas são tratadas não apenas individualmente, mas corporativamente também, de acordo com suas diversas associações sociais e culturais. Creio que isto seja a perspectiva mais de Jesus e também dos profetas. Num capítulo posterior, entitulado “o evangelismo dentro do ministério integral da igreja”, tratarei mais este assunto.

Décimo-terceiro, “o evangelismo autêntico sempre é contextual” (p. 417). E por “contextual” Bosch se refere às estruturas macro-éticas duma dada sociedade humana. Traz-nos interrogações preocupantes: “…qual é o critério que decide que o racismo e a injustiça social são questões sociais enquanto a pornografia e o aborto são (questões) pessoais? Por que evita-se a política, declarando-a fora da competência do evangelista, a não ser quando favorece a posição dos privilegiados na sociedade? Por que pregadores, que parecem se interessar somente pelo destino ultramundano dos seus ouvintes, podem ser inteiramente mundanos no seu etos e seus métodos?”

Décimo-quarto, “o evangelismo não pode ser divorciado da pregação e da prática da justiça….Evangelismo é uma chamada ao serviço“ (p. 418).

Décimo-quinto, “o evangelismo não é um mecanismo para apressar o retorno de Cristo” (p. 418-20). Embora a preocupação de Bosch esteja com movimentos que conjuguem estratégias de evangelismo global com expectativas escatológicas, como o movimento no final do século XIX liderado por A. T. Pierson, A. B. Simpson, e H. G. Guinness, e centenas de outros movimentos semelhantes ao longo da história, sua observação é melhor entendida como um corolário necessário da sua segunda observação acima de que o evangelismo é uma atividade divina antes de ser uma atividade humana.

Finalmente Bosch observa que “o evangelismo não é somente proclamação verbal” embora possua uma dimensão verbal inescapável (p. 420). Não existe uma única maneira de testemunhar das boas novas sobre Cristo. Por isso nunca se pode divorciar a palavra da vivência.

Resumindo, Bosch define o evangelismo como “aquela dimensão e atividade da missão da igreja que, por palavra e ato e à luz de condições específicas e dum contexto específico, oferece a cada pessoa e a cada comunidade, em todo lugar, uma oportunidade válida de ser diretamente desafiado a uma reorientação radical das suas vidas, uma reorientação que envolve tais coisas como a libertação da escravidão ao mundo e aos seus poderes; abraçar Cristo como Salvador e Senhor; ser um membro vivo da sua comunidade, a igreja; se alistar ao Seu serviço de reconciliação, paz, e justiça na terra; e ser comprometido com o propósito de Deus de submeter tudo debaixo do governo de Cristo” (p. 420). É uma definição excelente. Apenas eu substituiria, em coerência com a posição que equivale evangelismo à missão, a palavra “missão” na primeira frase com a palavra “ministério”.

A associação íntima de missão com evangelismo decorre necessária e naturalmente duma perspectiva reformada da natureza missionária (ou evangelística) da igreja. Uma vez que os termos são firmemente unidos à característica essencial ou “marca” da apostolicidade da igreja, a distinção entre os dois desaparece.

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[1]Existem alguns que seguem basicamente a orientação do Dicionário Aurélio e entendem que o evangelismo se refere a um “sistema ou política, moral e religiosa, fundada no Evangelho”. Entendem como sinônimo ao Protestantismo. Apesar do sufixo, ‑ismo, possibilitar este significado, é longe do uso comum entre os evangélicos.
[2]No seu livro recente, Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros. Ensaio de missiologia (São Paulo: Paulus, 1995, pp. 102-104), Paulo Suess comenta a rejeição após o Vaticano II do conceito “missão” em favor do conceito de “evangelização”, mas conclui que o conceito “missão” pode e deve ser “reforjado” numa palavra de luta dentro da missiologia católica.
[3]As primeiras duas característas defendem a distinção entre o evangelismo e a missão, uma posição diferente da nossa. Bosch não chega a conclusão lógica das próximas dezesseis características: que em termos teológicos e bíblicos não se deve distinguir os termos. Provavelmente isto se deva a fatores históricos e psicológicos. O uso dos termos “missão” e “missões” tem um pedigree longo e já provoca lealdades teológicas bastante carregadas de emoção. Afinal, muitas vidas heróicas já se deram em nome da rubrica de “missões”. E também não é a origem duma palavra que determina seu sentido comum. É o uso corrente que o determina nas mentes dos falantes do termo. Já que este uso de “missão” e ”missões” tem uma trajetória longa e carregada de emoção e lealdades, não se deve descartá-lo. Eu mesmo uso o termo diariamente nas aulas do seminário e defendo a prática do ministério de proclamar e incarnar as boas novas nas diversas etnias e circunstâncias em que a igreja se encontra. Apenas observo que, se fosse só pela coerência bíblica e teológica, talvez muita confusão seria evitado se pensássemos em evangelismo e missões como a mesma tarefa da igreja no mundo, e se fizéssemos de modo abrangente, e não restritivo.
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