O labor teológico e a questão cultural

Autor: Prof. Regina de Cássia F. Sanches
INTRODUÇÃO

Outro dia em sala de aula, num curso preparatório de missionários, um aluno disse com toda a eloquência e até um pouco de revolta que deveríamos estar mais preocupados em “fazer uma teologia brasileira” , perguntei-lhe, então, o que era ser brasileiro e ele, como outros na sala, vieram com o velho discurso de que somos uma mistura de povos, afirmei-lhes que “mistura” não significa nada e nem define nada e enquanto eles não pensarem quem são, não poderão reivindicar algo que seja parecido com eles. Este aluno, no decorrer do curso, despejou uma série de fórmulas teológicas, fruto de sua formação em um seminário histórico- tradicional, como de muitos outros que já ouvi elas saem como entraram, sem passar por um processo de digestão e muito menos por algum tipo de metabolismo para tornar-se melhor assimilável.
Quero com esta experiência mostrar o dilema vivido por nossos alunos, pastores e todos aqueles que lidam com o pensar teológico no Brasil. Muitos sabem e querem o que precisamos, mas não sabem como fazê- lo.
Minha proposta com esta pesquisa é destacar um dos pontos que deve ser seriamente considerado nesta discussão sobre a elaboração teológica à partir de nossa realidade, a relação entre o fazer teológico e a questão cultural.
Não é minha intenção, neste trabalho, estudar sobre o problema da identidade cultural do brasileiro, no entanto, é outra questão que merece ser bem discutida para pensarmos no fazer teológico em nossa cultura. Precisamos não somente entender o que é cultura mas entender qual é nossa cultura, mesmo neste mundo globalizado que vivemos existem aspectos que nos identificam como povo e nos tornam particulares neste mundo. Afinal de contas, o que me torna brasileiro? Bom, essa resposta fica para uma outra pesquisa em qualquer outro tempo.
Nossa pesquisa envolverá, inicialmente, uma pequena análise da inserção do protestantismo no Brasil entendendo que o processo evangelístico que aqui se deu foi um fator determinante para o pensar teológico em nossas terras. Depois trabalharemos uma definição de teologia e em seguida de cultura para então relacionarmos ambas e analisarmos as implicações desse relacionamento.

Para introduzir nosso estudo quero transcrever abaixo uma afirmação memorável do Missiólogo René Padilha:

“A encarnação torna óbvia a aproximação de Deus à revelação de si mesmo e de seus propósitos: Deus não proclama sua mensagem aos gritos desde os céus; ele se faz presente como homem em meio aos homens. O clímax da revelação de Deus é Emanuel. E Emanuel é Jesus, um judeu do primeiro século! De maneira definitiva a encarnação mostra que a intenção de Deus é revelar-se a partir e dentro da situação humana. Em virtude da própria natureza do evangelho, somente conhecemos o evangelho como uma mensagem contextualizada na cultura”.1

Não é nossa proposta neste trabalho detalhar os aspectos históricos que influenciaram e até mesmo determinaram o pensamento teológico no Brasil, no entanto, temos que fazer um breve levantamento de alguns fatos relacionados ao assunto da inserção do pensamento teológico evangélico para justificar nossas argumentações.

1. O Protestantismo no Brasil e a Inserção do Pensamento Teológico

O Protestantismo europeu que começou a chegar ao Brasil no início do século XIX não demonstrou pretensão evangelística pois era de caráter imigratório, aliás até hoje, principalmente em algumas regiões do Sul do Brasil, a conversão ao protestantismo se dá mediante inclusão no estilo de vida europeu representado pelas colônias e as igrejas que existem para atender aos imigrantes. No entanto, o protestantismo norte- americano vindo ao Brasil à partir da primeira década do século XIX, na forma das diversas denominações protestantes, caracteriza-se por uma “missão” de conversão à fé protestante dos católicos brasileiros que, de certa forma, eram e são até hoje, por uma grande maioria, tidos como pagãos. Tal missão traz consigo como mensagem a questão da certeza da salvação, o anúncio da suficiência bíblica como livro inspirado e, conforme afirma Rubens Alves é o que caracteriza o protestantismo missionário norte- americano quando de sua chegada ao nosso país, “… a necessidade de arrependimento, de entrega a Cristo, de eficácia única e suficiente do seu sacrifício vicário, do imperativo do abandono da idolatria e dos santos, a exigência da responsabilidade pessoal e da vida de santificação” . Por outro lado, os líderes católicos, imbuídos por um sentimento de contra- reforma meio tardio se mostraram completamente intolerantes com a presença protestante no Brasil. É neste pano fundo que se desenvolve o pensamento teológico protestante prevalecente em nossas terras. Uma teologia que mais se define como uma apologia contra o catolicismo. Na realidade, ela não surge de uma hermenêutica despretenciosa das Escrituras, ou da experiência de fé do nosso povo e muito menos de uma adaptação cultural das tradições teológicas dos missionários que aqui chegaram. Estes, frutos de um “avivamento” que se dá em terras norte- americanas, de ética puritana, conceitos sociais capitalistas e de teologia tipicamente fundamentalista.

A teologia aqui desembarcada estava pronta e possuía um caráter combatente, de defesa de uma experiência de fé que se deu em outras terras no meio de outros povos. Embora, não podendo generalizar, é ainda assim que se dá a formação teológica em nosso meio.

Então, não somente a prática evangelística em nosso meio como o próprio pensamento teológico caracterizou-se por um extremo anti- catolicismo e deconstrução cultural, visto que as fórmulas teológicas e, consequentemente, liturgicas, devocionais e missionárias, por eles trazidas encontravam nas nossas expressões culturais marcadas pelas influências indígenas, africanas e católicas seus grandes opositores. O resultado de tal comportamento aliado a todo uma prática de reprodução teológica que, em sua origem, dava-se já alienada da vida do povo, temos uma teologia que não expressa as particularidades culturais e sociais do povo brasileiro. Então, nosso povo repete algumas fórmulas teológicas mas não as concebe. Mesmo dentro dos seminários vemos alunos repetindo ano após ano estas mesmas fórmulas um pouco mais elaboradas mas, na maioria das vezes, sem saber como tornar tudo isso utilizável no cotidiano da Igreja.

Penso que o problema não está nas formulas mas na forma de construção das mesmas e na roupagem que elas possuem e que “fórmulas teológicas” possuem seu lugar e em alguns casos são até necessárias desde que construídas ou ao menos revitalizadas à partir das experiências religiosas do povo a quem se dirige e com a roupagem cultural do mesmo.

A Missão Além usou como slogam em um material de divulgação a seguinte fala de um indígena: “Se Deus me ama porque Ele não fala a minha língua?” . Podemos repetir a mesma sábia pergunta da seguinte forma: Se Deus quer que o conheçamos porque a elaboração do seu conhecimento não pode ser construído, também, em nosso meio à partir de nossas experiências e em nossa linguagem cultural?

Devo concordar com Júlio Paulo Zabatieiro em sua fala na Consulta Anual da FTL – B, realizada no mês de Maio de 1998, sobre o pensamento teológico na América Latina que, em sua conclusão, ao relacionar algumas tarefas que possibilitariam a reflexão teológica em nosso continente citou em primeiro lugar: “A superação do fundamentalismo, possibilitando às membrezias das Igrejas Cristãs no continente a reflexão teológica contextualizada e criativa”.3 Ele, ao falar da hermenêutica bíblica praticada no fundamentalismo afirma que o doutrinismo, individualismo, espiritualismo e moralismo reduzem a leitura bíblica impedindo o “florescimento da reflexão teológica”. Não podemos pensar em fazer teologia enquanto não repensarmos o modelo que temos em mente. Devemos partir para um fazer teológico comprometido com uma prática hermenêutica que não desconsidere o todo da Bíblia, isto é, seu conteúdo revelacional e seus aspectos sociológicos, históricos, literários, etc.; com a história e todo o pensamento construído no decorrer da mesma; com as particularidades históricas, sociais e culturais de nosso povo e seus problemas que urgem respostas como com a própria modernidade e seus reflexos na sociedade e na Igreja.

2. Em busca de uma definição de teologia

Para estabelecer qualquer relação crítica entre o pensar teológico e a cultura, é necessário ao menos esboçar uma definição de Teologia o que é extremamente complicado devido ao conteúdo abrangente da mesma. Para tanto prefiro, antes de mais nada, expor as afirmações de alguns teólogos sobre o que possa ser Teologia:

Clodovis Boff traz a seguinte definição de teologia: “… é a exposição racional, ou seja, discursiva (quer sapiencial, quer científica) da fé revelada. Nesse sentido, a fé é em parte racional ou racionalizável, e em parte não. Mesmo assim, a razão teológica representa o ponto mais alto a que pode chegar a razão humana em geral”3. Em sua definição, que considero bem explicativa pois não descarta o uso da razão na exposição teológica mas, também, não reduz a teologia a um produto meramente racional mas, que está subordinado ao elemento fé que nem sempre se explica sistematicamente , Boff classifica, primariamente, a teologia como sapiencial, quando seu discurso é experiencial e místico; e como ciência, quando esta se apresenta em sua forma crítica, sistemática e auto- amplificativa. Ele, também, amplia o conceito de teologia quando afirma que toda pessoa que reflete sobre a própria fé, teologiza. Para Boff a fé não somente é a fonte, objeto mas o fim da teologia. Então, de certa forma, a teologia é o resultado da reflexão da fé, no entanto, essa teologia deve resultar em vida e em fé. Em sua definição Boff relaciona completamente a teologia à fé e às implicações dessa na vida do indivíduo ou da comunidade o que horizontaliza extremamente o fazer teológico mas, por outro lado, ressalta este aspecto que é decisivo para a teologia e, também, não descarta o conhecimento de Deus. No entanto, acreditamos que é importante termos a Soberania de Deus e a centralidade de Cristo como pontos de partida e chegada em nosso pensar teológico.

Riolando Azzi, de uma forma bem simples, define a teologia como “a reflexão da fé vivida pelo povo”4 . Ele relaciona o discurso teológico com a fé que é evidenciada pelo povo no decorrer de sua história, entendendo que ambos estão completamente ligados e aquele é resultado desta e vice- versa. Neste sentido ele assemelha-se a Boff pois condiciona o discurso teológico à fé da comunidade.

William Hordern, apresenta um conceito mais tradicional: “Teologia é tratado ou desenvolvimento bem ordenado do pensamento que se possa obter a respeito de Deus”5 . Nesta definição não há uma preocupação efetiva com a praticidade teológica nem mesmo com seu caráter experiencial, portanto, ela expressa somente um dos aspectos do que é teologia. No entanto, tal definição espelha o conceito tradicional de teologia.

Penso que todas essas definições acima são corretas e se completam, embora, sabemos que sempre que alguém procura definir um determinado conteúdo busca apresentar a idéia o mais completa possível do que ele pensa ser.

A Teologia possui também um caráter racional e, em seu aspecto dinâmico, tem como objeto básico a reflexão da fé, portanto, ela está intrinsecamente relacionada à cultura do povo ou do indivíduo da fé. A história de fé do povo israelita relatada no Antigo Testamento é um grande exemplo disto. A revelação de Deus se deu mediante experiência do povo judeu com Deus, que refletida e transmitida em forma de tradições eram revitalizadas e reelaboradas à luz das novas experiências. Mesmo na comunidade neo- testamentária o pensar teológico tinha como base para elaboração as tradições relatadas no Antigo testamento, os ensinos e a vida de Jesus e as experiências de fé das comunidades dentro de seus contextos sócio- culturais. Portanto, o pensar teológico que se dá alienado da vida e de suas relações com Deus, fruto somente de especulações filosóficas e lucubrações pessoais em gabinetes fechados, não cumpre seu propósito de reflexão e transmissão do conhecimento de Deus.

Mas, como já afirmamos anteriormente, ela tem como ponto de partida Deus e como conteúdo que perpassa todas as suas elaborações, Cristo, como Deus encarnado e revelado. Ainda que sejamos instrumentalizados pelas diversas ciências que participam do fazer teológico, não podemos nos esquecer que sua razão maior é Deus e sua relação com os seres humanos e a criação de uma forma geral.

Podemos, então, definir de forma simples a teologia como a reflexão racional, ordenada e contextualizada da revelação de Deus ao mundo e da experiência de fé do povo histórico de Deus com Deus.

Também não podemos deixar de mencionar que o objetivo primário da reflexão teológica é soteriológico, daí sua grande responsabilidade de se tornar comunicável.

3. Em busca de uma definição de cultura

A missiologia, instrumentalizada pelas ciências sociais, tem fomentado nos últimos tempos uma valiosa discussão sobre a relação entre a missão da Igreja e a questão cultural. A relevância dessa discussão têm sido não somente para os círculos missionários transculturais mas, para toda relação da Igreja com os povos no mundo. Tal debate não surge aleatoriamente mas, a partir da experiência de deconstrução cultural vivida por muitos povos no mundo quando de seus processos de evangelização. Desde então, há uma busca nos centros de treinamento missionário, nas agências enviadoras, seminários, círculos acadêmicos e igrejas sobre o que é cultura e como se relacionar com a mesma com um mínimo de interferência.

Em Gênesis 1. 28 temos o texto que os missiólogos em geral chamam de“ Mandato Cultural” , entendendo que entre vários outros aspectos o texto envolve um mandato de Deus para que o ser humano desenvolva sua cultura que se dará mediante um relacionamento harmônico com a natureza e a organização de sistemas de vida. Deus ordena que os seres humanos povoem a terra, habitem nela e se relacionem com ela e os demais seres criados. E, podemos entender este povoar, habitar e se relacionar com o desenvolvimento da cultura.

Paul G. Hiebert traz uma definição básica, no entanto, bem esclarecedora de cultura: “Cultura é um sistema mais ou menos integrado de idéias, sentimentos e valores e seus padrões associados de comportamento e produção compartilhados por um grupo de pessoas que organiza e regula o que ele pensa, sente e faz”6 . Ele apresenta este conceito em contraposição ao conceito tradicional onde cultura é entendida como intelectualismo ou boas maneiras.

O autor citado associa cultura a particularidades comuns que identificam um determinado grupo. Sendo assim, a cultura se torna um dos aspectos mais importantes desse grupo. E, mesmo quando a evangelização visa o indivíduo, não se pode esquecer que ele pertence a um grupo que é caracterizado por uma determinada cultura, consequentemente ele, individualmente, também expressa uma cultura. Mesmo no momento de radicalização da modernidade que vivemos hoje, a pertença a um grupo e a uma cultura ainda é, de certa forma, uma maneira de estarmos seguros e de termos uma identidade tribal. Sendo assim, qualquer discurso ou idéia deve levar em consideração a cultura caso queira ser verdadeiramente comunicável.

A cultura de um povo é extremamente dinâmica, assim afirma o Pe. Paulo de Coppi “Cultura não é um valor estático, mas dinâmico, em contínua transformação, que advém da experiência, da convivência, da busca de causas e efeitos, da confrontação entre valores adquiridos e novas interpretações, do encontro e do choque entre ela e as culturas de outros povos “7 .

Sabemos que toda cultura sofre transformações, de certa forma naturais, promovidas pelas novas gerações, problemas sócio- econômicos, alterações climáticas, etc.. Qualquer discurso que pretenda ser comunicável em uma determinada cultura deve respeitar e acompanhar sua dinamicidade.

Cultura, então, é um conjunto de valores, tradições e hábitos que um povo constrói para si no decorrer de sua história e que o identifica. No entanto, hoje vem sofrendo influências das mais diversas devido à chamada globalização. A teologia deveria ajudar na busca de respostas para esses problemas que estão sendo vividos por diversos povos no mundo e, de forma alguma, tornar-se mais um deles.

O caminho primário da teologia no meio de um povo é rumo a um diálogo com a cultura desse povo para uma verdadeira reflexão da fé por este povo e para que sua experiência de fé não se dê alienada da história da salvação identificada na vida de outros povos contemporâneos e antecedentes dele. E, por mais que este povo permita e até discurse uma teologia com roupagem cultural que não é a sua, em sua experiência de fé no cotidiano, dentro de sua cultura, ele poderá não permitir a presença das fórmulas teológicas por ele discursada resultando numa dicotomia entre teologia e prática da fé cristã. Teremos, então, numa comparação bem simples uma teologia sem pés, mãos e coração e uma prática cristã sem cabeça.

4. A relação entre o fazer teológico e a cultura

A teologia não pode ser considerada meramente obra de valor estético para alimentar a vaidade intelectual de seus mentores. Ela tem que comunicar a Deus. Seu aspecto revelacional só é dinamizado quando comunicada e compreendida e para isso é necessário que se dê na língua daqueles a quem ela quer falar.

Richard Sturz, ao tratar sobre o assunto afirma que “Cada contexto levanta questões peculiares. Portanto, é necessário que o teólogo, ao trabalhar sobre a revelação da verdade em Jesus Cristo, tenha em mente as perguntas e a problemática de seu ouvinte, para que não venha a responder perguntas que não estão fazendo, e deixar de responder às que são cruciais para seus ouvintes”8

Clodovis Boff, em sua lista de pecados que podem ser cometidos pelo teólogo afirma que um deles é “quando, sem importar-se com o destinatário, usa uma linguagem abstrusa, que não comunica, inutilmente preciosa”9. No entanto, o mesmo autor adverte que tão errado quanto a alienação é o pragmatismo e o utilitarismo teológico.

Não podemos confundir inculturação do discurso teológico com redução de seu conteúdo. Há um conteúdo a ser comunicado e elaborado dentro de uma realidade temporal e espacial, conteúdo este que, em seu processo de elaboração deve considerar as experiências presentes e contextuais. Isto é, o discurso teológico não é um museu que visitamos periodicamente para conhecermos o passado e saber como outros viviam mas, a reflexão teológica à partir das experiências da Igreja que nos antecedeu deve ser revitalizada e enculturada à partir das experiências da Igreja presente onde ela está inserida, como já afirmamos, no tempo e no espaço.

Paul Tillich faz a seguinte afirmação sobre a Teologia Sistemática “Um sistema teológico deve satisfazer suas necessidades básicas: a afirmação da verdade cristã e a interpretação desta verdade para cada nova geração”10. Temos que considerar as particularidades de cada geração, a mudança de mentalidade e comportamento, portanto, a diferenciação da leitura das realidades. No entanto, faz-se necessário considerar, também, a importância da interpretação da verdade para as diversas realidades culturais que apresentam particularidades não somente nos costumes de vida mais na cosmovisão, compreensão dos tempos e da realidade presente. O discurso teológico deve ser comunicado de forma a atender as situações temporais e as espaciais em seus aspectos mais relevantes.

A relevância da cultura é destacada por Walter Seibert ao trabalhar a relação entre a Teologia Sistemática e o contexto. Ao argumentar que a revelação de Deus se deu em meio à cultura humana ele diz: “É preciso confrontar a fé cristã com a nossa cultura… convivendo em meio a este desafio da cultura, certamente nossos ouvidos estarão aptos para ouvir as perguntas do contexto e da situação, e teremos melhores condições de responder a estes desafios”11 . Mas, o autor tem razão ao afirmar que faz-se necessário uma inserção da Igreja na cultura e realidades sociais. Não é possível comunicar verdadeiramente a Deus vivendo como uma comunidade à parte com um sistema cultural particular e, consequentemente, uma linguagem que somente o grupo compreende. Acredito que, mais ainda, o pensador teológico deve estar atento não somente quanto a uma inserção na comunidade em que vive mas, principalmente, na vida da Igreja, porque este tem a tendência de distanciar-se da realidade até mesmo da igreja para à qual ele pretende teologizar, para que o pensar teológico se dê no contexto da Igreja e da sociedade de uma forma geral.

Há uma tendência por parte de muitos de sacralizar a cultura do contexto dos relatos bíblicos e tentar transportá-la para o nosso contexto em nosso tempo histórico e espaço geográfico, entendendo nossa realidade cultural como completamente profana. Tamanha ilusão tem propiciado uma interpretação desses relatos de forma tendenciosa e que diz muitas coisas mas, dificilmente, o que o texto realmente quer falar.

Outros partem para o extremo de sacralizar a interpretação bíblica e as interpretações das experiências de fé da comunidade cristã dos missionários responsáveis pela evangelização de um determinado povo, sacralizando suas elaborações teológicas, liturgicas e toda reflexão de suas experiências com Deus. Tornam- nas normativas para todas as realidades culturais. De fato, podemos afirmar que esse conjunto de situações que surge da relação de um povo com Deus e Sua Palavra são santos, num sentido mais amplo, no entanto, santos para aquele povo onde os fatos se deram, historicamente para outros , mas nunca normativo para todos, pois todos os povos, todas as comunidades cristãs tem o direito de ter suas experiências de fé e refletir sobre elas considerando sempre as experiências de outros povos no decorrer da história e da revelação bíblica e à partir delas construir ou elaborar seu conhecimento de Deus e as implicações desse para sua vida.

CONCLUSÃO

Considerar a importância da cultura para um povo é respeitá-lo naquilo que ele é e que o diferencia de outros povos, que torna-o particular e único. Deus considerou a cultura do povo judeu e dos povos à sua volta, visto que os relatos antigotestamentários não se preocupam em esconder as praticas culturais que Israel adotou e adaptou de outros povos de sua época, até mesmo para servir de roupagem para a revelação divina. Isto tornou esta revelação comunicável e possibilitou sua compreensão.

No Novo Testamento este fato se evidencia tanto na encarnação, vida e ensinamentos de Jesus como na vida da própria comunidade cristã primitiva. A reflexão sobre Deus e sua vontade para a humanidade, de uma forma geral, não se dá alienada das formas culturais. Em Jesus, a revelação veste muito mais que roupas humanas, veste capa (talith) e túnica (chalouk) com cintos; se alimenta de pão de cevada partido, cereais e vegetais diversos com ervas aromáticas e temperos considerados por nós, exóticos; se comunica em hebraico e aramaico e se expõe em forma de discursos, parábolas, caminhadas com e entre os seus daquela época em conversas informais e amigáveis; através dos milagres e das respostas aos problemas da comunidade que teve o privilégio de presenciá-la.

É certo que toda cultura humana carece de restauração e isto faz parte da Missão da Igreja. Mas, somente a reflexão teológica que em seu processo de fazimento considera a questão cultural pode participar e promover esta restauração.

O fazer teológico, mais restrito aos ambientes da academia, não atende às necessidades da Igreja local, nem as mais antigas e, principalmente, as emergentes. O pensar teológico que se dá nas igrejas, principalmente as chamadas carismáticas e pentecostais, é carente de elaboração, com um pano de fundo fundamentalista e um tanto sincrético, num discurso caracterizado pela indefinição. Temos tarefas trabalhosas pela frente, entre elas:

1. Promover a reflexão teológica na e/ou aliada à Igreja local considerando as suas experiências como significativas no fazer teológico.

2. Entender-nos e agirmos como participantes ativos da Igreja local e participarmos de suas experiências de fé e refletirmos sobre estas.

3. Considerar essa igreja local inserida num contexto maior, que deve ser visto como relevante no entendimento das experiências dessa comunidade como na sua forma de ser e pensar.

4. Considerar os aspectos culturais desse contexto maior, seja de uma pequena vila ou do ambiente urbano das grandes cidades, como participantes ativos do processo de fazimento teológico.

5. Aceitar que o pensador de teologia, seja individual ou comunitário, faz parte de um contexto cultural e não precisa despir-se dela (o que não conseguirá fazer) para entrar em seu santuário teológico.

6. Entender que não estamos buscando uma nova roupagem cultural para a teologia que vigora em nosso meio. Não adianta escrever as velhas fórmulas teológicas com cores verde e amarela pois isto seria um travestimento, o que é uma farsa. Mas, partirmos para uma elaboração autêntica para nós e que não agrida nossas particularidades culturais.

7. Cuidar para, nesse processo, não tornar o fazer teológico utilitarista e superficial. Não descentralizar Cristo e não desconsiderar o aspecto primeiro que é a revelação de Deus.

A ausência de um pensar teológico a partir de nossa realidade e que traga respostas para nossos problemas, tem ajudado a abrir espaços para o que Zabatieiro chama de “teologias inadequadas”. Temos que entender que o movimento carismático e pentecostal no Brasil já é maioria entre os evangélicos e há nesse meio um desprezo pelo pensar teológico sistematizado como por todos aqueles que o adotam. Não adianta ficarmos em nossas academias, também desprezando o que fazem e pensam nesses meios e participando ativamente dessa guerra fria. Se nossa vocação é de Deus nosso serviço é para a Igreja e para o mundo, não em posição de julgadores mas muito mais de facilitadores da reflexão teológica seja em âmbitos denominacionais mais tradicionais (historicamente falando), carismáticos, pentecostais, católicos como na sociedade de uma forma geral.

BIBLIOGRAFIA

BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. 2 ed., Petrópolis: Vozes, 1998.

COPPI, Paulo de. Por Uma Igreja toda Missionária. São Paulo: Paulus, 1994.

DANIEL- ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. 2 ed., São Paulo: Vida Nova, 1986.

EGGERT, Edla. Interdisciplinaridade entre Educação e Teologia. Estudos Teológicos, No. 03, Ano 36, 1996.

HIEBERT, Paul G. Anthropological Insights for Missionaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1991.

HORDERN, William. Teologia Protestante ao Alcance de Todos. 2 ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1979.

MARASCHIN, Jaci (Org.). Teologia Sob Limite. São Paulo: ASTE, 1992.

PELAEZ, A . Churruca; GUTIERREZ, Gustavo; BEOZZO, J. Oscar. História da Teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1985.

NETO, Luiz Longuini. Educação Teológica Contextualizada. São Paulo: ASTE, 1991.

SCHNEIDER- HARPPRECHT, Christoph. Teologia Prática no Contexto da América Latina. São Leopoldo: ASTE/ Sinodal, 1998.

A Teologia e as Outras Ciências. Estudos Teológicos. No. 3, Ano 36, p. 250- 253, 1996.

STURZ, Richard J. A Educação Teológica Evangélica no Brasil. Vox Scripturae, São Paulo: Vida Nova, Vol. 1, no. 02, 1991.

A Conceituação da Teologia. Vox Scripturae, São Paulo: Vida Nova, Vol VIII, No. 1, 1998.

PADILHA, René. Missão Integral – Ensaios sobre o Reino e a igreja. São Paulo: Temática/ FTL- B, 1992.

ZABATIEIRO, Júlio Paulo. A Bíblia e o Pensamento Teológico na América Latina. Boletim Teológico – Fraternidade Teológica Latino- Americana Setor Brasil. São Paulo: FTL- B, no. 29, Ano 10, p. 07- 13, 1997.

1 René PADILHA, Missão Integral – Ensaios sobre o Reino e a igreja, p. 93.

2 Ruben ALVES, Teologia Protestante, in História da Teologia na América Latina. p. 127- 137.

3 Julio Paulo Tavares ZABATIEIRO, A Bíblia e o Pensamento Teológico na América Latina, Boletim Teológico, ano 10, no. 29, 1997, p. 07.

3 Clodovis BOFF, Teoria do Método Teológico. p. 24- 25

4 Riolando AZZI, A Teologia no Brasil. Considerações Históricas in História da Teologia na América Latina. p. 21.

5 William HORDERN, Teologia Protestante ao Alcance de Todos. P. 12.

6 Paul G. HIEBERT, Anthropological Insights for Missionaries. p. 30.

7 Paulo de COPPI, Por uma Igreja Toda Missionária. p. 84

8 Richard, J. STURZ, A Conceituação da Teologia. Vox Scripturae, p. 35- 49.

9 Clodovis BOFF, op. Cit., p. 116

10 Paul TILLICH, Teologia Sistemática, p. 13

11 Erní Walter SEIBERT. Perguntas da Situação e do Contexto in Teologia Sob Limite, p. 80.

Fonte: www.geocities.com/ebenezer

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*