O fio de ecologia no tecido dos valores

Autor: Éser Pacheco

A vida, tal como nós humanos a concebemos, se tece como uma rede de significações, entrelaçando saberes, valores e esperanças, como fios de lã sobre a malha das condições concretas da existência. O fio da ecologia tem se transformado num dos mais destacados elementos que configuram o quadro das aspirações humanas por justiça social e dignidade de vida no mundo contemporâneo.

As últimas décadas têm assistido a uma expansão constante do interesse de grupos, povos e governos pela questão do meio ambiente. O tema da ecologia há muito deixou de ser assunto relacionado a grupos hippies ou intelectuais excêntricos para se tornar um dos pontos mais importantes da pauta das grandes questões mundiais. Essa emergência ecumênica da questão ecológica tem sido motivada não só pelos alarmantes dados que apontam na direção de uma exaustão dos recursos naturais do planeta, como também pela consciência, cada vez mais nítida, da interdependência de todos os domínios da vida na Terra. Um dos documentos de maior impacto sobre a questão ambiental, publicado em 1982, ganhou justamente o nome de “Nosso Futuro Comum” e trazia, junto à percepção de que todos estamos engajados numa mesma comunidade planetária, quer o reconheçamos ou não, uma reflexão sobre a possibilidade das futuras gerações não gozarem dos recursos necessários à manutenção da vida.

Já desde a década de 60 do século passado, alguns grupos políticos e movimentos sociais haviam percebido que não bastava contestar o modo de produção liderado pelas grandes potências econômicas, mas era preciso questionar o próprio modo de vida. Assim nascia a busca por um modo de vida sustentável, isto é, aquele que não colocasse em risco as condições de vida das gerações futuras e que, ao mesmo tempo, garantisse eqüidade no acesso aos recursos já no presente.

Quando a ONU organizou sua primeira grande conferência sobre o ambiente humano, em 1972, em Estocolmo, o Brasil vivia sob uma forte ditadura militar e os primeiros movimentos de contestação do modelo de desenvolvimento vigente foram contidos pela ideologia do país “gigante pela própria natureza”. Diversas questões ambientais tinham suas soluções pensadas nas mesas dos tecnocratas e implantadas nas pontas das baionetas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a criação de diversos parques ecológicos nacionais que, embora motivados por louváveis interesses de preservação, foram implantados de modo autoritário, acirrando conflitos com populações locais e gerando demandas fundiárias até hoje insolúveis.

Na medida em que o Brasil foi se redemocratizando e as questões ambientais foram se firmando na agenda de todas as principais discussões mundiais, o palco das questões ecológicas passou a ser freqüentado por uma diversidade de agentes sociais, às vezes em conflito, às vezes em cooperação, como organizações não governamentais, instituições de ensino e pesquisa, grupos industriais, organismos estatais etc.

Essa multiplicidade de forças em tensão demonstrou nitidamente que questões ecológicas são também ideológicas. Da atriz de cinema que faz campanha pela preservação dos golfinhos ao movimento de sem-terras que luta pela reforma agrária, a questão ecológica se espraia numa diversidade de visões de mundo e projetos de sociedade. Parece, assim, que ecologia tornou-se o signo que, no árido contexto da pós-modernidade, aglutina as esperanças mais diversas de um mundo mais justo e fraterno.

Por representar um novo nome para velhas esperanças, a ecologia capturou também o interesse de grupos religiosos e tornou-se um locus privilegiado para teólogos progressistas no final do século XX. As utopias religiosas necessitam sempre se amparar numa linguagem que expresse os valores e as relações de um mundo mais harmônico, mais próximo à vontade do Criador. Na América Latina, essa linguagem esteve, durante muito tempo, fortemente identificada com as propostas socialistas que, no discurso cristão, serviram de apoio à Teologia da Libertação. A dissolução dos socialismos reais, cujo marco se deu na queda do muro de Berlim, em 1989, deixou órfãos diversos filhos dessa esperança que aproximava os ideais cristãos a um modelo de sociedade que parecia a concretização mais viável do Reino de Deus.

Para muitos cristãos brasileiros, a utopia de um mundo mais justo foi sepultada com a queda do muro de Berlim, em 1989, e ressuscitada com nova linguagem em 1992, com a conferência sobre meio ambiente promovida pelas Nações Unidas, no Rio de Janeiro. A linguagem progressista sofria sua metamorfose e assumia a forma de uma espiritualidade ecológica, novo paradigma para a busca de um mundo com dignidade e sem exclusões.

Se a teologia se aproximava da ecologia, o caminho inverso também era percorrido. Ecologia é conhecimento transversal e percorre os mais diversos domínios da experiência humana. Fala-se mesmo em “ecologia de saberes”, isto é, uma escuta de outras formas de conhecimento, além das formas hegemônicas da ciência ocidental, uma verdadeira globalização democrática do saber. Nessa perspectiva, é preciso contemplar o domínio da espiritualidade como aquele onde a questão do sentido da vida se coloca de forma radical. Cada vez mais é reconhecida, na investigação ecológica, uma complexidade que não se prende à biologia, mas adentra todos os campos onde a vida se faz presente.

Numa certa medida, ecologia é uma ciência das relações, um saber sobre como se interrelacionam os diversos elementos de um sistema. Quando o ser humano se faz presente nesse meio, uma variável ganha importância significativa: o sentido da presença, no mundo, do próprio Ser. Se os elementos do ambiente (a pedra, a brisa, a criança…) “são no mundo”, o que se coloca, para o ser humano, é o próprio sentido do Ser que se mostra nessas existências particulares. A busca da compreensão e de uma proximidade com o Ser das coisas é o que se expressa como a espiritualidade presente em todas as formas de religião.

Para o cristão, entretanto, o Ser se encarnou em Jesus Cristo e se mostrou como o Filho do Altíssimo, para libertar toda a criação do cativeiro da corrupção a que a sujeitou a vaidade humana. Buscar uma espiritualidade ecológica, numa perspectiva cristã, é, pois, compreender como o Evangelho é explicitação do sentido dos relacionamentos entre os elementos do oikos (casa) que geme em dores de parto para se tornar o jardim de Deus.

Além de ser uma ciência sobre a complexidade das relações, a ecologia é também uma ciência sobre a sustentabilidade dos modos de vida. A idéia de desenvolvimento sustentável implica, hoje, na busca de modelos econômicos que superem as exclusões de uma globalização que privilegia o modo de vida de uma minoria, em detrimento da maior parte dos seres vivos e não-vivos do Planeta. Longe, portanto, de ser um discurso esotérico ou um misticismo barato, a espiritualidade que emerge neste contexto é também luta social, conflito criativo e, finalmente, conversão de vida, no âmbito tanto pessoal quanto comunitário.

Assim, em torno do fio de lã da ecologia foram-se entretecendo os sofrimentos e as lutas daqueles que viram suas esperanças morrerem e renascerem entre as transformações históricas das últimas décadas. Hoje, a ecologia se mostra não como a panacéia que colocará fim a toda miséria humana, mas, ao menos, como um saber que, ao denunciar um destino solidário para todos os seres terrestres, convida-os a proclamar também uma esperança solidária.

* Bacharel em Teologia (FTIM), Psicólogo (UFMG), Mestre em Filosofia (UFMG), Doutorando em Ecologia Social (UFRJ).

Texto publicado em Transformação. Belo Horizonte, Visão Mundial. Edição Especial, novembro/2005, ano XVI, p. 10-11.

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