Autor: Maria Carolina Alves dos Santos
Uma vez fixada em livro, a Politeiva tornou-se, antes de tudo, representa-ção gráfica de uma experiência criadora, a da “bela alma” onde instalou-se a pri-meira de tantas outras kallivpoli" erigidas na interioridade daqueles que, assim como Platão, por sua paixão pelo saber, buscaram, também, avidamente, um "modelo no céu" para regular o governo de si próprio. Por isso, talvez, ele esfor-çou-se por alojar na escritura, com palavras e imagens exatas como um bom demiurgo, os diálogos silenciosos de seu pensamento consigo mesmo. O trabalho especulativo associado à atividade manual da grafiva, permite-lhe transcender a materialidade circunstancial do texto e estabelecer contato com número infinito de potenciais "belas almas", os seus leitores. E, apesar de indiscutível perda na quali-dade da comunicação, o face a face da discussão oral, sua yucagwgiva teve conti-nuidade com grande êxito. Gerações de comentadores e intérpretes espicaçam a mente para abarcar os desdobramentos emblemáticos que sua obra contém. Pos-tada na orla da História da Filosofia, pela permanente evocação que lhe faz a posterioridade, constrói fortíssima barragem contra o esquecimento, assegurando a seu autor a glória (klevo") da imortalidade.
Em suas investigações, Platão valeu-se de generosa dádiva dos deuses aos homens – "jogada cá em baixo por algum Prometeu acompanhada de uma in-comparável chama luminosa"1 – para auxiliá-los a vencer aporias. Recurso perfei-
1 Fil. 16c.
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to, devolve à alma as gigantescas asas que a conduzem ao ponto mais alto, de onde contempla diretamente a cintilância das significações absolutas. A árdua trajetória ascendente propicia-lhe desenvoltura na difícil arte de ver (ou rever) no apogeu, repentinamente como um "flash", a Causa de tudo. Transpostos, metodicamente, os obstáculos à aproximação desta realidade por meio do lovgo" – a dialética os trans-forma em degraus – formula discursos que podem ser, legitimamente, designados como teologia2. A participação nas Formas divinas (qeoeidhv")3, por esses rapidíssimos vislumbres, desperta reminiscências de extraordinário saber, gravado em si desde a aurora de todos os tempos, quando fruía de estreita convivência com o foco que sempre brilha na supraceleste Planície. Restitui-lhe voz e memória compondo altís-sima música, em culto às filhas de Mnhmosunhv, uma descrição arquetípica impressio-nante, perfeitamente circular: no vertiginoso retorno ao primordial, a yuchv reproduz o eterno esforço do curvar-se sobre si mesma em obediência ao preceito délfico. A reconciliação com sua verdadeira natureza, do mesmo gevno" que as coisas celestes4, é um rito de passagem, heróica transposição do domínio terreno, no qual está pre-sentemente enredada, ao solo da pátria real, solar, aérea.
Ao termo da feliz odisséia da alma, nítidas recordações levam Platão a visu-alizar a Forma que rutila com luz mais intensa, ao mesmo tempo, como pedra angular e cúpula da bela politeiva, pairando, eternamente, na dimensão do inteli-gível. Se a verdade, tão obsessivamente buscada, está contida nesse Nou’" que tudo causa e ordena5 (retomando Tales, para quem "todas as coisas estão plenas do divino"6) enuncia Deus como aquele que está no começo, no meio e no fim de todos os seres7. E, uma não menos apaixonada vocação a intermediar oposições, está na origem das tentativas para conjugar esta imperturbável comunidade (vi-gente na arredondada abóbada do céu) à dimensão interna do homem harmoni-zado, para que possa organizar, belamente, a sociedade em que vive. No projeto político da kallivpoli", circularmente, todos os elementos a partir do Bem-Um pres-
2 W. JAEGER.
3 Fedro 252c-d.
4 Féd. 80b.
5 Féd. 97c.
6 Arist., DeAnima,I,2. Leis 899b.
7 Leis 716a. (…tw¿n #ontwn !apantwn)
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supõem uns aos outros – acaso o círculo não é a única forma que o Um pode assumir? – como pontos distendidos, para compor a simetria do conjunto. Modelo fundante, regula o organismo social, inerva cada uma das partes segundo seu ritmo: é o sopro vital, a alma perfeita, que o unifica. Somente um discurso especí-fico, a nova ejpisthvmh sobre a vida social decodificará essas relações de sucessivi-dade, cuja enunciação postulou o prévio enfrentamento de inquietante questão de princípio, a possibilidade do lovgo" apreender e expressar a norma que a funda-menta. Circunscrever, adequadamente, a convergência entre o político e o teoló-gico é conquista metódica, e é desse triunfo que proveio a força de significante matricial de que está investido o discurso platônico que nutre as diversas ramifica-ções do pensamento político ocidental.
A intensa perscrutação sobre o lovgo" nos Diálogos, dá especial ênfase à es-crita, tevcnh recentemente inventada. Pressentindo tratar-se de fenômeno histórico que irá transformar, irreversivelmente, a civilização grega, por escrito, sob o crivo da dialética, Platão acentua impropriedades, denuncia limitações, mas teoriza, simulta-neamente, sobre os parâmetros de uma retórica verdadeira, mostrando não serem irremediáveis suas insuficiências e ambigüidades. Quando tratado metodicamente, o lovgo" tem poder para estabelecer estreita comunhão com cânones imperativos que dão sustentação ao essencial de seu pensamento, as Idéias de "maior valor" (tav timiovtera)8. Contra a ajsqevnia natural da linguagem, a eficiência metódica é o melhor antídoto: da atecniva (anem tecnhv")9 resultam a antilogia e a misologia que fazem o homem inimigo da ciência e da verdade, privando-o da filosofia10.
O êxito dessas reflexões nos Diálogos da maturidade e, especialmente do período tardio, sobre procelosas japoriva", garante ao discurso lugar privilegiado entre os gêneros do Ser11. A nova grafiva, filosófica, busca entrelaçar, de modo conveniente, a materialidade das letras à imaterialidade das Formas, e reproduzir, de modo correto, a sumplokhv naturalmente existente entre elas12. Sob essas con-
9 Féd. 89d.
10 Féd. 90d, Sof. 260a.
11 Sof. 260a.
12 Sof. 259e, Fedro 265a, Teet. 202b, Rep. 533c. v. H. JOLY. Le Renversement Platonici-en. Paris: Vrin, 1974, p. 101.
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dições, Platão supera a tensão entre o lovgo" "vivo" e a letra "morta" transpondo, a partir dos 24 sinais alfabéticos do grego, a dinâmica do ajgwn dialético. Apesar dos riscos de ver mal compreendidos seus pensamentos, assume a vocação de escri-tor, trabalha a existência inteira, com obstinado empenho, para efetivar o livro filosófico; usa de todos os recursos de sua arte para infundir no cerne da escrita o espírito de seu saber13. Funda uma cidade intertemporal com seus leitores, desti-nada a expandir-se sem cessar – antes limitada a ouvintes circunstanciais sua filosofia ganha, agora, ilimitada quantidade deles – com os quais vem comparti-lhando a exemplar proposta de um novo modo de pensar o político14.
A integração da escrita filosófica na vida cultural da cidade grega firma-a também, definitivamente, como coisa política. Interpelar, com severidade, os po-deres constituídos a respeito de problemas de permanente importância15; comba-ter os efeitos desagregadores da sofística sobre o mundo comum da interlocução social (monopolização da verdade nos debates, manipulação da multidão, intelec-tualmente despreparada, ao questionamento conseqüente de proposições veicula-das na Assembléia16); esboçar, metodicamente, um regime restaurador dos ideais da povli"17 (a "bela cidade" teria pré-existido ao surgimento de seus outros tipos inferiores18) e torne, indistintamente, os cidadãos mais felizes, eis o programa
13 De acordo com testemunhos antigos como o de Denys de Halicarnasse, Platão elaborava seus escritos com grande cuidado. Até a idade de 80 anos, nunca parou de cuidar, minucio-samente, de seus Diálogos, polindo-os e reformulando-os de todas as maneiras: Denys o cita como exemplo de um trabalho literário consciencioso, do qual resulta uma composição verbal modelar (R. BRAGUE. Le Restant. Paris: Les Belles Lettres: Vrin, 1978, p. 24).
14 Embora os primeiros ensaios de uma análise da povli" pareçam remontar ao século V, se considerarmos as obras existentes, devemos a teoria política grega a Platão e Aristóte-les: a República, sua primeira grande obra, marcou fortemente os pensadores, especial-mente na Renascença e em nossa época, no quadro dos conflitos contemporâneos entre sistemas e ideologias democráticas e totalitárias (R. I. WINTON et P. GARNSEY. Théorie Politique. In: L’Héritage de
15 Carta VII, 345a.
16 Górg. 452e-456c.
18 Rep. 547b.
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dessa inaugural filosofia (ou teologia) política: essa grafiva propõe-se a desmasca-rar os maus regimes, determinando uma essência à política, pela definição do que Platão considera sua verdadeira ajrchv. A seus olhos, o uso pervertido do lovgo" na política, gera litígios que atomizam a vida cívica, enfraquecem a consensualidade do espírito coletivo, criam campo fértil à consolidação de governos autoritários. O clima anárquico de guerra civil suscita, equivocadamente, viva aspiração por um homem forte que assegure a coesão da cidade: ascende ao poder o tirano, cuja ambição e onipotência (quer ser um deus entre os homens19) instaura o antípoda do "bom regime" (elimina os homens de bem e reduz os restantes à degradante servidão)20. Tais decorrências, segundo Platão, são efeito de causa muito mais profunda, a incapacidade da nação grega alcançar a unidade espiritual, somente sanáveis por um princípio extrasocial, sobrehumano, com poder de mediação e integração para reunir os cidadãos numa sociedade perfeitamente una21.
Norteado pelo eixo da verticalidade, o projeto teológico-político obedece a uma particularidade essencial da povli" em seus belos dias, é comunidade de deu-ses e homens. A convergência entre o pólo temporal e o eterno – esse encontro polêmico que dá à política seu fundamento – inscrito desde sempre na matriz da civilização grega, perfila-se entre as mais fortes convicções do polivth": atua como imperativo de um modo de vida que identifica espírito público a senso ético-religioso. O critério de especificação do que é ou não bom para a coletividade, emana do princípio divino, é secularizável pela ação do homem bem formado, soberano de si mesmo, de excepcional sabedoria. Beneficiário dos vislumbres da mais alta Forma, hauridos diretamente mediante incursões dialéticas, interviria como mediador entre o social e o extrasocial, imprimindo-os no espaço vital da "bela cidade": avesso ao saber arrogante, à servidão e suas iniqüidades, herói sem par no combate por suas convicções, tem a envergadura de um Sócrates. Com a kallivpoli" interiorizada, é competente para conduzir a comunidade a compatibili-zação excelente entre fins particulares e necessidades comuns, e mudar, talvez, os t
19 Rep. 567a.
20 Rep. 567c-d. J. CHANTEUR. Plaon, le désir et la cité. Paris: Sirey, 1980, p. 86.
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rumos da história política da Grécia. O comandante da cidade de Platão (e seus súditos) têm o Bem como o legítimo governante, não possui autoridade no sentido contemporâneo dessa expressão.
Sob o fio condutor da natureza, manifesta de modo distinto segundo tipo-logia diferenciada de indivíduos, é instituída heterogênea divisão de trabalho. Exercendo um ofício, com plena dedicação, segundo natural inclinação, mais que função meramente produtiva, penosa, expropriadora do tempo de vida, o trabalho resulta no bem de cada um: autonomia, excelência, boa sociabilização, realização da verdadeira humanidade. Platão elimina as torpezas da atividade profissional enfatizando a dinâmica da vida psíquica – os sinais marcantes do temperamento e as sinuosidades das pulsões íntimas – para que, com tal desempenho, seja apri-morado o que o cidadão tem de melhor; e concilia otimamente, interesse pessoal e coletivo, indivíduo e sociedade.
O pouco conhecido mundo da yuchv é decifrado com inovadora pertinência para os tempos que correm, transformando profundamente a ótica então vigente. Platão proclama sua identidade com o homem interior22 e ressalta a fundamental importância da subjetividade na organização do domínio político. Em razão da natureza dessa força velada, princípio imortal de vida, aparentado ao divino, in-fundida ao invólucro corpóreo, imprime à trama de seu projeto teológico-político uma dimensão finalista e escatológica. A República é coroada com um mito, se-gundo o qual, após a morte, as almas deverão demarcar sob sua exclusiva res-ponsabilidade, irrevogavelmente, as linhas determinantes da próxima existência.
À luz dessas reflexões, a instauração da kallivpoli" internamente, pelo e-xercício na virtude enquanto cidadão (vivendo com sobriedade, prudência, equilí-brio, clareza intelectual) é etapa necessária, propedêutica, ao regresso final à radiosa comunidade celeste. Sondar em profundidade a própria natureza, engen-drar, em sua imanência, a bela cidade, à semelhança da imortal "cidade que é" no topov" oujranov". t
22 Rep. 585a; Alc. 130c. V. GOLDSCHMIDT. A Religião de Plaão. São Paulo: Difel, 1963, p. 68; J. P. VERNANT. Aspectos míticos da memória e do tempo. In: Mito e Pensamento entre os Gregos.
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